Cuba, Israel e a dupla moral

16/03/2010
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Tem sido educativo acompanhar, nos últimos dias, a cobertura internacional dos meios de comunicação, além da atitude de determinadas lideranças e intelectuais. Quem quiser conhecer o caráter e os interesses a que servem alguns atores da vida política e cultural, vale a pena prestar atenção ao noticiário recente sobre  Cuba e Israel.
 
Na semana passada, em função de declarações do presidente Lula defendendo a autodeterminação da Justiça cubana, orquestrou-se vasta campanha de denúncias contra suposto desrespeito aos direitos humanos na ilha caribenha. Mas não há uma só matéria ou discurso relevante, nos veículos mais destacados, sobre como Israel, novo destino do presidente brasileiro, trata seus presos, suas minorias nacionais e seus vizinhos.
 
Vamos aos fatos. No caso cubano, Orlando Zapata, um pretenso “dissidente” em greve de fome por melhores condições carcerárias, preso e condenado por delitos comuns, foi atendido em um hospital    público por ordem do governo, mas não resistiu e veio a falecer. Não há acusação de tortura ou execução extralegal. No máximo, insinuações oposicionistas de que o atendimento teria sido tardio –    ainda que se possa imaginar o escândalo que seria fabricado caso o prisioneiro tivesse sido alimentado à força.
 
Mesmo não havendo qualquer evidência de que a morte do dissidente, lamentada pelo próprio presidente Raúl Castro, tenha sido provocada por ação do Estado, os principais meios e agências noticiosas lançaram-se contra Cuba com a faca na boca. Logo a seguir o    Parlamento Europeu e o governo norte-americano ameaçaram o país com novas sanções econômicas.
 
Indústria do martírio
 
Outro oposicionista, Guilherme Fariñas, com biografia na qual secombinam muitos atos criminosos e alguma militância anticomunista, aproveitou o momento de comoção para também declarar-se em jejum. Apareceu esquálido em fotos que rodaram o mundo, protestando contra    a situação nos presídios cubanos e reivindicando a libertação de eventuais presos políticos. Rapidamente se transformou em figura de proa da indústria do martírio mobilizada pelos inimigos da revolução   cubana a cada tanto.
 
O governo ofereceu-lhe licença para emigrar a Espanha e lá se recuperar, mas Fariñas, que não está preso e faz sua greve de fome em casa, recusou a oferta. Seus apoiadores, cientes de que a constituição cubana determina plena liberdade individual para se fazer ou não determinado tratamento médico, o incentivam para    avançar em sacrifício, pois não será atendido pela força até que seu    colapso torne imperativa a internação hospitalar. Aliás, para os propósitos oposicionistas, de que grande coisa lhes valeria Fariñas    vivo?
 
O presidente Lula tornou público, a seu modo, desacordo com a   chantagem movida contra o governo cubano. Talvez fosse outra sua atitude, mesmo que discreta, se houvesse evidência de que a situação de Zapata ou Fariñas tivesse sido provocada por ato desumano ou arbitrário de autoridades governamentais. Para ir ao mérito do problema, comparou a atitude dos dissidentes com rebelião hipotética de bandidos comuns brasileiros. Afinal, ninguém pode ser considerado inocente ou injustiçado porque assim se declara ou resolva se afirmar vítima através de gestos dramáticos.
 
O silêncio da mídia
 
Sem provas bastante concretas que um governo constitucional feriu leis internacionais, é razoável que o presidente de outro país    oriente seus movimentos pela autodeterminação das nações na gestão    de seus assuntos internos. O presidente brasileiro agiu com essa    mesma cautela em relação a Israel, país ao qual chegou no último dia 14, apesar da abundância de provas que compro metem os sionistas com violação de direitos humanos.
 
Mas as palavras de Lula em relação a Cuba e seu silêncio sobre o governo israelense foram tratados de forma bastante diversa. No primeiro caso, os apóstolos da democracia ocidental não perdoaram recusa do mandatário brasileiro em se juntar à ofensiva contra  Havana e em legitimar o uso dos direitos humanos como arma contra um país soberano. No segundo, aceitaram obsequiosamente o silêncio presidencial.
 
