Da justiça pelas próprias mãos aos riscos da regularização fundiária
- Opinión
Casa decente e comida farta são condições indiscutíveis do respeito devido à dignidade humana e à cidadania de qualquer pessoa. Embora com atraso, o direito à moradia e o direito à alimentação foram introduzidos na Constituição Federal brasileira muitos anos depois de ela ter entrado em vigor, em 1988. O direito à moradia foi reconhecido no artigo 6º em fevereiro de 2000, pela emenda 26, e o direito à alimentação em fevereiro de 2010, pela emenda 64.
No morro Santa Teresa, em Porto Alegre, esses dois direitos estão sendo constituídos, sim, mas pelas próprias mãos das/os suas/seus moradoras/es. Numa prova de que, em matéria de terra e direitos humanos, o que há de mais singular e local é o que há de mais plural e geral, ali se encontram reunidas todas as circunstâncias reveladoras dos desafios a serem enfrentados pelo povo pobre de regiões como a desse morro, em suas relações com o Poder Público. Desde a segurança da posse devida às casas que ele mesmo construiu, a titulação dos espaços de terra que ele mesmo ocupou, agora já garantida pelo direito à concessão de uso especial para fins de moradia, a preservação do meio ambiente que ele mesmo está procurando manter, a extensão dos serviços públicos de arruamento, energia, água e saneamento, transporte e segurança que ele mesmo exigiu no passado e agora, com histórico poder de reivindicação, efeito do poder de sua organização, tudo isso começa a chegar.
Neste ano de 2015, no dia da criança, em festa programada por esse mesmo povo, lá compareceu o vice-prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, para afirmar com muita veemência o direito de ele permanecer onde onde está. Tudo foi feito à vista de uma das paisagens mais belas de uma exuberante natureza que Porto Alegre ainda mantém, em grande parte devida à presença das/os moradoras/es no local, pois o convite à especulação imobiliária tem no local um fortíssimo poder de sedução.
Comemorava-se também a extensão da energia elétrica para uma das vilas integrantes do Morro, e uma das moradoras exibia, não sem certo orgulho, a prova de ter pago a primeira conta de luz da sua vida, e não era mulher nova não.
O fato convida a pensar. Quantos anos são necessários de vida dura e sofrida para multidões pobres verem os seus direitos reconhecidos e garantidos? Por que a chamada regularização fundiária demora tanto para ser executada em milhares de espaços urbanos e rurais do país iguais aos do Morro Santa Teresa em Porto Alegre?
A resposta, embora muito simples e evidente, não deixa de ser também muito triste. A satisfação de necessidades vitais como são as da moradia e da alimentação depende, também ela, de dinheiro e gente pobre não tem dinheiro. Como as administrações públicas dão atenção prioritária às conveniências do mercado, moradia e alimentação desse povo não constituem prioridade no orçamento indispensável à implementação de políticas públicas, mesmo que elas estejam previstas em lei como a da reforma agrária e da urbana.
A população do Morro Santa Teresa tomou consciência dessa injustiça. Tudo o que ela não é, mas tem o direito de ser, estava e ainda está em grande parte, sendo impedido pelo que já é. Tratou e está tratando de remover, por suas próprias mãos, esse empecilho.
Impediu, por forte pressão política coletiva, a alienação de parte do morro pertencente à uma Fundação mantida por dinheiro público para educação sócio educativa de adolescentes (FASE), mas onde várias das famílias do morro residem; está exigindo participar de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público para remover outras que se encontram em áreas de risco; mais de uma secretaria do governo do Estado já garantiu assento de suas lideranças num grupo de trabalho instituído justamente para dar andamento à regularização fundiária de toda a área, inclusive para se abrir a possibilidade de os títulos de concessão do direito real de uso para fins de moradia serem expedidos e registrados, além de reservada boa parte do morro, como área de preservação permanente, não excluída a hipótese de ali se estabelecer um parque; conseguiu ver reconhecida por lei áreas especiais de interesse social estabelecidas no local; em audiência pública levada a efeito na Câmara de Vereadores, denunciou uma tendenciosa campanha midiática de responsabilizar quem mora no morro por violências criminosas lá praticadas por traficantes de drogas e as vezes até por policiais militares, em tudo indesejadas pelas famílias ali residentes.
Por tudo isso o povo pobre do morro Santa Teresa está advertindo o Poder Público, seja esse do Município, do Estado, da União, além do poder privado presente na sociedade civil, que ele tem consciência da sua dignidade e dos seus direitos, não abrindo mão do respeito devido à primeira e das garantias devidas aos segundos.
Mesmo assim, ainda há necessidade de se prevenir contra os riscos que a própria luta por ele empreendida não se deixe vencer pela sedução do mercado. No momento mesmo em que o vice-prefeito da cidade e a companhia de energia elétrica do Estado comemoram com ele a extensão das redes de energia, já é possível prever-se o quanto cada um dos lotes daquela parte do morro ganham em valor de venda, pela instalação desse serviço público e a perspectiva de outras melhorias.
Esse é um dos problemas insolúveis das conquistas populares em matéria de terra, seja ela urbana seja rural. Elas acabam por fornecer ao mercado imobiliário uma chance de esse exercer o seu poder implacável de usurpação. A oferta de dinheiro para lotes urbanos regularizados gera em seus possuidores pobres uma forte tendência de trocá-los por dinheiro e isso, quase como regra, termina ali adiante por favelá-los de novo em outro lugar. Mesmo que as cláusulas contratuais de inalienabilidade da maior parte dos contratos de regularizações proíbam, dão um jeito de driblá-las.
É de se esperar que isso não aconteça com as famílias do morro, pelo histórico das suas lutas. Elas estão interpretando a seu modo sua própria soberania, mostrando e provando que a justiça não é exclusividade do Estado. Existe sim um pluralismo jurídico do qual são titulares, com poder para interpretar os “sinais dos tempos”, dotado de uma autoridade concorrente e até superior a da administração pública quando essa se atrasa ou ignora ser-lhe serva. Se essa legitimidade ainda lhes tem sido negada, elas podem sustentá-la em veemente crítica contrária à uma verdadeira justiça que dela emana, pela palavra nada mais nada menos do que do próprio Jesus Cristo. Em contexto de condenação de toda a cegueira própria da insensibilidade social disse:
“ Quando vedes soprar o vento do sul, dizeis: ‘Haverá calor’. E assim acontece. Hipócritas! Sabeis distinguir os aspectos do céu e da terra; como, pois, não sabeis reconhecer o tempo presente? Por que também não julgais por vós mesmos o que é justo?” (Evangelho de São Lucas 12, 55-57).
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