Entrevistas e perfis
Mesmo que consumismo chegasse a Cuba, país não perderia identidade, diz assessor de Raúl
14/02/2015
- Opinión
Abel Prieto é ex-ministro da Cultura do governo de Fidel Castro e atual assessor para assuntos culturais; para ele, Cuba se beneficiaria de aproximação com EUA
Nascido em 1950 em Pinar del Río, na província ocidental de Cuba, Abel Prieto Jiménez é uma personalidade conhecida da cultura cubana. Depois de estudos em Letras Hispânicas na Universidade de Havana, ele foi professor de literatura por vários anos. Em 1988, foi eleito o chefe da União Nacional dos Escritores e Artistas de Cuba (UNEAC), se transformando em um dos presidentes mais jovens da história da instituição.
Durante uma reunião com Fidel Castro em meados dos anos 1990, Abel Prieto relatou ao líder da Revolução Cubana suas divergências e declarou seus pontos de vista. Alguns pensaram que a sua carreira seria irremediavelmente afetada. Semanas depois, Castro decidiu nomeá-lo ministro da Cultura, em 1997, cargo que ocuparia até 2012. Em março de 2012, Prieto deixou o Ministério da Cultura para ser assessor especial do presidente Raúl Castro.
Para o ex-ministro, Cuba se beneficiaria de uma aproximação dos EUA e, por mais que turistas norte-americanos trouxessem a cultura do consumismo pra ilha, os cubanos não perderiam sua identidade. Ainda segundo Prieto, o país tem lutado muito, especialmente na área de cultura, contra a burocracia, que classificou como “praga” que causa “dano incalculável”.
Opera Mundi: O senhor foi ministro de Cultura durante quinze anos. Hoje, o senhor é assessor do presidente Raúl Castro na área da cultura. Qual é seu papel?
Abel Prieto: Minha tarefa consiste em promover a cultura cubana e garantir que as instituições culturais cubanas promovam os melhores talentos do nosso país. Meu trabalho consiste também em vincular a cultura e o povo, desenvolver as relações culturais internacionalmente e defender a política cultural da Revolução.
OM: A política estadunidense em relação a Cuba, particularmente as sanções econômicas, tem um impacto na cultura cubana. Qual seu ponto de vista a respeito?
AP: O impacto econômico é evidente. O presidente Barack Obama permite intercâmbios culturais, mas não comerciais. Muitos artistas, como Los Van Van, Carlos Varela, a Escola Nacional de Ballet e Silvio Rodriguez realizaram turnês pelos Estados Unidos, mas não puderem receber nem um centavo por suas atividades.
O maior mercado do mundo para as artes é o mercado estadunidense. Nossos artistas, escritores, intelectuais não têm acesso a ele. Nossas editoras, nossas galerias artísticas e nossas empresas culturais são proibidas de entrar nos Estados Unidos.
O povo norte-americano perde uma grande possibilidade de enriquecer com o contato com o nosso povo, por causa de uma política irracional, absurda e indefensível. Acontece o mesmo com o povo cubano, tão curioso intelectualmente, tão voraz de um ponto de vista cultural, que se vê privado de um intercâmbio fecundo com seu vizinho do Norte. Quando esses intercâmbios acontecem em Cuba, como durante a visita de uma artista estadunidense, os efeitos são impressionantes.
OM: Cuba está disposta a se aproximar dos Estados Unidos?
AP: Cuba se beneficiaria muito de uma aproximação dos Estados Unidos. É verdade que uma avalanche de turistas norte-americanos traria a cultura do consumismo, mas acredito que os aspectos positivos superariam amplamente os efeitos negativos. Muitos cidadãos norte-americanos têm muita curiosidade em descobrir “a ilha proibida”, já que é o único país do mundo que não têm direito de visitar. Lembro-me de um encontro com um importante cineasta, no cine Chaplin de Havana, no qual ele se assombrou ao ver a modernidade do lugar, a presença de um Festival de Cinema por ano etc. Isso demonstra até que ponto a imagem de Cuba na sociedade estadunidense não corresponde à realidade. O melhor antídoto contra isso é a mensagem cultural, que tocará com todo seu vigor e autenticidade o povo norte-americano e destruirá os estereótipos.
OM: Não há riscos nessa aproximação?
AP: Nossa identidade sofreria? Creio que temos uma vantagem. A identidade nacional cubana e a cultura nacional têm um núcleo de resistência muito forte e, ao mesmo tempo, se nutrem de investimentos exteriores. Somos descendentes de colonos espanhóis. Também somos o fruto dos escravos da África e a herança deste terrível genocídio. Somos também o resultado da imigração chinesa, polaca etc. Cuba é uma cultura mestiça capaz de absorver tudo sem atentar contra sua natureza profunda.
