"A CIA se converteu em uma organização paramilitar"
06/09/2011
- Opinión
Em entrevista à Carta Maior, o historiador e cientista político Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira aponta a ação clandestina de forças especiais dos Estados Unidos, Inglaterra e França nos conflitos da Líbia e Síria e critica a política externa do governo Barack Obama que usa os direitos humanos para justificar intervenções em qualquer parte do mundo. "A CIA mais e mais se torna uma força paramilitar, deixando de ser uma agência de espionagem e coleta de inteligência. Os drones, aviões sem pilotos, teleguiados pela CIA, já mataram, desde 2001, mais de 2.000 supostos militantes e civis em vários países", afirma Moniz Bandeira.
Leia a seguir a entrevista concedida por email pelo professor Moniz Bandeira à Carta Maior, desde a Alemanha. Nela, entre outras coisas, ele defende que "a questão dos direitos humanos e defesa das populações civis virou uma panacéia que serve para que os Estados Unidos, França e Grã-Bretanha violem os direitos humanos, com rigorosos embargos comerciais, e massacrem populações civis, como o fizeram na Líbia". Além disso, sustenta, o presidente Obama pretende continuar, por outros meios, a política do presidente George W. Bush, mudando o conceito da OTAN e contrariando o próprio tratado que a criou, ao dar-lhe capacidade de polícia global.
Carta Maior: Qual sua avaliação sobre a participação das grandes potências ocidentais, especialmente, Estados Unidos, Inglaterra e França nos conflitos da Líbia e da Síria. Há uma mesma lógica atuando nos dois casos?
Moniz Bandeira – Não se trata de teoria conspiratória. Mas parece que uma há lógica na sucessão de levantes, que começaram na Tunísia, em dezembro de 2010, depois, simultaneamente, se estenderam ao Egito e à Síria, em 25/26 de janeiro de 2011, e à Líbia, em 17 de fevereiro. As condições econômicas, sociais e políticas estavam maduras. Em todos esses países, há enorme taxa de desemprego, afetando grande parte da juventude, extrema pobreza, inflação, alta dos preços dos alimentos e o ressentimento político provocado pela repressão das ditaduras.
Está provado, porém, que militares das forças especiais dos Estados Unidos, Inglaterra e França, vestidos como árabes, os false-flaggers, i. e., um “illegal team”, com identidade de outros países, de modo que não sejam identificados como ingleses, americanos ou franceses, estão agindo abertamente na Líbia e não se pode descartar a possibilidade de que agentes da CIA e do M16 estejam também na Síria. É muito pouco provável que as manifestações de protestos, iniciadas em 26 de janeiro, ainda continuem e enfrentem, diariamente, dura repressão, oito meses depois, sem que recebam encorajamento e algum apoio da Santa Aliança – Estados Unidos, Inglaterra e França.
O WikiLeak há poucos meses revelou um despacho secreto, da Embaixada dos Estados Unidos em Damasco, sobre “Next Steps For A Human Rights Strategy”, informando que, de 2005 até setembro de 2010, os Estados Unidos, com os recursos do Middle East Partnership Initiative (MEPI), tinham destinado secretamente aos grupos da oposição, na Síria, um montante de US$ 12 milhões, bem como financiado a instalação de um canal de TV via satélite, transmitindo para dentro do país programas contra o regime de Bashar al-Assad.
Carta Maior - Além desse encorajamento estrangeiro, que outros fatores estariam contribuindo para alimentar os protestos na Síria?
Moniz Bandeira - Há fortes fatores religiosos. A maioria da população, na Síria, é salafista, uma das correntes fundamentalistas do Islã, que pretende restabelecer os primitivos princípios religiosos do Corão. É similar ao wahhabismo, doutrina defendida por Muhammad ibn Abd-al-Wahhab e prevalecente, na Arábia Saudita. Bashar al-Assad, porém, é um alauita, outro segmento do Islã, que dissimula sua doutrina com a taqiyya, uma prática xiita, seita islâmica dominante no Irã e da qual mais se aproxima. Os alauitas constituem apenas 10% da população da Siria, mas dominam e controlam todo o aparelho do Estado há várias décadas, pelo menos desde os anos 1970, quando Hafez al-Assad, do Partido Ba’ath, assumiu a presidência da Síria.
O Partido Ba’ath, fundado em Damasco, em 1946, mesclava ideais igualitários, socializantes, interesses nacionalistas e objetivos pan-árabes, contrários à política imperialista das potências ocidentais. Alguns dos seus ramos surgiram em outros países do Oriente Médio, como o Iraque, onde deteve o poder até a queda de Sadam Hussein, em 2003.
