O primeiro passo para a emancipação
- Opinión
Alfabetização: Bolívia quer tornar-se, em outubro de 2008, o terceiro país latino-americano a erradicar o analfabetismo
Estrada
Depois de mais de cinco horas de viagem, amanhece. A escuridão vista da janela da caminhonete que há muito tempo não pára de chacoalhar dá lugar a um cenário impressionante.
Quatro ou cinco mil metros acima do nível do mar. Nesse ponto, a paisagem dos Andes é uma fusão entre desfiladeiros acentuados, verdes morros e planícies e picos nevados ao fundo. Em meio aos rios e pequenos lagos que, nessa época de chuva, estão cheios, conjuntos de poucas casas muito simples, de parede de barro e telhado de palha, misturam-se com milhares de lhamas e alpacas que fazem sua refeição diária ou caminham pelos cumes das montanhas.
A viagem através das subidas, descidas e curvas da estrada de terra, esburacada, enlameada, dura cerca de três horas mais, até a pequena Huanco Pallallani, uma pobre comunidade de, talvez, 200 famílias. Em quase toda a volta da mal-tratada praça principal, as rústicas moradias disputam espaço com o mercado de rua, que comercializa de sardinhas a roupas.
Em um ponto do local, um pequeno e simples palco, decorado com a bandeira boliviana e quadros de Simón Bolívar, o herói da independência da Bolívia. É aí que, em algumas horas, aconteceria a cerimônia de declaração de Aucapata, o município do qual Huanco faz parte, como território livre do analfabetismo.
Bairro Horizontes, El Alto, uma sexta-feira de noite
Apthapi, para os aymaras, é a comida compartilhada. Batata, chuño, frango, banana... Com estes alimentos, saboreados, com as mãos, por todos os que restam em uma sala de aula de uma escola precária na periferia de El Alto, é finalizada a alfabetização de um grupo de senhoras indígenas, conhecidas como cholas. Elas mesmas prepararam e levaram a comida. Estão felizes. Agradecem, a todo momento, aos responsáveis pelo curso. Querem seguir estudando.
Villa San Antonio, periferia de
Sob os olhares e o incentivo da professora, uma indígena típica da Bolívia, vestindo uma grande saia, um chale e um gorro azul, escreve na lousa. Tem por volta de 60 anos. Com dificuldade, ela olha no caderno, e as letras vão saindo, pouco a pouco. “F”, “E”, “L”, assim sucessivamente, até aparecer o nome “Felipa”, em extenso e
O
A escola fica na Villa San Antonio, no alto do morro. Muito alto. De lá, pode-se ver quase toda
Escritório da seção departamental do Plano Nacional de Alfabetização, no bairro de Sopocachi,
Nirvana Callejas tem 19 anos. É surda e fala com alguma dificuldade. Mas nada disso impediu que ela ensinasse a 13 surdos-mudos a lerem e escreverem. “Antes eles só usavam sinais. Ensinei a ler os lábios, a escrever orações ordenadas e completas. Por exemplo, ‘mamãe é boa’. Eles escreviam somente ‘mamãe boa’. Então, tem que ensinar a ordenar, a pôr verbo. Há palavras que eles não conhecem, tem que explicar”, conta, sem esconder o orgulho.
Bolívia, coração da América do Sul, início de 2006
Em 1º de março de 2006, é dado o pontapé inicial de um ambicioso projeto do governo do presidente Evo Morales. Tornar seu país o terceiro da América Latina a erradicar o analfabetismo, depois de Cuba, em 1961, e Venezuela, em 2005.
Para tal, decide contar com a ajuda justamente de cubanos e venezuelanos. Da nação governada por Hugo Chávez, viriam assessores. Da ilha, além destes, chegaria o método áudio-visual de alfabetização Yo, Sí Puedo (ver nesta página) – “eu posso, sim”,
Dois
“Antes estávamos muito atrasados, não entendíamos nada. Agora estamos captando as coisas. Quero ler livros, jornais, tudo, tudo, tudo”, diz Martin Mamani, de Huanco Pallallani. Nesta pequena comunidade rural, cerca de 600 pessoas aprenderam a ler e a escrever. Em Aucapata, município que a engloba, foram 1500 no total.
No dia 16 de março, com a presença de autoridades indígenas da região, se içou uma grande bandeira branca dizendo “Aucapata, livre de analfabetismo”. Foi a 128ª cidade do país, de
“Mais feliz”
Liriana Mendoza Choque, de 30 anos, é aluna do programa de alfabetização
“Fui este ano, me deram três formulários, tinha que preenchê-lo, e te falo que só errei em uma folha. Preenchi os três com facilidade. Conforme eu ia lendo, ia preenchendo, e me sentindo mais feliz. Você se sente melhor quando já pode”, conta. Liriana, que usará o que aprendeu também para estudar a Bíblia, diz que, ao contrário do que fizeram seus pais, vai manter sempre seus filhos estudando. “Vou apoiá-los até o final”.
