A mais nova batalha de Chávez
06/02/2009
- Opinión
O cientista político Theotonio dos Santos analisa, à luz da Revolução Bolivariana, referendo sobre a reeleição ilimitada
A Venezuela passa por mais um processo eleitoral. No dia 15, a população do país decidirá, em referendo, se os ocupantes de cargos que sejam eleitos mediante o voto poderão candidatar-se indefinidamente ao mesmo posto.
Obviamente, os debates sobre a proposta, que vêm tomando conta do país, concentram-se na possibilidade do presidente venezuelano, Hugo Chávez, manter-se no governo por mais tempo – no dia 2, ele completou dez anos no comando da chamada Revolução Bolivariana.
Na campanha pelo “sim”, o mandatário vem insistindo na promessa de que, caso o “não” saia vitorioso, ele apenas esperará o cumprimento de seu mandato para dedicar-se a seu projeto pessoal de vida. Ou seja, deixará a política. Nos seus discursos, Chávez dá a entender que o processo de transformações liderado por ele está em jogo na consulta sobre a reeleição ilimitada.
“Ele quer ficar um período a mais no governo para poder terminar o projeto que ele apresentou ao povo venezuelano. É um projeto que exige um cumprimento de longo prazo. E também há a dificuldade de se formar uma liderança forte como a dele”, analisa o cientista político Theotonio dos Santos, um dos formuladores da Teoria da Dependência.
Para ele, a falta de tradição de poder dos setores populares dificulta a construção de lideranças preparadas, capazes de administrar processos tão complexos como o da Venezuela. “Então, temos que preservar a liderança que a gente tem”. Leia, a seguir, a entrevista com Theotonio.
Brasil de Fato – O senhor acha que, de alguma forma, pode-se explicar a convocação desse referendo como parte de uma nova etapa da Revolução Bolivariana? Acredita que o presidente Hugo Chávez pensa nesse sentido?
Theotonio dos Santos – Isso já estava proposto no plebiscito anterior [o referendo constitucional realizado em dezembro de 2007, com derrota do governo]. Então, não vai nesse sentido. Chávez quer ficar um período a mais no governo para poder terminar o projeto que ele apresentou ao povo venezuelano. É um projeto que exige um cumprimento de longo prazo. E também há a dificuldade de se formar uma liderança forte como a dele, porque não surgem líderes revolucionários assim todo dia. Realmente, não é fácil formar. Há uma certa preocupação de que uma nova liderança tenha dificuldade de comandar um processo tão complexo. Essa é a preocupação básica de Chávez, já que o processo venezuelano está se aprofundando. A reforma agrária já avançou bastante nos últimos anos. A nacionalização de empresas importantes também. Tanto o projeto de desenvolvimento econômico quanto a parte social igualmente. Por exemplo, a educação: teve a alfabetização, as universidades também estão avançando muito... a ideia é ter uma em cada cidade. Na parte de saúde, por exemplo, 90% da população já é atendida gratuitamente, e com alta qualidade. Porque você tem atenção imediata na sua casa, e no seu bairro, há, normalmente, uma clínica. O problema mais complicado, a habitação, tem avançado também, mas isso exige mais recursos e é um processo um pouco mais complexo.
Então, existe uma grande preocupação com o plano da consciência, com o que o Fidel Castro chamou de “batalha de idéias”. E há muito investimento nisso. E um grande desenvolvimento da capacidade da população de compreender e participar da política do país. Tudo isso foi parte do programa que Chávez apresentou durante as eleições e que foi aprovado por 60% do povo venezuelano. Então, a questão, agora, é dar continuidade a isso. E, para tal, é necessária uma liderança forte, e é o que ele pretende ser durante pelo menos uma ou duas eleições mais.
Nos últimos discursos de Chávez, ele vem insinuando que o futuro do processo estaria em jogo nesse referendo. O senhor acha que a consulta define o futuro da Revolução Bolivariana?
É verdade que existe a preocupação de que a população não dê ao governo esse instrumento da reeleição. Isso pode ser realmente um fator bastante negativo. A preocupação é correta.
O que o senhor acha que pode acontecer caso Chávez saia derrotado?
A direita está organizada, combativa. É uma massa importante que se apresenta. Ademais, tem apoio internacional e tudo isso. Possuem os recursos. O que está faltando é uma estratégia, porque eles não têm muito o que oferecer. Eles têm para oferecer para uma classe média. Esses 30% da população que perde um pouco com o avanço das políticas de distribuição de renda, com a aplicação de maiores recursos no setor social, com o desaparecimento de certas vantagens que sempre usufruíram. Então, realmente, esse setor se sente afastado, retirado do poder, e reage. Mas é um setor bastante pequeno. Então, se o outro lado se mantiver unificado, eles não têm muita chance não.
Mas essa preocupação do Chávez mostra que a Revolução Bolivariana não está consolidada o suficiente?
Esse movimento de oposição ainda é grande, com muitos recursos, com muito apoio, inclusive, de setores da intelectualidade, de profissionais. Então, não é brincadeira. É um processo em curso.
Um processo revolucionário não deveria prescindir da figura de um único líder? O senhor acha que, nesse ponto, ainda se tem muito o que caminhar para o surgimento de lideranças novas, e para que a própria população se aproprie do processo?
Esse assunto foi discutido muito, desde o século 19. A classe dominante, que já tem séculos no poder, ainda necessita de lideranças fortes para manter a dominação delas. Imagine no caso dos setores populares, que não têm nenhuma tradição de poder. É muito difícil, para eles, construir lideranças novas todos os dias. Não temos faculdades, escolas, todo um fortíssimo instrumental de comunicação, de formação, ou as religiões que formaram essa gente... Não é fácil formar lideranças. Então, temos que preservar a liderança que a gente tem.