Carta Maior - A Síria tem pouco petróleo. Qual ou quais os interesses dos Estados Unidos, França e Inglaterra na derrubada do regime de Bashar al-Assad?
Moniz Bandeira – Esses países têm interesses estratégicos, como, por exemplo, assumir o controle de todo o Mediterrâneo e isolar politicamente o Irã, que está aliado à Síria, bem como restringir a influência de Rússia e China no Oriente Médio. A Rússia, desde 1971, opera o porto de Tartus, na Síria, e projeta reformá-lo e ampliá-lo, como base naval, em 2012, de modo que possa receber grandes navios de guerra, garantindo assim sua presença no Mediterrâneo. Consta que a Rússia também planejava instalar bases navais na Líbia e no Yemen. E, conforme se pode deduzir do telegrama da Embaixada dos EUA em Damasco, publicado pelo WikiLeaks, tudo indica que o financiamento da oposição, na Síria, desde 2005, pelo menos, visou à derrubada do regime de Bashar al-Assad, de modo a impedir o aprofundamento, no âmbito naval, de suas relações com a Rússia.
Daí que dificilmente os Estados Unidos conseguirão estender à Síria a mesma estratégia que desenvolveu na Líbia, juntamente com a Grã-Bretanha e a França. A Rússia, ainda percebida pelos Estados Unidos como seu grande rival, e a China opõem-se até mesmo às sanções contra o regime de Bashar al-Assad.
Carta Maior - Neste contexto, como pode ser entendida a doutrina do presidente Barack Obama no que se refere à política externa dos EUA?
Moniz Bandeira – Em discurso pronunciado na George Washington University, em 28 de março de 2011, o presidente Obama declarou que, mesmo não estando a segurança dos americanos diretamente ameaçada, a ação militar pode ser justificada – no caso de genocídio, por exemplo – e os Estados Unidos podem intervir, mas não atuarão isoladamente. Sua doutrina, ele ainda delineou, claramente, em discurso pronunciado no Parlamento britânico, durante a visita de Estado que fez ao Reino Unido, entre 24 e 16 de maio de 2011. O presidente Obama disse que “we do these things because we believe not simply in the rights of nations; we believe in the rights of citizens”. E mais adiante declarou que carece de peso o argumento segundo o qual “a nation’s sovereignty is more important than the slaughter of civilians within its borders” e reafirmou que “nós” pensamos de modo diferente, aceitamos uma responsabilidade maior , i. e. que a comunidade internacional deve atuar quando um líder está ameaçando massacrar seu povo.
Tais palavras significam que os Estados Unidos, juntamente com a Grã-Bretanha e França, não mais respeitarão as normas do Direito Internacional, estabelecidas desde o Tratado de Westphalia, com base nos princípios de soberania do Estado nação, e poderão intervir em qualquer país, a pretexto de razões humanitárias ou de defesa da população civil, mas para defender seus interesses econômicos e estratégicos. Assim os chefes de governo dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, se quiserem, podem alegar defesa da população indígenas ou do meio ambiente e invadir a Amazônia.
A questão dos direitos humanos e defesa das populações civis virou uma panacéia que serve para que os Estados Unidos, França e Grã-Bretanha violarem os direitos humanos, com rigorosos embargos comerciais, e massacrar populações civis, como o fizeram na Líbia. Também o que pretende o presidente Obama, a continuar, por outros meios, à política do presidente George W. Bush, é mudar o conceito da OTAN, contrariando o próprio tratado que a criou, e dar-lhe capacidade de polícia global (global cop) para enfrentar as “novas ameaças”, como "terrorism and piracy, cyber attacks and ballistic missiles”.
Isto significa que a OTAN deixará de ser uma organização de defesa da Europa Ocidental, objetivo de sua criação no tempo da Guerra Fria, e tornar-se-à um instrumento de agressão, pronta para intervir em todos os continentes, com ou sem autorização da ONU. As sanções contra a Síria são iguais às que foram aplicadas contra a Líbia, logo no início da rebelião. É a primeira forma de intervir num conflito interno em qualquer outro país, onde o governo, que não convém à Santa Aliança, reprima as manifestações para derrubá-lo. Mas evidentemente que as manifestações populares contra as ditaduras na Arábia Saudita, Bahrein e Jordânia, clientes dos Estados Unidos, não podem esperar qualquer ajuda.