A bem da verdade, não foram apenas articulistas e políticos de direita que tiveram esse comportamento dúplice. Do mesmo modo agiram alguns parlamentares e blogueiros tidos como progressistas, porém temerosos de enfrentar o poderoso monopólio da mídia e ávidos por pagar o pedágio da demagogia no caminho para o sucesso, ainda que ao    custo de abandonar qualquer pensamento crítico sobre os fatos em questão.
 
Um observador isento facilmente se daria conta que, ao contrá rio    dos eventos em Cuba, nos quais o desfecho fatal foi produto de    decisões individuais das próprias vítimas, os pertinentes a Israel    correspondem a uma política deliberada por suas instituições dirigentes.
 
Sionismo e direitos humanos
 
A nação sionista é um dos países com maior número de presos    políticos no mundo, cerca de onze mil detentos, incluindo crianças,    a maioria sem julgamento. Mais de 800 mil palestinos foram    aprisionados desde 1948. Aproximadamente 25% dos palestinos que    permaneceram em territórios ocupados pelo exército israelense foram    aprisionados em algum momento. As detenções atingiram também  autoridades palestinas: 39 deputados e nove ministros foram    seqüestrados desde junho de 2006.
 
Naquele país a tortura foi legitimada por uma decisão da Corte    Suprema, que autorizou a utilização de “táticas dolorosas para    interrogatório de presos sob custódia do governo”. Nada parecido é sequ er insinua do contra Cuba, mesmo por organizações que não    guardam a mínima simpatia por seu regime político.
 
Mas o desrespeito aos direitos humanos não se limita ao tema    carcerário, que é apenas parte da política de agressão contra o povo   palestino. A resolução 181 das Nações Unidas, que criou o Estado de    Israel em 1947, previa que a nova nação deteria 56% dos territórios    da colonização inglesa na margem ocidental do rio Jordão, enquanto    os demais 44% ficariam para a construção de um Estado do povo    palestino, que antes da decisão ocupava 98% da área partilhada. O    regime sionista, violador contumaz das leis e acordos    internacionais, hoje controla mais de 78% do antigo mandato    britânico, excluída a porção ocupada pela Jordânia.
 
Mais de 750 mil palestinos foram expulsos de seu país desde então.    Israel demoliu número superior a 20 mil casas de cidadãos não-judeus    apenas entre 1967 e 2009. Construiu, a partir de 2004, um mu ro com 700 q uilômetros de extensão, que isolou 160 mil famílias    palestinas, colocando as mãos em 85% dos recursos hídricos das áreas    que compõem a atual Autoridade Palestina.
 
Pelo menos seiscentos postos de verificação foram impostos pelo    exército israelense dentro das cidades palestinas. Leis aprovadas    pelo parlamento sionista impedem a reunificação de famílias que    habitem diferentes municípios, além de estimular a criação de    colônias judaicas além das fronteiras internacionalmente reconhecidas.
 
Dupla moral
 
São, essas, algumas das características que conformam o sistema    sionista de apartheid, no qual os direitos de soberania do povo    palestino estão circunscritos a verdadeiros bantustões, como na    velha e racista África do Sul. O corolário desse cenário é uma    escalada repressiva cada vez mais brutal, patrocinada como política    de Estado.
 
Mas os principais meios de comunicação, sobre es ses fatos, se    calam. Também mudos ficam os líderes políticos conservadores. Nada    se ouve tampouco de alguns personagens presumidamente progressistas,    sempre tão céleres quando se trata de apontar o dedo acusador contra    a revolução cubana.
 
Talvez porque direitos humanos, a essa gente de dupla moral, só    provoquem indignação quando seu suposto desrespeito se volta contra   vozes da civilização judaico-cristã, da democracia liberal, do livre    mercado, do anticomunismo. Não foi sem razão que o presidente Lula    reagiu vigorosamente contra o cinismo dos ataques ao governo de Havana.
 
- Breno Altman é jornalista e diretor editorial do sítio Opera Mundi
https://www.alainet.org/es/node/140082?language=en
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