Então, não creio que perderíamos nossa identidade com uma chegada massiva de turistas norte-americanos. A cultura americana está muito presente em Cuba e nos chega por meio do cinema, da televisão, da música, e do meio milhão de cubano-americanos que nos visitam todos os anos. A cultura hegemônica associada à globalização está nos afetando e a resposta é de ordem educativa. Não vemos nossa realidade como o centro do mundo. Nossa vocação é universalista, como nos ensinaram José Martí e Fidel Castro. Creio que, em termos de valores, os norte-americanos somente poderiam enriquecer com um intercâmbio frutífero com os cubanos.
O que nos prejudica é a situação atual que é perversa, pois nos impede de adquirir medicamentos para as crianças doentes, com uma autoridade que nos persegue constantemente, que persegue os bancos que têm relações comerciais conosco. Tudo isso é de uma grande crueldade.
OM: Quais são os obstáculos para uma plena normalização das relações entre ambas as nações?
AP: Creio que é necessário voltar ao século XIX para entender a história do desacordo que opõe Cuba e Estados Unidos. John Quincy Adamns elaborou a história da “fruta madura”. Cuba deveria gravitar em torno da órbita estadunidense. Para os estrategistas do Norte, a ilha pertencia à sua zona de influência. José Martí o denunciou com vigor.
Em 1959, Cuba conseguiu sua independência e se tornou uma grande potência moral que mostra para o mundo que é possível enfrentar o imperialismo. Cuba é um exemplo de soberania para a América Latina e para o mundo. Cuba deu prova de uma grande tenacidade na defesa de seus princípios. Penso que é o que os Estados Unidos não perdoam. Davi pôde resistir a Golias. Ainda que mudássemos de modelo e adotássemos o capitalismo selvagem que está destruindo a humanidade, não perderíamos essa afronta. Os Estados Unidos somente aceitam a subordinação. Não perderam a esperança de fazer de Cuba uma colônia. Veja que os pretextos para manter a hostilidade contra Cuba mudam de acordo com as épocas.
Em geral, os Estados Unidos dão prova de pragmatismo em sua política exterior e é uma característica de sua idiossincrasia. Mas, no caso de Cuba, essa tradição clássica desaparece em favor de uma atitude irracional. Os Estados Unidos sabem se mostrar grandes em alguns aspectos. Em troca, em relação à sua política contra Cuba, se mostram muito pequenos. Sua atitude é realmente pouco honrada, já que não se obtém nenhuma glória em sitiar um povo que jamais agrediu os Estados Unidos.
OM: Há quem diga que as autoridades cubanas usam as sanções econômicas como desculpa para explicar o fracasso do sistema.
AP: Por que, então, não nos tiram essa desculpa? Não seria mais didático fazer isso? Por que não tiramos esse pretexto para mostrar ao mundo que nosso modelo de sociedade é ineficiente? Isso não quer dizer que não tenhamos cometido erros. Essa Revolução foi edificada por homens e mulheres e não é obra divina. É imperfeita por definição.
OM: Qual será o benefício para os Estados Unidos em caso de mudança de política?
AP: Nosso presidente Raúl Castro afirmou várias vezes que estamos dispostos a dialogar de igual para igual, sobre todos os temas possíveis e imagináveis, sem atentar contra nossos princípios, nossa dignidade e nossos direitos. Aceitaremos sempre o diálogo respeitoso entre dois países soberanos.
De um ponto de vista econômico, a indústria turística estadunidense seria a principal beneficiária de uma normalização das relações entre nossos dois países. Em termos de imagem, isso teria um impacto muito positivo para os Estados Unidos, que sairiam de seu isolamento. [Seria um benefício] para os cidadãos dos Estados Unidos, [que] recuperariam seu direito de viajar para Cuba, de comercializar com a ilha. De uma perspectiva moral, todas as pessoas dignas que vivem nos Estados Unidos, e são muitas, se orgulhariam de uma mudança de política em relação a Cuba.
OM: Quais são os desafios para a Cuba de hoje?
AP: Estamos lutando uma grande batalha contra a burocracia, que é uma praga para nosso país e que nos causou um dano incalculável. Isso concerne à área da cultura. Vejo todos os dias como essa burocracia, devoradora de energias e recursos, desperdiça os fundos, sem nenhuma relação com os processos culturais. Devemos construir um socialismo mais eficiente, mais fluído, menos sectário, mais audaz, mais revolucionário.