Carta Maior - Qual seria mais especificamente essa estratégia dos Estados Unidos no Oriente Médio e norte da África e quais as forças especiais estariam atuando na Líbia e, provavelmente, na Síria?
Moniz Bandeira - A estratégia atual dos Estados Unidos, implementada pelo presidente Obama, que bem mereceu o Prêmio Nobel da Paz, é ampliar o uso de drones, aviões armados e manejados eletronicamente pela CIA, para matar supostos terroristas, militantes da al-Qa’ida e Talibans, bem como centenas de civis desarmados atingindo-os, como o faz, na Líbia, Afeganistão, Paquistão e Yemen. Essa é a nova tarefa da CIA, que mais e mais se torna uma força paramilitar, deixando de ser uma agência de espionagem e coleta de inteligência. Os drones (General Atomics MQ-1 Predator) esses aviões sem pilotos, teleguiados pela CIA, já mataram, desde 2001, mais de 2.000 supostos militantes e civis, e o Centro Contra-Terrorismo (CTC) dispõe atualmente de cerca de 2.000 empregados que trabalham na localização dos alvos e atacá-los.
O presidente Obama incrementou essas operações, sem arriscar a vida de soldados, bem como o emprego de uma outra organização militar, que matou e interrogou mais supostos terroristas e Talibans do que a CIA, desde 2001. Trata-se do Joint Special Operations Command (JSOC), à qual está subordinada a U.S. Navy SEAL’s (Sea, Air and Land Teams), integrante do Comando de Operações Especiais (USSOCOM), unidade encarregada de operações terrestres e marítimas, guerra não-convencional, resgate, terrorismo e contra-terrorismo etc. Um comando do SEAL’s recebeu a missão de assassinar Osama Bin Laden, no Paquistão, em 2 de maio de 2011. Essa é tarefa da qual o Joint Special Operations Command (JSOC) está incumbida, executando o programa desenvolvido pelo general David Petraeus, atual diretor da CIA, quando comandava as tropas americanas no Afeganistão .
O programa consiste em “kill/capture”, i. e. matar/capturar, em qualquer região do mundo, terroristas e Talibans, constantes de uma Joint Prioritized Effects List (JPEL), que inclui até americanos, com fundamento em premissa legal ou extra-legal, conforme diretriz classificada do presidente Obama. O tenente-coronel John Nagl, assessor de contra-insurgência do general David Patraeus no Afeganistão, considerou o JSOC uma maquina de matar contra o terrorismo em uma escala quase industrial ("an almost industrial-scale counterterrorism killing machine"). Trata-se, na realidade, de um comando de esquadrões da morte do Pentágono.
Comandos do SEAL’s atuaram na Líbia, assim como da Direction générale de la sécurité extérieure (DGSE), da Brigade des forces spéciales terre (BFST), subordinada ao Commandement des opérations spéciales (COS), M16 (Inteligence Service) e Special Air Service SAS (Special Air Service) como se fossem árabes, os chamados “rebeldes” não teriam avançado muito além de Benghazi. No dia 20 de agosto, dia em que acabou o jejum do Ramandan, um navio da OTAN desembarcou no litoral da Líbia com armamentos pesados, antigos jihadistas e tropas especiais do JSOC, dos Estados Unidos, BFST, da França, e SAS, do Reino Unido, sob o comando de oficiais da OTAN, que procederam à conquista de Trípoli.
O balanço da Operation Odyssey Dawn, após 100 de bombardeios da OTAN, é trágico: 6.121 civis mortos e feridos. De acordo com as estatísticas 3.093 homens foram mortos ou feridos; 260 mulheres mortas e 1.318 feridas; 141 crianças mortas e 641 feridas. A OTAN, por sua vez, informa que nos primeiros 90 dias executou um total de 13.184 saídas, entre as quais 4.963 ataques, danificando ou destruindo mais de 2.500 alvos militares, cerca de 460 instalações militares, 300 sistemas de radar depósitos, além de aproximadamente 170 locais de controle e comando, e cerca de 450 tanques. O informe não se refere aos escombros que os bombardeios deixaram nem às milhares de vítimas civis, mortos, feridos, desabrigados e refugiados.
