O mundo vive a era dos bisbilhoteiros
- Opinión
Na segunda-feira 1º de junho, algumas das disposições do USA Patriot Act (sigla de Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism) caducaram devido à obstrução do senador republicano Rand Paul, pré-candidato libertarian à Presidência. Com isso, a NSA ficou momentaneamente sem respaldo legal para a coleta em massa de metadados da internet e duas formas específicas de espionagem de cidadãos por autorização de “tribunais secretos”.
Em fim de mandato e com maioria oposicionista nas duas casas do Congresso, Barack Obama tornou-se um “pato manco” incapaz de conseguir aval para a maioria de seus projetos e iniciativas, mas neste caso teve amplo apoio nos dois partidos. No dia seguinte, o Senado aprovou um novo texto legal prontamente assinado pelo presidente, o USA Freedom Act (Uniting and Strengthen-
ing America by Fulfilling Rights and Ending Eavesdropping, Dragnet-collection and Online Monitoring Act).
O nome resulta ainda mais orwelliano, pois autoriza a continuação da vigilância online com três modificações praticamente simbólicas. A coleta e a gravação de ligações serão feitas pelas empresas de telecomunicações e não pela NSA, mas esta poderá requisitá-las quando quiser. Haverá um “advogado do público” nos tribunais secretos, supostamente encarregado de prevenir excessos, mas nada garante que não será submisso aos interesses do Estado. Por fim, o governo terá de publicar relatórios e estatísticas sobre a extensão das investigações, naturalmente selecionadas segundo critérios convenientes.
A interrupção momentânea não afetou as investigações em curso e ninguém realmente pensou que a espionagem ficasse a descoberto além de uns poucos dias. Mesmo nas horas em que teoricamente não puderam usar seu sistema, os especialistas da NSA dizem ter trabalhado monitorando o Facebook, quase igualmente eficaz para seus propósitos de vigiar ativistas não violentos. Os verdadeiros terroristas sabem como driblar a espionagem e os ataques de desequilibrados e revoltados individuais continuam imprevisíveis e suas ameaças indistinguíveis da retórica de violência rotineira nas redes sociais. Os poucos casos de “terroristas” alegadamente detidos pelo FBI com apoio da espionagem trata-se, na verdade, de rebeldes ingênuos incentivados e provocados a planejar atentados por seus próprios agentes e que sem isso provavelmente nunca se tornariam um risco.
A se julgar, entretanto, pelas opiniões divulgadas na maioria das mídias conservadoras e liberais, os EUA ficaram expostos a riscos terríveis “no pior momento possível”, como se houvesse algum instante nas últimas décadas sem algum bicho-papão de plantão. A atitude dos democratas faz lembrar um comercial de banco dos anos 1990, no qual um garoto-propaganda interpretava ironicamente um ex-contestador: “Antigamente, a gente lutava para derrubar o sistema. Agora, ele cai uns minutinhos e fica todo mundo revoltado”.
Nos anos pós-Watergate da década de 1970, as disposições do Patriot Act de outubro de 2001 e a criação do Departamento de Segurança Nacional em novembro de 2002 só teriam lugar em uma ficção científica distópica. Quem propusesse algo parecido nos EUA dessa época seria levado ao impeachment ou ao ridículo. Foi preciso um governo neoconservador e o clima de comoção e chauvinismo vingativo das primeiras semanas após os atentados do 11 de setembro para aprová-lo no Congresso, com muita controvérsia na mídia liberal.
O ato original tinha vigência de quatro anos e os mais otimistas puderam esperar que quando expirasse, cabeças mais frias, a ausência de novos grandes atentados nos EUA e o fato de George W. Bush ter obtido o que realmente desejava – a invasão do Iraque – permitiriam que essa aberração caísse silenciosamente no esquecimento e tudo voltasse ao normal. Pelo contrário. Houve esperneio de parlamentares liberais, mas o Ato foi reautorizado em 2005 por mais cinco anos e ampliado para incluir o “narcoterrorismo” (ameaças a agências antidrogas) e treinamento de tipo militar por organizações estrangeiras suspeitas.
Quando em 2010 foi mais uma vez renovado, desta vez a pedido do presidente democrata, a polêmica se aquietou. Não deveria: os avanços da informática em dez anos haviam tornado muito mais perigosa a vigilância autorizada por essa medida, como constatava o então terceirizado da NSA Edward Snowden, que em 2013 decidiu dizer ao mundo o que sabia.
