Um novo Uruguai

Mujica: "Se o Brasil fracassar, isso vai nos arruinar a todos"

15/12/2008
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Senador mais votado do Uruguai, o ex-guerrilheiro do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros, José Pepe Mujica, em entrevista exclusiva, fala sobre os desafios do novo governo uruguaio, aponta vícios históricos da esquerda e defende a importância estratégica, para a América Latina, do êxito do governo do presidente Lula.

 

Montevidéu - José Pepe Mujica, 69 anos, é um homem simples e extraordinário. Vive a vida com simplicidade. Nunca acumulou posses, títulos, roupas de grife, carros caros ou sapatos italianos. É extraordinário porque viveu situações extraordinárias e manteve a simplicidade. Sempre procurou acumular conhecimento e experiência. E sofreu muito na vida. Lutou muito, e ainda luta, acertou, cometeu erros, apanhou, viveu situações inacreditáveis. Junto com outros dirigentes do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros, passou mais de doze anos preso em quartéis uruguaios, durante a ditadura militar. Durante dois destes doze anos ficou praticamente enterrado vivo, no fundo de um poço. Ele e seus companheiros que foram submetidos a essa tragédia ficaram conhecidos como os “reféns”. Mujica sobreviveu a essa provação e hoje é um dos líderes políticos mais importantes do Uruguai. Mais do que isso, é uma voz a ser ouvida, um exemplo de vida digna e corajosa.

 

No período em que ficou preso no fundo de um poço, “onde o sintoma mais evidente de vida eram sete pequenas rãs, as quais alimentava com migalhas de pão”, Mujica aprendeu que as formigas gritam. “Descobri isso ao colocá-las no ouvido para me entreter com algo”. Apesar da brutal condição a que ele e seus companheiros foram submetidos, ele não guarda rancor e diz ter aprendido com essa experiência: “pode parecer uma monstruosidade o que vou dizer, mas dou graças à vida por tudo o que vivi; se eu não tivesse passado por estes anos e aprendido o ofício de galopar para dentro de mim mesmo, teria perdido o melhor de mim mesmo. Me obrigaram a remover meu solo e isso me fez muito mais socialista do que antes”, disse Mujica em uma entrevista concedida tempos atrás ao semanário Brecha.

 

Libertado no outono de 1984, Pepe Mujica e sua companheira, Lucía Topolansky, que também estava presa, foram morar em um pequeno sítio nos arredores de Montevidéu. Vivem lá até hoje, em uma casa muito simples. Vivem em uma comuna junto com outras famílias, plantando verduras, flores, frutos, uvas para vinho, entre outras coisas. Em 2004, ele foi o senador mais votado do Uruguai. De 15 de fevereiro a 1° de março, tornou-se a principal autoridade do país, presidindo o parlamento nacional. A partir do dia 1°, assume o Ministério de Pecuária, Agricultura e Pesca. Ela foi reeleita deputada e, agora, passará a ser senadora, ocupando justamente a vaga de Mujica, que será ministro (no sistema eleitoral uruguaio, o candidato pode aparecer tanto nas listas para deputados quanto para senadores). Permanecem morando na mesma terra, com a mesma simplicidade, sabedoria e disposição para a luta. Recebem jornalistas cercados por seus animais de estimação. Entre seus cães, Vitória e Manoela não se intimidam com as máquinas fotográficas, gravadores e câmeras, participando das entrevistas quando a oportunidade se oferece.

 

“Não há homens imprescindíveis”

 

É difícil apresentar Mujica, sem omitir uma passagem importante de sua vida. Na mesma entrevista, mencionada acima, ele se apresentou da seguinte maneira: “Pepe Mujica é um veterano, um velho que tem uns quantos anos de cárcere, de tiros no lombo, um tipo que se equivocou muito, como sua geração, e que trata, até onde pode, de ser coerente com o que pensa, todos os dias do ano e todos os anos da vida. E que se sente muito feliz, entre outras razões, por contribuir para representar aqueles que não estão e deveriam estar. Eu discordo de Bertolt Brecht, porque não há homens imprescindíveis, mas sim causas imprescindíveis, caminhos imprescindíveis. A história é uma construção tremendamente coletiva. E nisso andamos, cada um colocando sua pedra. Aqueles que não cultivam a memória, não desafiam o poder”.

 

Em uma longa entrevista exclusiva concedida à equipe da Agência Carta Maior, em seu lindo sítio, a pouco mais de trinta minutos de Montevidéu, Pepe Mujica falou um pouco sobre sua vida, sobre os desafios do governo Tabaré Vázquez, apontou alguns vícios históricos da esquerda e fez uma advertência sobre os rumos do governo Lula: “se o Brasil fracassar, isso vai nos arruinar a todos”. A seguir, a primeira parte de um depoimento histórico:

 

Agência Carta Maior - Inicialmente, como você avalia esse processo político que conduziu à vitória da Frente Ampla no Uruguai?