Esse foi o resultado da Resolução 1.973, do Conselho de Segurança Nacional, autorizando a Santa Aliança (Estados Unidos, Inglaterra e França) a proteger os civis na Líbia e que ela aproveitou para legitimar o direito de intervenção humanitária, para defender seus próprios interesses econômicos, geopolíticos e estratégicos no Mediterrâneo. Este é modo americano de fazer guerra (American Way of War), adotado pelo presidente Obama. Mas os objetivos são os mesmos do presidente George W. Bush, atendendo aos interesses do complexo industrial-militar. Sem agir unilateralmente, ele deseja realizá-los, transformando por meio da OTAN, de forma a repartir os custos com seus membros, principalmente Inglaterra, França e Alemanha, a fim de evitar que a guerra seja percebida como entre os Estados Unidos e a Líbia ou outro qualquer país.
Carta Maior - Qual deve ser o futuro da Líbia? O senhor acredita que Kadafi possa resistir e permanecer como um agente político influente no conflito?
Moniz Bandeira – É difícil prever. A Líbia é um é um país ainda divido em tribos e a lealdade é essencial entre seus membros. De qualquer modo, vivo ou morto, o espectro de Kadafi, como comandante ou mito, estará por trás da resistência, que mais dias menos dias começará a ocorrer, porque as tribos não aceitarão a presença de tropas estrangeiras no seu território. Porém, uma das conseqüências da “intervenção humanitária” na Líbia será provavelmente a proliferação das armas nucleares. Como muito bem observou Leonam dos Santos Guimarães, especialista em energia nuclear e assistente da presidência da Eletrobrás – Eletronuclear, a queda do regime de Kadafi faz supor que a aquisição de armas nucleares se tornará atraente para países que se sentem ameaçados pelo Ocidente.
Kadafi, em dezembro de 2003, concordou em abandonar seu programa de armas nucleares, com base em importações clandestinas de urânio natural, centrífugas e equipamentos de conversão, bem como a construção de instalações em escala piloto. Se ele tivesse avançado no seu programa de armas nucleares, a campanha de bombardeios da OTAN teria ocorrido? – perguntou Leonam dos Santos Guimarães. A resposta seria certamente não. O direito internacional só é respeitado quando certo equilíbrio de poder e as nações ameaçadas têm possibilidade de retaliar. Daí que é quase impossível impedir que o Irã desenvolva suas armas nucleares, não para atacar Israel, mas para defender-se da Santa Aliança ocidental.
Carta Maior - No caso da Síria, qual sua avaliação sobre a posição de outras nações árabes e de Israel frente esse conflito?
Moniz Bandeira – Não há informações sobre o envolvimento de outras nações árabes nem de Israel na Síria, onde ainda não há propriamente uma guerra civil, mas uma onda de protestos. Todos estão a observar o desdobramento da crise. A Síria é também um país dividido em muitas tribos e o governo conta com o respaldo do Irã, que provavelmente lhe fornece ou pode fornecer armamentos. São muito estreitas suas conexões com o Hizbollah, uma força política e paramilitar xiita, com sede no Líbano. Consta que o Hizbollah dispõe de 30.000 a 40.000 mísseis, apontadas para Israel e difícil de localizar, porque estão instalados em casas de família. Essa é uma das razões – e há outras – pelas quais nem os outros países árabes nem Israel querem envolvimento nos protestos que ocorrem na Síria.
Carta Maior - Os tambores da guerra estão soando em Israel, diante da perspectiva do reconhecimento do Estado palestino na ONU, em setembro. Há, na sua avaliação, possibilidade de uma generalização de conflitos no Oriente Médio?
Moniz Bandeira - Está previsto que Mahmoud Ridha Abbas (Abu Mazen), como presidente da Autoridade Palestina, pronunciará um discurso, na 66ª Assembléia Geral da ONU, a realizar-se entre 21 e 27 de setembro, no qual solicitará o reconhecimento do Estado palestino. A admissão de um novo membro requer o apoio de 2/3 dos Estados presentes na Assembléia Geral. Se obtiver esse quorum a Autoridade Palestina, como Estado, será admitida apenas na condição de observador, pois o reconhecimento como membro pleno depende de aprovação do Conselho de Segurança da ONU e, por conseguinte, do voto dos Estados Unidos.
Há uma enorme expectativa em Israel, com respeito à posição que os Estados Unidos tomarão na Assembléia Geral, posto que, no dia 5 de setembro, vazou para a imprensa a informação de que o ex-secretário de Defesa do presidente Barack Obama, Robert Gates, antes de aposentar-se este ano, criticou duramente o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanjahu, em reunião do National Security Council Principals Committee dos Estados Unidos. Gates chamou Israel de “an ungrateful ally” (aliado ingrato) e disse que a política de Netanyahu põe seu país em perigo, recusando-se a negociar, em meio a um crescente isolamento e o desafio demográfico, se mantém o controle da Faixa de Gaza. Presume-se que a notícia vazou, com o beneplácito de Obama, como advertência a Netanyahu.
