Deus e o latim
05/08/2007
- Opinión
Muitas pessoas, cristãs e não cristãs, andam espantadas com as recentes intervenções do Vaticano, como o motu próprio do papa a favor do antigo rito romano em latim. Muitos se perguntam sobre o que isso significa para o mundo do século XXI e, principalmente, para a própria Igreja. Pressentem que, nesta medida, está em jogo mais do que apenas um problema de rito e de idioma. O destinatário da decisão não é Deus a quem é dirigido o culto, já que este compreende muito bem as línguas atuais, talvez melhor do que o latim. Afinal, a Bíblia diz que ele é o Deus que escuta o clamor dos oprimidos. No mundo antigo, a Igreja deixou de usar o grego em seus cultos e passou a falar latim que era a língua das massas mais pobres. Aí, certamente, Deus também falava latim. Agora, a volta ao latim serve apenas a grupos conservadores que fazem questão de separar bem o sagrado e o profano, a Igreja e o povo. É de se perguntar se Deus conseguirá compreender este latim.
Muitos bispos, padres e fiéis católicos sofrem porque percebem que, por trás desta decisão do papa, o que está em jogo é, como se dizia no Brasil das comunidades eclesiais de base, “um modo de ser Igreja e um modo da Igreja ser”. O problema não é recuperar o rito romano usado antes do Concilio Vaticano II, nem apenas a volta ao latim. É sepultar de vez um modelo de Igreja, ensaiada no Concílio e que se dispunha a viver em diálogo com a humanidade e mais como povo de Deus do que como um governo central de assuntos religiosos.
Todo mundo sabe que, na realidade, desde o inicio do pontificado de João Paulo II, as propostas mais profundas do Concilio Vaticano II e o seu modo de compreender a Igreja já não eram aceitas. Em diversas ocasiões, o atual papa, quando ainda prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, revelou-se contrário ao pensamento de que as Igrejas locais são plenamente Igrejas, do mesmo modo como nega a plena eclesialidade das Igrejas evangélicas e afirma que só a Igreja Católica é a verdadeira. Especificamente, desde 2003, quando o conclave que o elegeu começou a ser preparado, ele sempre deixou claro o que pensa e qual proposta de Igreja, no caso de eleito, iria executar fielmente. Todos os que nele votaram sabiam disso e optaram por esta direção. Mesmo os que não votaram, mas fortalecem este sistema sabem perfeitamente o que estão fazendo e não têm por que estranhar agora. O fato do rito ser celebrado em latim ou português, ou com gestos mais arcaicos ou modernos, não muda muito se, mesmo no rito atual em vigor depois do Concilio, os índios da Amazônia, as comunidades negras da Nigéria e os aborígenes da Austrália são obrigados a ler as mesmas leituras, dizer as mesmas orações e realizar os mesmos gestos pensados e decididosem Roma.
Para o Concílio Vaticano II, o importante era a participação ativa e consciente da comunidade local em uma celebração que fosse fonte e expressão da vida de cada Igreja, reunida aqui e agora, em comunhão com a Igreja Universal. À medida que o caráter especifico de cada Igreja local é negado e a maioria dos bispos parece conivente com isso, pouco importam a língua e o rito em que se celebra a liturgia ou por quais caminhos decidirão realizar o sonho de reconstituir a cristandade medieval romana em pleno século XXI.
A humanidade leiga que pouco se importa se uma determinada Igreja usa esta ou aquela língua ou cumpre estes ou aqueles gestos cultuais se escandaliza com as noticias oriundas do Vaticano porque percebe nestas querelas eclesiásticas que, novamente, as religiões falharão em sua missão de se unirem a serviço da paz do mundo e da defesa do planeta Terra. Provavelmente, o rito latino não se referirá mais aos judeus como pérfidos ou aos não católicos como ímpios. Entretanto, por trás das palavras e da linguagem, continuará o mesmo triunfalismo pouco amoroso.
Quando o papa João XXIII mandou retirar do rito estas expressões, o que estava por trás de sua decisão era a decisão de abrir-se ao diálogo e ao acolhimento de todo ser humano. No dia 11 de outubro de 1962, ele abriu o Concilio Vaticano II, convidando toda a Igreja a se alegrar porque chegava uma primavera nova para a Igreja e para a humanidade. Naquela noite de lua cheia, o papa olhou de sua janela no Vaticano e viu, na praça, uma multidão com velas nas mãos. No céu, a lua parecia se extasiar com aquele espetáculo. O papa bom aparece na janela e diz à multidão ali reunida que a lua tinha vindo festejar com eles a nova abertura da Igreja. Propõe que cada pessoa ali presente, ao voltar para casa, dê um beijo em quem lhe é mais próximo. Faça isso em nome do papa como sinal do seu carinho. Esta língua, Deus entende e não precisa de moto próprio para ser explicada. À medida que esta linguagem do diálogo se tornou estranha para muitos hierarcas, é normal que o papa prefira a missa em latim e com uma forma de orar auto-centrada e pouco amorosa.