 

Pepe Mujica - Bom, é um processo muito ao nosso estilo, de um pequeno país que é a antítese do país a que vocês pertencem. Vocês crescem um Uruguai inteiro por ano. Nós somos um país bastante vegetativo, somos uma esquina importante, uma esquina. Temos dois partidos tradicionais (blancos e colorados) que há mais de cem anos governam esse país e que são um fenômeno. Acho que são os mais velhos partidos que temos no Ocidente, o que nos mostra que ao menos alguma habilidade eles têm. Nossa geração está nesta luta há não mais que 30 ou 40 anos. Afinal chegamos, um pouco convencendo o povo, se bem que eles também deram uma mão. Destroçaram muito este país. Há um setor de opinião que ganhamos, mas há um outro que não votou. Esclareço isso porque é bom ter uma humildade de caráter estratégico diante dos compromissos que temos adiante. É muito importante ter vencido a eleição, mas é mais importante não fracassar, não frustrar as pessoas e conseguir resolver ao menos parte dos problemas que temos. O Uruguai, assim como é pequeno, também tem as suas tradições, sua cultura. Sempre foi o país que repartiu melhor na América Latina, foi o país mais eqüitativo historicamente em um continente injusto, o mais injusto dos continentes. Esse país tem a característica de um país de classe média que nos deu uma maneira de ser bastante liberal, não no sentido econômico mas sim liberal nas relações humanas, apesar das diferenças. Mas houve um período em que a crise foi tão grande, mas tão grande, do ponto de vista econômico, que começamos a perder algumas dessas características históricas e a sofrer uma verdadeira degradação de nossa própria sociedade.Não é que estejamos mais pobres. O problema é que estamos excluindo as pessoas.

 

CM - A última crise de que você fala é de 2000 para cá?

PM - Sim, houve uma culminação em 2000, mas é um processo que vinha de antes. Durante a década de 90, a economia cresceu, mas cresceu também o desemprego e a pobreza. Ou seja, o Uruguai foi perdendo a sua característica de ser um país que repartia um pouco melhor.

 

CM - Neste contexto, como se chegou ao momento atual, particularmente ao momento da vitória de Tabaré Vázquez. A história da Frente Ampla é muito rica, uma história de muitas agregações e também defecções. Como você vê esse trajeto, de mais de 30 anos, da esquerda uruguaia?

 

PM - É um trajeto possível para a cultura uruguaia, não tem a ver particularmente com a esquerda. Essa cultura criou uma plataforma comum, um modo de ser. A política para nós é uma eterna negociação. Podemos caminhar com diferenças, mas vamos negociando. Uma das características da esquerda em qualquer parte do mundo é sua tendência a atomizar-se. Cada organização de esquerda costuma acreditar que possui a verdade revelada e que tem que lutar contra as outras organizações. E isso é visto como uma questão de princípio, capaz de fazer correr sangue! Então, para juntar a gente de esquerda, é horrível, em qualquer parte do mundo. No Uruguai também temos essa dificuldade. Mas nós temos essa cultura da negociação. Pois, estrimamente, no sentido europeu da palavra, o Partido Colorado e o Partido Blanco nunca foram partidos, sempre foram frentes, sempre tiveram enormes diferenças internas, mas aprenderam a negociar entre si e por isso foram se mantendo no governo por tanto tempo. Isso nos leva a tirar algumas conclusões. O que é rígido, não dura. São mais fortes as taquaras que se inclinam. Nós temos uma lei que vocês não podem entender. É preciso ser uruguaio para entender. Durante muito tempo, o Partido Nacional (blanco) e o Partido Colorado indicavam três candidatos. Eles brigavam entre si, mas os votos de cada um iam para o mesmo partido. Não se perdia nenhum voto. Eles se somavam. Nós sempre criticamos essa prática, mas depois acabamos utilizando-a. Havia os comunistas, os socialistas e várias outras forças. Foi criando-se uma cultura e uma tradição de negociação e aprendemos a ficar todos dentro. A prática histórica demonstrou isso: aprendemos que a soma nos multiplicava a todos. Não era uma questão de soma aritmética. Todos crescíamos com essa soma, pois fomos nos transformando em um pólo de referência. Hoje temos muitos militantes que são filhos de pais que eram frentistas (militantes da Frente Ampla). Então, aprendemos a conviver com nossas dissidências: todos, antes de tudo, eram frentistas. Este ano, gostamos deste e vamos com este; outro ano, vamos com aquele, mas sempre permanecendo dentro da Frente. Isso é muito uruguaio. É difícil, para quem olha de fora, entender esse processo. Há críticas, dissidências, tudo isso, mas sempre estamos dentro. Desde o momento de fundação da Frente Ampla até agora, nunca deixamos de crescer.

 

CM - Qual foi seu sentimento no dia 15 de fevereiro, quando assumiu seu cargo no Senado e passou em frente à guarda do Batalhão Florida, onde você ficou preso?