O que se teme, em Tel Aviv, é que milhões de palestinos, exilados nos demais países árabes, marchem para as fronteiras de Israel e avancem sobre seu território, se a Assembléia Geral da ONU reconhecer o Estado palestino, ainda que como observador. Os palestinos exilados não dispõem de outra nacionalidade porque, nos anos 1950, a Liga Árabe decidiu não concedê-la, a fim de manter na agenda a necessidade de criar o Estado palestino.
Carta Maior: Qual sua avaliação sobre a participação das grandes potências ocidentais, especialmente, Estados Unidos, Inglaterra e França nos conflitos da Líbia e da Síria. Há uma mesma lógica atuando nos dois casos?
Moniz Bandeira – Não se trata de teoria conspiratória. Mas parece que uma há lógica na sucessão de levantes, que começaram na Tunísia, em dezembro de 2010, depois, simultaneamente, se estenderam ao Egito e à Síria, em 25/26 de janeiro de 2011, e à Líbia, em 17 de fevereiro. As condições econômicas, sociais e políticas estavam maduras. Em todos esses países, há enorme taxa de desemprego, afetando grande parte da juventude, extrema pobreza, inflação, alta dos preços dos alimentos e o ressentimento político provocado pela repressão das ditaduras.
Está provado, porém, que militares das forças especiais dos Estados Unidos, Inglaterra e França, vestidos como árabes, os false-flaggers, i. e., um “illegal team”, com identidade de outros países, de modo que não sejam identificados como ingleses, americanos ou franceses, estão agindo abertamente na Líbia e não se pode descartar a possibilidade de que agentes da CIA e do M16 estejam também na Síria. É muito pouco provável que as manifestações de protestos, iniciadas em 26 de janeiro, ainda continuem e enfrentem, diariamente, dura repressão, oito meses depois, sem que recebam encorajamento e algum apoio da Santa Aliança – Estados Unidos, Inglaterra e França.
O WikiLeak há poucos meses revelou um despacho secreto, da Embaixada dos Estados Unidos em Damasco, sobre “Next Steps For A Human Rights Strategy”, informando que, de 2005 até setembro de 2010, os Estados Unidos, com os recursos do Middle East Partnership Initiative (MEPI), tinham destinado secretamente aos grupos da oposição, na Síria, um montante de US$ 12 milhões, bem como financiado a instalação de um canal de TV via satélite, transmitindo para dentro do país programas contra o regime de Bashar al-Assad.
Carta Maior - Além desse encorajamento estrangeiro, que outros fatores estariam contribuindo para alimentar os protestos na Síria?
Moniz Bandeira - Há fortes fatores religiosos. A maioria da população, na Síria, é salafista, uma das correntes fundamentalistas do Islã, que pretende restabelecer os primitivos princípios religiosos do Corão. É similar ao wahhabismo, doutrina defendida por Muhammad ibn Abd-al-Wahhab e prevalecente, na Arábia Saudita. Bashar al-Assad, porém, é um alauita, outro segmento do Islã, que dissimula sua doutrina com a taqiyya, uma prática xiita, seita islâmica dominante no Irã e da qual mais se aproxima. Os alauitas constituem apenas 10% da população da Siria, mas dominam e controlam todo o aparelho do Estado há várias décadas, pelo menos desde os anos 1970, quando Hafez al-Assad, do Partido Ba’ath, assumiu a presidência da Síria.
O Partido Ba’ath, fundado em Damasco, em 1946, mesclava ideais igualitários, socializantes, interesses nacionalistas e objetivos pan-árabes, contrários à política imperialista das potências ocidentais. Alguns dos seus ramos surgiram em outros países do Oriente Médio, como o Iraque, onde deteve o poder até a queda de Sadam Hussein, em 2003.
Carta Maior - A Síria tem pouco petróleo. Qual ou quais os interesses dos Estados Unidos, França e Inglaterra na derrubada do regime de Bashar al-Assad?