Para não perder a fé no ser humano e no futuro da vida, a humanidade precisa saber que, apesar de tudo, a Igreja Católica tem muitos missionários e missionárias que, em todos os países, estão doando suas vidas a serviço dos mais empobrecidos, como acontece nas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs -, e nas Pastorais Sociais. O povo de Deus, constituído de comunidades, cada vez mais maduras e dignamente autônomas, não se deixa abalar por essas coisas e testemunha que Deus não está preocupado se a missa é em latim ou neste ou naquele rito e sim se a vida da humanidade e do planeta está sendo protegida e se estamos engravidando um mundo novo possível.
- Marcelo Barros é monge beneditino, teólogo e assessor dos movimentos populares e da Pastoral da Terra na América Latina.
Muitos bispos, padres e fiéis católicos sofrem porque percebem que, por trás desta decisão do papa, o que está em jogo é, como se dizia no Brasil das comunidades eclesiais de base, “um modo de ser Igreja e um modo da Igreja ser”. O problema não é recuperar o rito romano usado antes do Concilio Vaticano II, nem apenas a volta ao latim. É sepultar de vez um modelo de Igreja, ensaiada no Concílio e que se dispunha a viver em diálogo com a humanidade e mais como povo de Deus do que como um governo central de assuntos religiosos.
Todo mundo sabe que, na realidade, desde o inicio do pontificado de João Paulo II, as propostas mais profundas do Concilio Vaticano II e o seu modo de compreender a Igreja já não eram aceitas. Em diversas ocasiões, o atual papa, quando ainda prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, revelou-se contrário ao pensamento de que as Igrejas locais são plenamente Igrejas, do mesmo modo como nega a plena eclesialidade das Igrejas evangélicas e afirma que só a Igreja Católica é a verdadeira. Especificamente, desde 2003, quando o conclave que o elegeu começou a ser preparado, ele sempre deixou claro o que pensa e qual proposta de Igreja, no caso de eleito, iria executar fielmente. Todos os que nele votaram sabiam disso e optaram por esta direção. Mesmo os que não votaram, mas fortalecem este sistema sabem perfeitamente o que estão fazendo e não têm por que estranhar agora. O fato do rito ser celebrado em latim ou português, ou com gestos mais arcaicos ou modernos, não muda muito se, mesmo no rito atual em vigor depois do Concilio, os índios da Amazônia, as comunidades negras da Nigéria e os aborígenes da Austrália são obrigados a ler as mesmas leituras, dizer as mesmas orações e realizar os mesmos gestos pensados e decididos
Para
A humanidade leiga que pouco se importa se uma determinada Igreja usa esta ou aquela língua ou cumpre estes ou aqueles gestos cultuais se escandaliza com as noticias oriundas do Vaticano porque percebe nestas querelas eclesiásticas que, novamente, as religiões falharão em sua missão de se unirem a serviço da paz do mundo e da defesa do planeta Terra. Provavelmente, o rito latino não se referirá mais aos judeus como pérfidos ou aos não católicos como ímpios. Entretanto, por trás das palavras e da linguagem, continuará o mesmo triunfalismo pouco amoroso.
Quando o papa João XXIII mandou retirar do rito estas expressões, o que estava por trás de sua decisão era a decisão de abrir-se ao diálogo e ao acolhimento de todo ser humano. No dia 11 de outubro de 1962, ele abriu o Concilio Vaticano II, convidando toda a Igreja a se alegrar porque chegava uma primavera nova para a Igreja e para a humanidade. Naquela noite de lua cheia, o papa olhou de sua janela no Vaticano e viu, na praça, uma multidão com velas nas mãos. No céu, a lua parecia se extasiar com aquele espetáculo. O papa bom aparece na janela e diz à multidão ali reunida que a lua tinha vindo festejar com eles a nova abertura da Igreja. Propõe que cada pessoa ali presente, ao voltar para casa, dê um beijo em quem lhe é mais próximo. Faça isso em nome do papa como sinal do seu carinho. Esta língua, Deus entende e não precisa de moto próprio para ser explicada. À medida que esta linguagem do diálogo se tornou estranha para muitos hierarcas, é normal que o papa prefira a missa em latim e com uma forma de orar auto-centrada e pouco amorosa.
Para não perder a fé no ser humano e no futuro da vida, a humanidade precisa saber que, apesar de tudo, a Igreja Católica tem muitos missionários e missionárias que, em todos os países, estão doando suas vidas a serviço dos mais empobrecidos, como acontece nas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs -, e nas Pastorais Sociais. O povo de Deus, constituído de comunidades, cada vez mais maduras e dignamente autônomas, não se deixa abalar por essas coisas e testemunha que Deus não está preocupado se a missa é em latim ou neste ou naquele rito e sim se a vida da humanidade e do planeta está sendo protegida e se estamos engravidando um mundo novo possível.
- Marcelo Barros é monge beneditino, teólogo e assessor dos movimentos populares e da Pastoral da Terra na América Latina.
https://www.alainet.org/es/node/122561
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