Centenários (III): Monteiro Lobato, a morada da infância

04/08/2008
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Durante muitos anos minha infância de filha única órfã de pai tinha como morada predileta o Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Era ali onde minha imaginação se experimentava mais desafiada e minha vida de menina que se sentia desprotegida e convidada a encontrar outros mundos que lhe dessem mais segurança e prazer vivia mergulhava por horas e horas, lendo e relendo as maravilhosas histórias do universo infantil lobatiano.

Lendo Lobato, identificava-me com Narizinho, que era ora uma amiga, ora uma irmã, ora uma companheira de travessuras, ora eu mesma travestida e transfigurada naquela personagem de menina mais adulta e perguntadeira do que ousava eu ser na vida real. Por Emília apaixonava-me sempre mais: sua inteligência, sua astúcia, seu espírito lúcido e crítico, sua rebeldia, personificavam uma "outra' eu que dormia envergonhada e ainda tímida dentro de mim mesma. Porém, no fundo, a transgressora Emília era onde me percebia com mais verdade.

O que era prazer não deixava de ser aprendizagem. Com Lobato e seus personagens aprendi muito na vida. Os serões nos quais Dona Benta contava histórias instrutivas e empolgantes aos netos eram sorvidos por mim com voracidade e delícia. E as viagens realizadas por Narizinho, Pedrinho e Emília – ao céu, à Grécia antiga – me transportavam em um tapete mágico a todos esses mundos orquestrados pela culta e pedagógica fantasia lobatiana, onde tudo o que ali era vivido assimilava-se com delícia e consistência.

O centenário de Monteiro Lobato, durante este ano de 2008, nos obriga a homenageá-lo não apenas como artesão proeminente das letras brasileiras e autor imaginativo e talentoso de literatura infantil e adulta, mas igualmente como mago das palavras que conseguem abrir para a criança o universo maravilhoso e encantado da aprendizagem. E fazê-lo com beleza, atratividade, provocando não rejeição e inércia, mas prazer e voracidade de conhecer e ler mais e mais e mais.

Com Lobato, eu e muitas outras crianças de minha geração fomos iniciadas no mundo misterioso e fascinante da mitologia. Ali, através das viagens de seus personagens, passei a ter intimidade com o Olimpo e seus deuses e semideuses. A identificar padrões estéticos que até hoje configuram minhas escolhas culturais. A intuir, através da leitura, como o mythos é tão ou mais importante do que o logos que a educação tradicional magnificava diante de nossos olhos ainda virgens e receptivos.

Minha mãe e minha avó me advertiram muitíssimo sobre as idéias comunistas de Monteiro Lobato. No entanto, foram suficientemente respeitosas e sobretudo inteligentes para não impedir, mas ao contrário estimular minha leitura de suas obras. Sempre lhes serei grata por essa liberdade que, uma vez adulta, me encaminhou para o curso de Comunicação e futuramente para a Teologia. Parece incrível que o nada católico Lobato tenha influído em minha vocação teológica. Certamente seus livros não eram manuais de piedade, mas justamente a crítica lúcida e contundente a muitas instituições saída da boca de seus personagens me ensinou a evoluir da religiosidade infantil recebida em casa e no colégio para uma fé adulta, que buscava respostas mas suportava conviver com perguntas. Porque a experiência de Deus com que era agraciada não dispensava a razão e seu exercício, fui parar na Teologia, onde estou até hoje. E certamente os livros de Lobato foram ajuda preciosa para que isso acontecesse.

Por tudo isso, creio que a maior homenagem que posso prestar ao centenário escritor, mestre da narrativa e encantador de corações infantis, encontra-se nos olhinhos e na pessoa de Carol, minha neta de um ano de idade. Os pais, avós, tios e primos certamente a levarão pela mão para conhecer muitas dimensões do mundo: viagens à Disneylandia, esportes, lugares bonitos de lazer e diversão. Eu morrerei feliz se conseguir abrir-lhe o mundo da leitura. E nesta iniciação sem dúvida estará presente Monteiro Lobato e seu sítio do Pica-pau Amarelo, mundo no qual espero que Carol entre e se sinta parte integrante, personagem ativo, como eu e tantas, inúmeras outras crianças da minha e de outras gerações, se sentiram e sentem.

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor" (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape <http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape>
https://www.alainet.org/es/node/129027
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