Moniz Bandeira – Esses países têm interesses estratégicos, como, por exemplo, assumir o controle de todo o Mediterrâneo e isolar politicamente o Irã, que está aliado à Síria, bem como restringir a influência de Rússia e China no Oriente Médio. A Rússia, desde 1971, opera o porto de Tartus, na Síria, e projeta reformá-lo e ampliá-lo, como base naval, em 2012, de modo que possa receber grandes navios de guerra, garantindo assim sua presença no Mediterrâneo. Consta que a Rússia também planejava instalar bases navais na Líbia e no Yemen. E, conforme se pode deduzir do telegrama da Embaixada dos EUA em Damasco, publicado pelo WikiLeaks, tudo indica que o financiamento da oposição, na Síria, desde 2005, pelo menos, visou à derrubada do regime de Bashar al-Assad, de modo a impedir o aprofundamento, no âmbito naval, de suas relações com a Rússia.
Daí que dificilmente os Estados Unidos conseguirão estender à Síria a mesma estratégia que desenvolveu na Líbia, juntamente com a Grã-Bretanha e a França. A Rússia, ainda percebida pelos Estados Unidos como seu grande rival, e a China opõem-se até mesmo às sanções contra o regime de Bashar al-Assad.
Carta Maior - Neste contexto, como pode ser entendida a doutrina do presidente Barack Obama no que se refere à política externa dos EUA?
Moniz Bandeira – Em discurso pronunciado na George Washington University, em 28 de março de 2011, o presidente Obama declarou que, mesmo não estando a segurança dos americanos diretamente ameaçada, a ação militar pode ser justificada – no caso de genocídio, por exemplo – e os Estados Unidos podem intervir, mas não atuarão isoladamente. Sua doutrina, ele ainda delineou, claramente, em discurso pronunciado no Parlamento britânico, durante a visita de Estado que fez ao Reino Unido, entre 24 e 16 de maio de 2011. O presidente Obama disse que “we do these things because we believe not simply in the rights of nations; we believe in the rights of citizens”. E mais adiante declarou que carece de peso o argumento segundo o qual “a nation’s sovereignty is more important than the slaughter of civilians within its borders” e reafirmou que “nós” pensamos de modo diferente, aceitamos uma responsabilidade maior , i. e. que a comunidade internacional deve atuar quando um líder está ameaçando massacrar seu povo.
Tais palavras significam que os Estados Unidos, juntamente com a Grã-Bretanha e França, não mais respeitarão as normas do Direito Internacional, estabelecidas desde o Tratado de Westphalia, com base nos princípios de soberania do Estado nação, e poderão intervir em qualquer país, a pretexto de razões humanitárias ou de defesa da população civil, mas para defender seus interesses econômicos e estratégicos. Assim os chefes de governo dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, se quiserem, podem alegar defesa da população indígenas ou do meio ambiente e invadir a Amazônia.
A questão dos direitos humanos e defesa das populações civis virou uma panacéia que serve para que os Estados Unidos, França e Grã-Bretanha violarem os direitos humanos, com rigorosos embargos comerciais, e massacrar populações civis, como o fizeram na Líbia. Também o que pretende o presidente Obama, a continuar, por outros meios, à política do presidente George W. Bush, é mudar o conceito da OTAN, contrariando o próprio tratado que a criou, e dar-lhe capacidade de polícia global (global cop) para enfrentar as “novas ameaças”, como "terrorism and piracy, cyber attacks and ballistic missiles”.
Isto significa que a OTAN deixará de ser uma organização de defesa da Europa Ocidental, objetivo de sua criação no tempo da Guerra Fria, e tornar-se-à um instrumento de agressão, pronta para intervir em todos os continentes, com ou sem autorização da ONU. As sanções contra a Síria são iguais às que foram aplicadas contra a Líbia, logo no início da rebelião. É a primeira forma de intervir num conflito interno em qualquer outro país, onde o governo, que não convém à Santa Aliança, reprima as manifestações para derrubá-lo. Mas evidentemente que as manifestações populares contra as ditaduras na Arábia Saudita, Bahrein e Jordânia, clientes dos Estados Unidos, não podem esperar qualquer ajuda.
Carta Maior - Qual seria mais especificamente essa estratégia dos Estados Unidos no Oriente Médio e norte da África e quais as forças especiais estariam atuando na Líbia e, provavelmente, na Síria?
Moniz Bandeira - A estratégia atual dos Estados Unidos, implementada pelo presidente Obama, que bem mereceu o Prêmio Nobel da Paz, é ampliar o uso de drones, aviões armados e manejados eletronicamente pela CIA, para matar supostos terroristas, militantes da al-Qa’ida e Talibans, bem como centenas de civis desarmados atingindo-os, como o faz, na Líbia, Afeganistão, Paquistão e Yemen. Essa é a nova tarefa da CIA, que mais e mais se torna uma força paramilitar, deixando de ser uma agência de espionagem e coleta de inteligência. Os drones (General Atomics MQ-1 Predator) esses aviões sem pilotos, teleguiados pela CIA, já mataram, desde 2001, mais de 2.000 supostos militantes e civis, e o Centro Contra-Terrorismo (CTC) dispõe atualmente de cerca de 2.000 empregados que trabalham na localização dos alvos e atacá-los.
