O novo Fórum Social Mundial precisa de coragem
Urge repensar as formas de se estabelecer no mundo todo um dos principais objetivos dos Fóruns passados: a conquista de uma economia efetivamente solidária.
- Opinión
Recomeça em Porto Alegre nesta terceira semana de janeiro de 2016, mais uma reunião do Fórum Social Mundial. Sem o número de participantes e sem a cobertura midiática das primeiras, o sucesso dessa iniciativa popular, sob todos os aspectos urgente e necessária, como um válido contraponto ao que predomina em Davos, vem sendo avaliado como declinante, assim medido, exatamente, só por aquele número e aquela publicidade.
Tanto por quem apoia, inspira e é inspirado por essa experiência mundial, estando desanimado por isso, como por quem dela debocha como retrógrada e avessa a todo o “progresso” patrocinado pelo capital e pelo mercado, comemorando o fato como prova do seu fracasso, esse diagnóstico parece bem equivocado.
Se o Fórum Social perdeu grande parte da sua motivação e do entusiasmo com que foi inaugurado há quinze anos atrás, isso se deveu muito mais, salvo melhor juízo, a quatro das suas principais características que, em vez de serem reputadas como defeitos, são virtudes capazes de serem renovadas a cada uma dessas reuniões.
A primeira pode ser vista como um simples efeito dos limites humanos daquelas boas prestações de serviço que o Fórum desencadeia. Toda a continuada presença de gente militante, em favor de causas de defesa de direitos humanos, como debatidas e planejadas lá, é sabidamente trabalhosa, sofrida, entrecortada de algumas vitórias e grandes derrotas, consequência histórica do extraordinário e bem superior poder econômico à ela contrário. O conhecido “cafard” das trincheiras, essa melancolia resultante desse permanente combate, por vezes frustrante, vem minando a força dessa militância, aliás já envelhecida em grande parte. Isso não lhe retira o mérito, mas ela não é de ferro e precisa se renovar todos os dias pois, como se sabe, a injustiça social não tira férias. O Fórum serve de nova oportunidade para isso.
A segunda, paradoxalmente, resultou de algumas metas sociais exitosas, apoiadas em reuniões passadas do Fórum, quando o empoderamento de movimentos sociais, unido a muitas outras organizações de defesa de direitos, fazendo pressão sobre os poderes públicos de muitos países, conseguiu diminuir os índices de miséria e pobreza em grande parte do mundo. Impôs até derrotas às conhecidas investidas norte americanas como a Nafta e a Alca para, na América Latina por exemplo, proteger melhor as economias locais. O problema reside agora numa visível hesitação de como proceder diante de uma crise econômica planetária, para enfrentamento da qual não basta a conservação do já conquistado, mas urge repensar as formas de se estabelecer no mundo todo um dos principais objetivos dos Fóruns passados: a conquista de uma economia efetivamente solidária.
A terceira pode derivar de uma constante histórica presente nas rebeldias populares. Quando elas alcançam o poder, seja o privado seja o público, elas preferem o estabelecimento da ordem e a conservação desta, até pela força, à continuidade do espírito que as motivou e do movimento que lhes deu vida. As leis e as instituições dela garantes passam a ser o principal, e a realidade social sobre as quais elas dominam passam a ser o secundário. Como essa realidade é cambiante e varia independentemente da lei e das instituições, o estabelecimento das leis e das novas instituições esquecem que aquela foi, justamente, a fonte dos movimentos populares rebeldes postos em defesa de mudança da antiga ordem. Em nome da chamada “governabilidade”, então, a antiga ordem retoma o seu poder de dominação, como se fosse coisa nova, libertária, nos moldes desejados pelo movimento. A lei e as instituições, cheias de regras, formulismos, casuísmos, ritos e outros devidos processos, retomam – se é que perderam algum dia – o seu poder de opressão e repressão, particularmente contra o povo pobre, vítima do capital. Nisso, o Brasil é um triste e lamentável exemplo. É de se esperar que o Forum deste janeiro não se envergonhe de pautar e discutir essa infidelidade ético-política, imposta, não só a um dos seus principais objetivos, como a toda a nação eleitora do governo atual.
A quarta é o cenário todo das três primeiras. Para renovação eficaz dos seus objetivos, o Fórum Social Mundial há de se prevenir outra vez, como certamente fará relativamente à lei e suas instituições, contra uma tentação típica do capital que, em nome da liberdade, dá preferência à sua própria segurança, sacrificando a primeira em defesa da segunda. Com poder superior ao do Estado, invade o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, fazendo deles o refém “legal”, escravo dos seus interesses e privilégios, como se esses e somente esses possam valer como existentes e legítimos. Enrola ideologicamente a lei e as instituições públicas, fazendo inclusive das exceções presentes em políticas compensatórias, a regra da sua superioridade. Até em relação a essas, como acontece com a reforma agrária e a proteção do meio ambiente, manipula acomodações, concessões e licenças variadas, sem hesitar em compra-las, frequentemente… Quando não se impõe pelo poder jurídico, ultrapassa-o pelo político.
O Fórum Social Mundial tem consciência crítica muito clara disso. Se não pela sua experiência popular de militância por um conselho imbatível do próprio Jesus Cristo: “Ninguém prega retalho de pano novo em roupa velha; do contrário, o remendo arranca o novo pedaço da veste usada e torna-se pior o rasgão. E ninguém põe vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho os arrebentará e perder-se-á juntamente com os odres, mas, para vinho novo, odres novos.” (evangelho de São Marcos, capítulo 2, versículos 21 e 22).
Ou, como dizia um velho militante das comunidades eclesiais de base, assíduas leitoras dessa inspiração radicalmente corajosa: não adianta trocar de maquinista, se o trem vai continuar andando nos mesmos trilhos.
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