Snowden, Manning, Assange e Kiriakou são exemplos de que ser dissidente no Ocidente de hoje é tão difícil quanto no Bloco Soviético de ontem
Houve então controvérsia, mas muito mais fora dos EUA do que no país, onde se discutiu muito mais a punição adequada a Snowden, forçado a se asilar na Rússia, e como dissuadir outros de imitá-lo. O Patriot Act, a nova doutrina de segurança nacional e a vigilância permanente não são mais medidas de contingência, mas política de Estado, como mostrou o debate em torno de um “Freedom Act” que pouco muda além do nome. A perseguição internacional sistemática a Julian Assange, a condenação de Chelsea (ex-Bradley) Manning a 35 anos por vazar dados sobre abusos do Pentágono no Iraque e a prisão em 2013 do ex-agente da CIA John Kiriakou por vazar a jornalistas informações sobre o uso de tortura durante o governo Bush mostram como a obsessão do controle se generalizou e passou a ser considerado um alicerce indispensável do Estado moderno.
Para a corrente principal da política não só dos Estados Unidos, mas do Ocidente, incluída nela a maior parte da mídia, essa concepção de rastreamento e policiamento de opiniões e manifestações não é mais uma situação de exceção, mas um novo normal que só os mais radicais se atrevem a contestar. O mesmo sistema de espionagem está em vigor nos demais dos “cinco olhos” da aliança de inteligência capitaneada por Washington, a saber, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Na França, o atentado ao Charlie Hebdo serviu ao mesmo papel do 11 de Setembro como pretexto para a aprovação, em maio, de uma regulamentação análoga, se não pior, pois dá poderes a suas agências para espionar sem autorização da Justiça não só em investigações ligadas ao terrorismo como em qualquer suspeita de caso criminal.
Em todos os casos, o terror serve de pretexto para ampliar a vigilância, intimidar dissidentes, endurecer sua punição, militarizar a repressão policial e deslegitimar na mídia quaisquer movimentos, propostas e manifestações que, mesmo pacificamente, contestem as políticas de austeridade mais extremas, para não falar do sistema capitalista. Como podem atestar os militantes do #Occupy nos EUA e de partidos como o Podemos e o Syriza na Europa.
Em artigo intitulado “Através do espelho”, John Feffer, diretor do Instituto Foreign Policy in Focus e articulista do Huffington Post, proclama a vitória do “leninismo de mercado”. Nos anos 1960 e 1970, lembra o autor, esteve na moda a “teoria da convergência” – defendida, por exemplo, por John Kenneth Galbraith e Andrei Sakharov –, segundo a qual o Ocidente e o bloco soviético acabariam por evoluir para um sistema capaz de combinar o melhor dos dois mundos, a igualdade e segurança do socialismo e as liberdades democráticas do capitalismo, à maneira de países escandinavos como a Suécia. Na realidade, diz Feffer, o mundo caminha para a “Anti-Suécia”, pois a tendência real após a queda do Muro de Berlim é a combinação sob vários pretextos do autoritarismo e a vigilância opressiva do stalinismo com a desigualdade e insegurança do capitalismo selvagem. Como o Admirável Mundo Novo que Aldous Huxley anunciava em 1932, ou um pouco pior.
EUA e União Europeia (poderia acrescentar o novo Japão, nacionalista e militarista) caminham para o capitalismo autoritário da Rússia, da China e de emergentes como a Turquia, a Tailândia e o Irã, no qual os setores estratégicos da economia são controlados por empresas monopolistas e o debate público é severamente policiado e limitado. Na Hungria, essa transição praticamente se completou sem objeções sérias de Bruxelas, que também não criticou a Espanha por aprovar uma lei que criminaliza manifestações, enquanto a Grécia enfrenta o risco de expulsão por negociar uma política econômica social-democrática.
Ao contrário da mensagem da pregação neoliberal dos anos 1990, a globalização do capitalismo não é capaz de cooptar todas as classes, etnias e nações e tornar as dissidências irrelevantes em uma era de feliz monotonia e prosperidade interminável. Ante a concentração de renda e a deterioração do ambiente, só o autoritarismo pode sustentá-lo. Quem ri por último não é Francis Fukuyama de O Fim da História e o Último Homem, mas o Karl Marx de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, que analisou o processo pelo qual a elite burguesa abre mão de suas convicções liberais para preservar seus privilégios e troca Liberdade, Igualdade e Fraternidade por Artilharia, Infantaria e Cavalaria. “Toda reivindicação ainda que da mais elementar reforma financeira burguesa, do liberalismo mais corriqueiro, do republicanismo mais formal, da democracia mais superficial, é simultaneamente castigada como um ‘atentado à sociedade’ e estigmatizada como ‘socialismo’”, reflete uma de suas passagens.
- Reportagem publicada originalmente na edição 853 de CartaCapital, com o título "A era dos bisbilhoteiros".
24/06/2015
http://www.cartacapital.com.br/revista/853/a-era-dos-bisbilhoteiros-5357.html
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