O presidente Obama incrementou essas operações, sem arriscar a vida de soldados, bem como o emprego de uma outra organização militar, que matou e interrogou mais supostos terroristas e Talibans do que a CIA, desde 2001. Trata-se do Joint Special Operations Command (JSOC), à qual está subordinada a U.S. Navy SEAL’s (Sea, Air and Land Teams), integrante do Comando de Operações Especiais (USSOCOM), unidade encarregada de operações terrestres e marítimas, guerra não-convencional, resgate, terrorismo e contra-terrorismo etc. Um comando do SEAL’s recebeu a missão de assassinar Osama Bin Laden, no Paquistão, em 2 de maio de 2011. Essa é tarefa da qual o Joint Special Operations Command (JSOC) está incumbida, executando o programa desenvolvido pelo general David Petraeus, atual diretor da CIA, quando comandava as tropas americanas no Afeganistão .
O programa consiste em “kill/capture”, i. e. matar/capturar, em qualquer região do mundo, terroristas e Talibans, constantes de uma Joint Prioritized Effects List (JPEL), que inclui até americanos, com fundamento em premissa legal ou extra-legal, conforme diretriz classificada do presidente Obama. O tenente-coronel John Nagl, assessor de contra-insurgência do general David Patraeus no Afeganistão, considerou o JSOC uma maquina de matar contra o terrorismo em uma escala quase industrial ("an almost industrial-scale counterterrorism killing machine"). Trata-se, na realidade, de um comando de esquadrões da morte do Pentágono.
Comandos do SEAL’s atuaram na Líbia, assim como da Direction générale de la sécurité extérieure (DGSE), da Brigade des forces spéciales terre (BFST), subordinada ao Commandement des opérations spéciales (COS), M16 (Inteligence Service) e Special Air Service SAS (Special Air Service) como se fossem árabes, os chamados “rebeldes” não teriam avançado muito além de Benghazi. No dia 20 de agosto, dia em que acabou o jejum do Ramandan, um navio da OTAN desembarcou no litoral da Líbia com armamentos pesados, antigos jihadistas e tropas especiais do JSOC, dos Estados Unidos, BFST, da França, e SAS, do Reino Unido, sob o comando de oficiais da OTAN, que procederam à conquista de Trípoli.
O balanço da Operation Odyssey Dawn, após 100 de bombardeios da OTAN, é trágico: 6.121 civis mortos e feridos. De acordo com as estatísticas 3.093 homens foram mortos ou feridos; 260 mulheres mortas e 1.318 feridas; 141 crianças mortas e 641 feridas. A OTAN, por sua vez, informa que nos primeiros 90 dias executou um total de 13.184 saídas, entre as quais 4.963 ataques, danificando ou destruindo mais de 2.500 alvos militares, cerca de 460 instalações militares, 300 sistemas de radar depósitos, além de aproximadamente 170 locais de controle e comando, e cerca de 450 tanques. O informe não se refere aos escombros que os bombardeios deixaram nem às milhares de vítimas civis, mortos, feridos, desabrigados e refugiados.
Esse foi o resultado da Resolução 1.973, do Conselho de Segurança Nacional, autorizando a Santa Aliança (Estados Unidos, Inglaterra e França) a proteger os civis na Líbia e que ela aproveitou para legitimar o direito de intervenção humanitária, para defender seus próprios interesses econômicos, geopolíticos e estratégicos no Mediterrâneo. Este é modo americano de fazer guerra (American Way of War), adotado pelo presidente Obama. Mas os objetivos são os mesmos do presidente George W. Bush, atendendo aos interesses do complexo industrial-militar. Sem agir unilateralmente, ele deseja realizá-los, transformando por meio da OTAN, de forma a repartir os custos com seus membros, principalmente Inglaterra, França e Alemanha, a fim de evitar que a guerra seja percebida como entre os Estados Unidos e a Líbia ou outro qualquer país.
Carta Maior - Qual deve ser o futuro da Líbia? O senhor acredita que Kadafi possa resistir e permanecer como um agente político influente no conflito?