Mas o que fazer para que esse processo revolucionário não dependa, nessa proporção, da figura do Chávez?
Precisamos de escolas. Formar gerações de intelectuais marxistas, por exemplo. Isso não é coisa fácil não. Inclusive, com a deformação que o marxismo teve, por exemplo, no processo soviético. Grande parte dessa liderança política soviética não tinha nenhuma noção de marxismo. Afastou-se realmente, apesar de usar oficialmente o marxismo como uma referência. Os chineses, por exemplo, estão preocupadíssimos com isso. Eles também têm problemas de formação marxista. Mas têm a vantagem de possuírem uma experiência burocrática de gestão muito grande. Há o sistema de gerações. Cada geração tem um período de dez, doze anos no poder, e já abre caminho para outra. Há um acordo entre eles nesse sentido, mas isso é produto de uma experiência histórica milenar. Não é fácil formar a liderança. Nós tivemos, na América Latina, várias experiências nesse sentido. Emiliano Zapata e Pancho Villa, os líderes da Revolução Mexicana, por exemplo, quando chegaram no poder, o abandonaram. Porque queriam reforma agrária e pronto. Não estavam preparados para gerir realmente uma economia nacional, muito mais ampla. Nós temos ainda muitos problemas, dentro do movimento popular, para poder dispensar a liderança do tipo da do Chávez.
Desde que ele tomou posse, um dos maiores méritos do seu governo foi ter incentivado a politização do povo venezuelano e ter fortalecido a organização e a democracia no âmbito comunitário: ou seja, fortalecendo a democracia participativa. O referendo da reeleição não é contraditório com essas conquistas?
A democracia comunitária ainda não está tendo instrumentos para chegar à direção nacional. Esse foi um dos pontos que foi derrotado na proposta do referendo anterior. Chávez propôs que o Parlamento cedesse poder para as direções comunitárias. Essa foi, também, uma das razões para ele perder. O Parlamento entrou na questão, refez muitas coisas, ampliou... foi um dos fatores que dificultou, inclusive, a compreensão da reforma constitucional. Na verdade, esse passo teria ajudado para que as comunidades tivessem um peso maior na política nacional, mas isso ainda não foi devidamente aceito. E há ainda muitos setores, inclusive da própria esquerda, que têm muitas restrições à ideia de que as comunidades tenham um poder realmente maior. Eles prefeririam se fosse um poder de partido, de gente que já está, digamos, dentro do controle político, em vez de entregá-lo realmente à comunidade, e lutar dentro dela por uma hegemonia. Isso não é nada fácil. O Chávez sempre esteve do lado de uma solução no sentido de fortalecer a comunidade, mas, digamos, os políticos locais não se sentem muito atraídos por essa visão.
As últimas pesquisas têm apontado que o “sim” vai sair vitorioso em 15 de fevereiro. O que o senhor acha que vai acontecer caso isso se confirme? A tendência é o governo Chávez radicalizar sua proposta rumo ao que ele chama de socialismo do século 21?
Eu acho que sim. Se ele triunfar, vai começar a avançar mais, no sentido de retomar grande parte dos objetivos do plebiscito anterior. Que estavam dentro dessa idéia de uma socialização maior, mais poder à comunidade. Há algo que muitos pensam que é contraditório: ao mesmo tempo que Chávez queria aumentar o poder na comunidade, queria aumentar o poder do Estado, para fazer planejamentos mais globais da economia. Mas não há, necessariamente, contradição nisso, porque as comunidades têm compreensão de que certas coisas devem ser decididas num plano mais geral. O que tem que haver é uma fórmula em que elas possam intervir nesse plano geral, mas de uma outra forma que não seja diretamente em representação da comunidade. Enfim, são questões que ele pretende ainda avançar. Além disso, Chávez quer a centralização do planejamento do Estado sobre toda uma região [a faixa do Rio Orinoco] que pode converter a Venezuela na detentora da maior reserva de petróleo do mundo. Está previsto que essa região vai se converter no grande centro da economia venezuelana. E ele quer que, junto com grandes investimentos, exista um projeto social, político, que permita que essa área já se organize sob uma inspiração socialista mais avançada. Isso não é nada fácil também, mas é parte de uma luta por uma perspectiva mais avançada.
E o senhor acha que, nesse contexto, ele pode ter mais força para realizar uma ruptura, mesmo que gradual, com os marcos institucionais, políticos e econômicos da democracia burguesa?
Ele pretende. Quer desenvolver mais o papel do planejamento na economia e pretende muito que as próprias empresas, com os trabalhadores, participem desse processo. Empresas dirigidas pelos próprios trabalhadores. Já há experiências nesse campo, mas são, ainda, pilotos. Não é uma lei geral, uma fórmula geral. Ele está sendo aplicado em alguns casos, na busca desse tipo de empresas, que ele chama de empresas socialistas.
E qual o senhor acha que pode ser o papel do recém-criado PSUV [Partido Socialista Unido da Venezuela] nesse processo?
Acho que a criação desse partido foi uma iniciativa precipitada. Deveriam, antes, ter passado por uma experiência de frentes, até se chegar realmente ao partido. Porque a necessidade de formá-lo tão imediatamente assim começa a facilitar o surgimento de quadros intermediários, que não são devidamente formados para liderar um processo desse e que começam a se aproveitar da situação de poder. Então, realmente, a idéia do partido precisava ter amadurecido mais. Mas, se já existe, o que tem que ser feito é um processo de formação de quadros e de educação política muito fortes. E a criação de mecanismos de participação direta dos trabalhadores na gestão do partido. Tudo isso não é nada fácil de fazer, mas tem que ser feito.
Fonte: Brasil de Fato
http://www.brasildefato.com.br
https://www.alainet.org/es/node/132241
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