Nova Constituição busca superar neoliberalismo

27/07/2008
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Quito (Equador)

Texto aprovado pela Assembléia Constituinte consagra o direito à água como fundamental e declara o Estado como plurinacional

A Assembléia Nacional Constituinte (ANC) aprovou, em 24 de julho, um projeto de Constituição com importantes avanços sociais e políticos. Ratificado com folga, 94 votos a favor e 32 contra, o texto será agora submetido a um referendo em 28 de setembro.

A nova Constituição, fruto de um trabalho de oito meses, reúne fundamentalmente a aspiração de superar o modelo neoliberal imposto com a Constituição de 1998 que submergiu o Equador em uma profunda crise. O texto foi aprovado pela Aliança País, o Movimento Popular Democrático, Pachakutik e quatro independentes que pertenciam ao Partido Sociedade Patriótica (PSP), que dirige o ex-presidente Lucio Gutiérrez. Este encabeça, agora, a oposição de direita. Fizeram oposição o Partido Social Cristão, o Partido Renovador Institucional Ação Nacional (PRIAN), encabeçado pelo magnata bananeiro Alvaro Noboa, o PSP e os movimentos UNO e Futuro Já.

O ato de entrega do projeto de Constituição ocorreu na sexta-feira (25), na Cidade Alfaro, localizada em Montecristi, a 390 quilômetros ao ocidente de Quito. O presidente Rafael Correa destacou que o processo de mudança que vive o país tem sido “essencial e amplamente democrático, participativo, introdutor”. Segundo ele, as transformações correspondem aos anseios de milhões e milhões de cidadãos que apoiaram decididamente os eixos da revolução cidadã.

Correa recordou também que, na consulta popular, o povo participou de forma massiva, em abril de 2007, com mais de 80% dos votos favoráveis à instituição da Assembléia Nacional Constituinte. Apesar disso, o presidente ponderou que “as tristes vozes da oligarquia seguiram mantendo, sem indício de vergonha, sua oposição a tudo o que significaria mudança”.

Enquanto os assistentes do ato gritavam “Sí, Se Puede”, o presidente da Assembléia Constituinte, Fernando Cordero, afirmou que “a nova Constituição consagra o direito à água como fundamental” e ressaltou o “exercício de transparência” realizado em sua construção: “tudo está gravado, tudo está registrado e fica certificado para que ninguém se lhe confunda a história”.

Aspectos novos

A nova Carta Magna não possui corte socialista, mas reúne uma série de aspectos novos e progressistas que, ao entrarem em vigência, permitirão dar um passo adiante para superar as iniqüidades, discriminações e injustiças que ainda se mantêm como atrasos do país.

Os 444 artigos e as 30 disposições transitórias que contêm o documento merecem uma leitura e uma análise detalhadas. Podemos destacar alguns: o regime do bem viver (sumak kaway), os direitos da natureza, a soberania alimentar, a declaratória do Estado como plurinacionalidade e o reconhecimento do kichua e o shuar como “idiomas oficiais de relação intercultural”, o reconhecimento dos direitos das pessoas e grupos de atenção prioritária, os direitos à água e à comunicação, entre outros.

A Constituição estabelece uma nova forma de inserção internacional do Equador priorizando a integração latino-americana e impede a cessão da jurisdição do Estado nos tratados e instrumentos internacionais a instâncias de julgamento internacional (o que deve levar, por exemplo, a uma ruptura com o Centro Internacional de Ajuste de Diferenças Relativas a Investimentos, CIADI, do Banco Mundial), além de definir regras soberanas para o endividamento externo.

Respondendo a um clamor nacional, na Constituição se tem recolhido o princípio de que o Equador é um “território de paz e que não permitirá o estabelecimento de bases militares estrangeiras, nem de instalações militares estrangeiras com propósitos militares” (art.5). Com ele, nunca mais o país terá uma base como a que instalaram os militares estadunidenses na cidade de Manta, de onde devem sair em 2010.

Assim mesmo, a Constituição estabelece o “regime do bem viver” (sumak kaway) como um “conjunto organizado, sustentável e dinâmico dos sistemas econômicos, políticos, sócio-culturais e ambientais”. Este capítulo compreende também a inclusão e a eqüidade social, educação, saúde, habitat e moradia, cultura, cultura física e tempo livre, e comunicação.

É nova, igualmente, a incorporação na Constituição da natureza como sujeito de direitos. O artigo 71 textualmente assinala: “A natureza ou Pachamama, de onde se reproduz e realiza vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência e o mantimento e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos”.

No campo da comunicação não só se reconhece o direito à comunicação, como já estabelecia a Constituição de 1998, como se estabelece o acesso igualitário ao espectro radioelétrico para fundar meios privados, públicos e comunitários, a criação de um sistema de comunicação e a obrigação do Executivo de criar uma comissão que faça uma auditoria das concessões das freqüências de rádio e televisão.

Discrepâncias e dificuldades

O processo de elaboração do texto constitucional não esteve isento de batalhas, dificuldades e erros metodológicos. O processamento das 3.500 propostas apresentadas por grêmios, governos seccionais, instituições, etc. e das conclusões de dezenas de fóruns temáticos e territoriais foi um assunto complexo para as 10 mesas da Assembléia que trabalharam o articulado da Constituição.

Mas as dificuldades maiores surgiram no bloqueio da Aliança País, de onde se manifestaram discrepâncias em torno de temas como o consentimento prévio para a exploração dos recursos naturais, o reconhecimento dos direitos indígenas como a plurinacionalidade e o kichua como idioma oficia, etc. As cabeças visíveis do impasse foram o assembleante Alberto Acosta, que defendia as agendas dos movimentos sociais e de outro lado o próprio presidente Correa, encampando seu projeto cidadão. Rafael Correa chegou a falar em 20 assembleístas “infiltrados” na Aliança País e que “o maior perigo para nosso projeto de país” é o esquerdismo, o ecologismo e o indigenismo infantis.

Já os setores de direita, que iniciaram a campanha pelo Não, assinalam que a Constituição concentra demasiado poder no Executivo. Acusam Correa de fazer valer uma visão de curto prazo, que lhe garante maior governabilidade. Estes mesmos setores encontraram respaldo nos grandes meios de comunicação e buscaram desprestigiar a Assembléia Constituinte. Quase nunca seguiram ou reuniram o conteúdo ou o alcance dos debates sobre os temas de fundo, centrando-se em aspectos emocionais e controversos como o aborto ou a homossexualidade.

Cabe indicar, contudo, que em meio à campanha midiática de desprestígio e desinformação, o canal público TV Equador, recentemente criado, transmitiu ao vivo e direto das sessões da Assembléia Constituinte.

Tradução: Brasil de Fato

http://www.brasildefato.com.br


https://www.alainet.org/es/node/128959
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