Moniz Bandeira – É difícil prever. A Líbia é um é um país ainda divido em tribos e a lealdade é essencial entre seus membros. De qualquer modo, vivo ou morto, o espectro de Kadafi, como comandante ou mito, estará por trás da resistência, que mais dias menos dias começará a ocorrer, porque as tribos não aceitarão a presença de tropas estrangeiras no seu território. Porém, uma das conseqüências da “intervenção humanitária” na Líbia será provavelmente a proliferação das armas nucleares. Como muito bem observou Leonam dos Santos Guimarães, especialista em energia nuclear e assistente da presidência da Eletrobrás – Eletronuclear, a queda do regime de Kadafi faz supor que a aquisição de armas nucleares se tornará atraente para países que se sentem ameaçados pelo Ocidente.
Kadafi, em dezembro de 2003, concordou em abandonar seu programa de armas nucleares, com base em importações clandestinas de urânio natural, centrífugas e equipamentos de conversão, bem como a construção de instalações em escala piloto. Se ele tivesse avançado no seu programa de armas nucleares, a campanha de bombardeios da OTAN teria ocorrido? – perguntou Leonam dos Santos Guimarães. A resposta seria certamente não. O direito internacional só é respeitado quando certo equilíbrio de poder e as nações ameaçadas têm possibilidade de retaliar. Daí que é quase impossível impedir que o Irã desenvolva suas armas nucleares, não para atacar Israel, mas para defender-se da Santa Aliança ocidental.
Carta Maior - No caso da Síria, qual sua avaliação sobre a posição de outras nações árabes e de Israel frente esse conflito?
Moniz Bandeira – Não há informações sobre o envolvimento de outras nações árabes nem de Israel na Síria, onde ainda não há propriamente uma guerra civil, mas uma onda de protestos. Todos estão a observar o desdobramento da crise. A Síria é também um país dividido em muitas tribos e o governo conta com o respaldo do Irã, que provavelmente lhe fornece ou pode fornecer armamentos. São muito estreitas suas conexões com o Hizbollah, uma força política e paramilitar xiita, com sede no Líbano. Consta que o Hizbollah dispõe de 30.000 a 40.000 mísseis, apontadas para Israel e difícil de localizar, porque estão instalados em casas de família. Essa é uma das razões – e há outras – pelas quais nem os outros países árabes nem Israel querem envolvimento nos protestos que ocorrem na Síria.
Carta Maior - Os tambores da guerra estão soando em Israel, diante da perspectiva do reconhecimento do Estado palestino na ONU, em setembro. Há, na sua avaliação, possibilidade de uma generalização de conflitos no Oriente Médio?
Moniz Bandeira - Está previsto que Mahmoud Ridha Abbas (Abu Mazen), como presidente da Autoridade Palestina, pronunciará um discurso, na 66ª Assembléia Geral da ONU, a realizar-se entre 21 e 27 de setembro, no qual solicitará o reconhecimento do Estado palestino. A admissão de um novo membro requer o apoio de 2/3 dos Estados presentes na Assembléia Geral. Se obtiver esse quorum a Autoridade Palestina, como Estado, será admitida apenas na condição de observador, pois o reconhecimento como membro pleno depende de aprovação do Conselho de Segurança da ONU e, por conseguinte, do voto dos Estados Unidos.
Há uma enorme expectativa em Israel, com respeito à posição que os Estados Unidos tomarão na Assembléia Geral, posto que, no dia 5 de setembro, vazou para a imprensa a informação de que o ex-secretário de Defesa do presidente Barack Obama, Robert Gates, antes de aposentar-se este ano, criticou duramente o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanjahu, em reunião do National Security Council Principals Committee dos Estados Unidos. Gates chamou Israel de “an ungrateful ally” (aliado ingrato) e disse que a política de Netanyahu põe seu país em perigo, recusando-se a negociar, em meio a um crescente isolamento e o desafio demográfico, se mantém o controle da Faixa de Gaza. Presume-se que a notícia vazou, com o beneplácito de Obama, como advertência a Netanyahu.
O que se teme, em Tel Aviv, é que milhões de palestinos, exilados nos demais países árabes, marchem para as fronteiras de Israel e avancem sobre seu território, se a Assembléia Geral da ONU reconhecer o Estado palestino, ainda que como observador. Os palestinos exilados não dispõem de outra nacionalidade porque, nos anos 1950, a Liga Árabe decidiu não concedê-la, a fim de manter na agenda a necessidade de criar o Estado palestino.
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