Abrimos nossa economia para a empresa privada. No setor cultural já existia o trabalho por conta própria dos artistas plásticos, que geram patrimônio com suas obras – e reforçam o tecido espiritual de nossa nação. Temos muitos artistas que não são empregados do Estado e não se transformaram em conservadores ou reacionários. Existe certo marxismo vulgar, que chegou com os manuais soviéticos, que associa o trabalho privado ao reacionário e que o cataloga como inimigo do povo. Na realidade, acontece o contrário, já que o pequeno negócio e a cooperativa reforçam o socialismo. Da mesma forma, nosso Partido Comunista deve se abrir mais para a diversidade, a análise crítica, à discrepância e ao debate. Deve ser menos dogmático. Nosso caminho é autenticamente cubano e envolve toda a população. Mas não pretendemos ser um modelo.
OM: O que Fidel Castro representa para o senhor?
AP: Eu tinha oito anos quando a Revolução triunfou. Meu pai foi membro do Movimento 26 de Julho, discípulo de José Marti e grande admirador de Fidel Castro. Lembro-me dos longos discursos de Fidel Castro pela televisão. Não entendia muito, já que era muito jovem, mas era uma pessoas que cativava. Lembro-me de Fidel, durante a crise dos mísseis e da valentia das pessoas. Corríamos o risco de ser varridos da face da terra, mas não havia pânico entre a população.
Quando estava na universidade, o vi várias vezes. Conheci Fidel pessoalmente na Casa de las Américas, nos anos 1970. Havia um curso sobre jovens escritores e o Roberto Fernández Retamar o apresentou para mim. Lembro que Fidel brincou com Gabriel García Márquez, que estava com ele e lhe perguntou: “Você acredita que um deles será Prêmio Nobel algum dia?”
Quando integrei a União de Escritores e Artistas de Cuba como presidente, tive o privilégio excepcional, durante um congresso, de me encontrar com Fidel. Lembro que um amigo tinha me dito que Fidel nunca se interessava superficialmente pelas coisas, e que fazia muitas perguntas. Então, me preparei e reuni muitos dados sobre os membros da UNEAC, por províncias, o número de mulheres, a faixa de gerações etc. Decorei tudo. No dia seguinte, cheguei para a reunião com os nervos à flor da pele. Lembro-me da primeira pergunta, uma vez que não sabia a resposta: “Quando metros quadrados tem o pátio da sede da UNEAC?”. Meu secretário me deu uma cifra, evidentemente falsa, e Fidel começou a rir. Creio que tenho o recorde nacional de equívocos com Fidel, já que sempre dou dados errados para ele.
Tem sido um grande privilégio porque encontrei um homem que tinha uma grande visão estratégica com uma paixão pelo detalhe. É capaz de sintetizar o futuro da humanidade e, ao mesmo tempo, avaliar com grande precisão cada detalhe.
OM: Qual é a importância de Fidel Castro para a cultura cubana?
AP: Fidel é um intelectual brilhante, um grande leitor. Retamar me disse um dia que Fidel não lia José Martí, mas o respirava. Há uma grande articulação entre Martí e Fidel, ainda que sejam de épocas diferentes.
Lembro que, em 1994, em pleno Período Especial, com uma crise econômica gravíssima, Fidel se reuniu conosco na UNEAC e disse: “O primeiro que temos de salvar é a cultura”. Tinha seis horas de eletricidade por dia. Foi um momento muito amargo, uma época muito difícil de um ponto de vista material. Mas a prioridade era a cultura.
Fidel traçou uma política cultural muito diferente do “realismo socialista” da Europa do Leste, muito aberta, muito unitária, com uma implicação constante dos artistas de todas as gerações e de todas as tendências. Essa política cultural nos salvou, já que nossos inimigos nunca puderam contar com uma quinta coluna na intelectualidade cubana. Jamais houve uma oposição intelectual em Cuba paga pelos Estados Unidos. O pensamento de Fidel nos permitiu conceber uma política de cultura distanciada dos dogmas, das exclusões, uma política cultural de vanguarda. Fidel sempre se aliou a uma vanguarda intelectual de nosso país, a vanguarda artística de nossa nação. Também fez com que essa vanguarda trabalhasse a favor da inclusão do povo na cultura. Não se tratava de uma aliança elitista, mas de uma aliança integradora. Para Fidel, a cultura é essencial para transformar as pessoas, para a emancipação humana. Fidel dizia muito o seguinte: “Sem cultura, não existe liberdade possível.”
Paris - 14/02/2015
- Salim Lamrani, Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, Opera Mundi é professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Seu último livro se chama Cuba, the Media, and the Challenge of Impartiality, New York, Monthly Review Press, 2014, com prólogo de Eduardo Galeano.
Página no Facebook: https://www.facebook.com/SalimLamraniOfficiel
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