Já Ubaldina Flores Condori, uma das responsáveis pelo apthapi de El Alto, quer continuar aprendendo. Fazer o programa de pós-alfabetização e, inclusive, computação. “Tudo isso podemos aprender. Querer é poder. Quando não sabemos, aqueles mais capacitados nos humilham”, diz a senhora de 57 anos.
Emancipação
A professora de Liriana, Mery Chuquinia Carrasco, que atua como facilitadora do método Yo, Sí Puedo, explica que a alfabetização contribui para a emancipação feminina. “Quando uma mulher sabe ler e escrever, ela não vai se deixar enganar. Quando não sabem ler ou escrever, lhes podem dizer tantas coisas, tantas mentiras, podem fazê-las assinar papéis falsos, simplesmente com impressão digital. Hoje a mulher tem que saber assinar, saber ler, compreender”.
Emancipação, perda da timidez e elevação da auto-estima foi o que conquistaram cerca de 30 surdos-mudos com a alfabetização, segundo Edith Aguilar, professora que adaptou o método Yo, Sí Puedo para o ensino de pessoas com essa deficiência. “Eles agora acreditam que podem fazer tudo que faz uma pessoa não surda. Acham que não têm mais limitações, porque desenvolveram outras potencialidades: a visão, o tato, a leitura labial etc”.
Vontade
De acordo com ela, o primeiro passo foi convencer os pais, normalmente céticos quanto a evoluções de seus filhos, jovens entre 17 e 25 anos. Depois, a próxima etapa foi fazer a adaptação do método. “Eu punha suas mãos no televisor, para sentirem a vibração, os sons, a pronúncia, o tempo. Trabalhamos com materiais extracurriculares, como pirulitos, para estimular os músculos da língua e da cara. Eles puseram muito de sua vontade”, lembra Edith.
Trabalhando por muitas horas semanais, o curso acabou em três meses. No entanto, duas de suas alunas, uma delas Nirvana Callejas, pediram que os equipamentos não fossem devolvidos. “Então, elas alfabetizaram seus amigos surdos”, conta Edith.
Um método revolucionário
Criado pela Revolução Cubana, o método de alfabetização Yo, Sí Puedo é inovador pelo uso de equipamentos audiovisuais. Uma televisão, um vídeo cassete e 65 fitas são os instrumentos de ensino. O professor está na tela. Na sala de aula, é imprescindível a presença de um facilitador.
“Estamos certos de que esse é o método mais econômico. É flexível. O custo por alfabetizado é muito menor que em outros países. Em outros lugares, o mínimo é 55 dólares por aluno. Aqui, gastamos de
Segundo ele, justamente por ser flexível, o método cubano foi “bolivianizado”. Um grupo de especialistas do país gravou as fitas, fazendo um ajuste à realidade nacional. “Agora, está representada uma mulher de pollera [saia típica das indígenas], um camponês”, conta Benito.
Alfabetização indígena
Outra importante adaptação foi a inclusão da alfabetização em aymara e quéchua, os dois idiomas originários mais falados no país. Para tal, professores das duas etnias gravaram as fitas do curso. Até fevereiro deste ano, 6.089 pessoas haviam sido alfabetizadas em aymara, e 8.937
Uma das grandes dificuldades do programa de alfabetização na Bolívia é chegar nas comunidades rurais mais distantes, principalmente as que não possuem energia elétrica, elemento essencial para o método áudio-visual. Para resolver esse problema, milhares de painéis solares foram e estão sendo instalados nos locais, com a colaboração de Cuba e Venezuela.
Em média, leva-se de três a quatro meses para se alfabetizar uma pessoa com o método Yo, Sí Puedo, enquanto outros demoram de seis meses a um ano. O diretor-geral do PNA conta que os facilitadores não são necessariamente educadores, mas devem ser capacitados para tal. “São professores rurais, urbanos, militares, normalistas, universitários, líderes camponeses, voluntários etc”.
Quem capacita os facilitadores são os assessores cubanos e venezuelanos no país, que também instruem os supervisores e organiza aspectos do programa. No total, estão na Bolívia 120 profissionais de Cuba e 18 da Venezuela.
Agora, diz Benito, o próximo passo é o programa de pós-alfabetização. “Uma equipe técnica já está trabalhando nisso. Professores especialistas em cada matéria vão gravar as fitas, e o curso vai durar de dois a três anos”.
- Igor Ojeda é correspondente do Brasil de Fato em La Paz.
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