 

PM - Para mim, essa é uma lição da vida que deve ser transmitida às novas gerações, sobretudo para os momentos em que alguém pode se sentir derrotado. Pois a vida me golpeou, a vida me deu um esquinaço, tudo isso. A vida tem muitas coisas amargas, mas também oferece revanches. O problema é saber vivê-la com continuidade e ter a capacidade de se levantar quando se cai. Nós tivemos essa experiência (da prisão), não a buscamos, nem a planejamos, aconteceu, de um modo que supera a imaginação de um novelista. Mas não vivemos para cultivar uma memória, olhando para trás. Acredito que o ser humano tem que saber cicatrizar suas feridas e caminhar na perspectiva do futuro. Pois não podemos viver escravizados pelas contas pendentes da vida; se fizermos isso não se vive o porvenir da vida, não se vive o que está por vir. E a vida é sempre porvenir. Eu tenho uma memória e suas recordações. Não pode ser de outra maneira. Mas deixo uma coisa bem claro:o livro de minas contas pendentes, este eu o perdi. E lá estava eu diante do Batalhão Florida. Mas o que restava do Batalhão Florida? A bandeira, os trapos, os soldados marcando o passado, talvez com fome, cumprindo sua missão. E a gente que me levou à prisão...? O que vou recordar? Isso? Não tem nenhum sentido. É importante não se esquecer de nada, mas penso que é preciso olhar para o amanhã. Não se vive de recordações. E, como militante, é preciso se lembrar que as credenciais também envelhecem e devem ser renovadas. E cada conjuntura histórica exige que elas sejam renovadas. Não há nenhuma garantia de nada. Por isso, é importante olhar o passado, mas também é preciso perder o respeito. É preciso haver novos partos, é preciso vir gente nova.

 

CM - Você fala do futuro. O futuro, aqui no Uruguai, é um problema pois uma grande parte da juventude foi embora. O que é possível dizer para a juventude que está aí?

 

PM - Sim, este é um problema dramático, é um problema de existência. Ou conseguimos reverter essa situação ou então...Não se pode ter um pequeno país forte e vazio. Vão entrar brasileiros, vão entrar outros, isso vai ser ocupado. Não há nenhum problema, já ocorreu mais de uma vez na história do Uruguai. Também as nações morrem, meu querido amigo. Há muitos povos que desapareceram da vida da Terra. E agora estamos em um baile, um baile do ponto de vista estratégico. Precisamos ter a inteligência de superar nossas pequenezas e nosso chauvinismo ou então não vamos fazer nada. Estamos chegando demasiado tarde, perdemos demasiado tempo, nos tiraram demasiadas coisas. A propriedade mais valiosa é o talento. E o problema não é que nos levaram a nossa gente, mas sim que nos levaram a gente mais valiosa. Gastamos uma fortuna para formar um pesquisador, um profissional, e eles são levados do país porque lhe pagam melhor lá fora. E neste vôo, sempre perdemos. Assim, temos um bom desafio neste tempo.

 

CM - E como você este novo cenário da América Latina, com os novos governos no Brasil, na Argentina, na Venezuela, no Uruguai...?

 

PM - Creio que temos uma conjuntura mais favorável, na medida em que temos governos mais decentes, com uma vontade política de tratar de juntar os nossos recursos, de multiplicar nossa infra-estrutura comum, de elaborar uma política energética comum. Não quero me meter na política brasileira, mas uma das coisas mais interessantes da aposta de Lula é o prestígio internacional que vem acumulando. Isso me parece muito interessante. O Brasil é obrigado a fazer isso, obrigado pelas suas dimensões, pelos recursos que tem. Mas liderar significa ter responsabilidades. Veja que problema! Se o Brasil fracassar, isso vai nos arruinar a todos. Por isso, temos a obrigação de entender essa jogada. A Argentina é um país formidável, pois se arrebentou e em dois anos conseguiu dar a volta por cima. Não há nenhum país na América Latina que tenha o poder de reação da Argentina. É uma coisa espantosa.

 

CM - Você falava antes do Uruguai como uma esquina....

PM - Sim, a esquina é o Uruguai. O Uruguai é um país muito pequeno. Por que existe, então? Porque é um lugar importante. As grandes potências fizeram todo o possível para explorar nossas contradições, entre Uruguai, Argentina e Brasil. A Inglaterra não queria que a costa atlântica ficasse sob o controle de um só país. E aí exploraram nossas contradições, como tantas outras vezes fizeram na história da América Latina. Agora, estamos tentando outra vez, em uma outra etapa histórica, e o Uruguai tem o seu papel a jogar. Temos de nos juntar todos, grandes, pequenos, médios, todos. Por que, do outro lado, o mundo vai para a Ásia. E eu não sei o que vai ocorrer nos próximos anos, mas estou certo que precisamos nos juntar.

 

Fonte: Agencia Carta Maior

http://agenciacartamaior.uol.com.br

 

https://www.alainet.org/es/node/131465?language=es
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