A força da dignidade

29/05/2007
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Como o terrorismo é ensinado rapidamente

200.000.000 de ônibus vazios estacionados geometricamente no terminal da Fonte – e lá dentro, nenhum motorista, nenhum cobrador, nenhum passageiro. Começara a longa greve que durante seis dias paralisaria a cidade de Blumenau/Brasil – também conhecida como Europa Brasileira pela sua elite, que esconde com muito cuidado as suas favelas por detrás dos morros, onde pobre pode ser tratado como a elite acha que pobre deve ser tratado.

No terminal já citado, apenas uns poucos policiais guardavam a entrada. Do outro lado da rua, na noite de frio intenso, os motoristas paralisados, com pesados casacos escuros, esfregavam as mãos umas nas outras para esquentá-las, e aproveitavam para assar lingüicinhas num braseiro, para depois comê-las com pão. Um ou outro motorista tinha um cobertor, e se enrolava nele. Os comentários eram os de uma greve quase idílica:

- A gente não trabalha, e a polícia faz o serviço dela, e cuida do patrimônio do patrão.

- É, ninguém quer danos para o patrão. Só queremos o respeito que a lei assegura para a gente.

- Sim, queremos ser gente de novo. Ninguém agüenta trabalhar 12, 14 horas por dia, e ter só 4 folgas por mês.

Fiquei pensando: a Europa Brasileira repetia agora, no século XXI, a Europa da Revolução Industrial, do século XIX, e transformava seus trabalhadores em declarados escravos? Que outro nome se podia dar àqueles homens com tal jornada de trabalho e exaustão explícita?

- Se todo o mundo estiver junto, a gente vence.

- É, vence. Nada de tumultos. Vamos ficar aqui na nossa, que do patrimônio do patrão a polícia cuida. Está muito bem assim.

Penso que todos os grevistas estavam acreditando naquilo. Foi então...

Foi então que começaram a chegar os carros de polícia e parar dentro do terminal. Num instante já eram cinco carros; logo, havia polícia como se fosse um formigueiro. No meio das tuas turmas, uma rua de duas pistas.

Terrorismo é coisa fácil de aprender, e lá nas academias de polícia ele deve ser muito bem estudado. E ele começou a ser executado.

Primeiro uma viatura cheia de moças bonitas, ao invés de se dirigir ao terminal, veio estacionar junto aos motoristas. Há que se tirar o chapéus para as moças policiais: usam maquiagem discreta, cabelos longos elegantemente presos, são sorridentes e lindas. Claro está que um grande grupo de homens na idade da sua grande força não ficou indiferente àquelas moças bonitas – conversaram com elas respeitosamente, com um ou outro olhar um tanto quanto mais aceso, querendo mais era ficar logo amigo das moças – e elas retribuíam com simpatia e sorrisos – e então começaram a retirar da viatura seus coletes à prova de bala e a vesti-los teatralmente, quase que acintosamente, com todos os olhares de todos aqueles homens presos nelas, e elas eram todas sorrisos, mas a mensagem era bem clara: haveria tiroteio, decerto, e como elas estavam no meio dos que seriam atingidos, estava na hora de se proteger. Não sei como ficou aquilo dentro de cada um – quem nunca tinha nem sonhado como é que é que se faz terrorismo, talvez tenha tido uma tremura de medo por dentro, não dá para saber. Mas a confiança na polícia que “protegia o patrimônio do patrão” continuava, e quando o puliça veio e atravessou a rua, houve cochichos entre os que assavam as lingüicinhas:

Esse cara é gente fina! A gente não está fazendo nada de errado.

E o puliça postou-se diante dos grevistas, e como quem não quer nada, entabulou uma conversa, dessas assim também de quem não quer nada, e inseriu nela, como se nada quisesse, que os ônibus logo seriam tirados dali. Um dos homens disse:

- Daqui não sai ônibus.

E o puliça:

- E como é que vocês vão impedir?

E os homens, uns apoiando os outros:

- A gente se deita tudo na entrada do terminal. Não tem como passar, com a gente deitado lá.

E o puliça:

Vocês nunca viram como é que fica um braço depois que o pneu dum ônibus passa por cima, não?

Nem o sorriso das moças e nem o sorriso sardônico do puliça evitaram o mal-estar geral que percorreu o grupo, como um óleo quente que se espalha por todos os lados. Estava dada a largada para o intensivo aprendizado sobre como funciona o terrorismo e as autoridades que os motoristas de Blumenau iriam ter nas mais ou menos 150 horas seguintes. Nenhuma universidade seria capaz de ensinar tanto numa vida inteira. E o bom é que tanto eu quanto o puliça sabemos quem ele é, e eu sei que ele vai ler isto aqui e saber que ele é ele. É aquele que costumava andar portando um spray de gás de pimenta, conforme se têm tantas fotos.

No terminal do Aterro

Era necessário escrever um compêndio para explicar detalhadamente as lições de terrorismo e os atos acontecidos lá no terminal da Fonte, até que já não havia como resistir e optou-se por se juntar à maioria dos outros motoristas em greve. E então se foram todos para o terminal do Aterro, inclusive o puliça com seu spray de gás de pimenta e suas ameaças sardônicas. Eram muitos os motoristas dentro dos quais crescia a indignação; tinha começado o tratamento humilhante e aviltante com que seriam tratados os motoristas dali por diante, como escória da sociedade, como galés, como se não fossem eles os preciosos trabalhadores que funcionavam como que veias por onde circula o sangue desta minha cidade, e aquela insistência no rebaixamento da sua dignidade lhes doía um bocado, e espoucavam revoltadas discussões a respeito, inclusive com o puliça, que decerto estava se segurando (quer dizer, segurando o gás de pimenta) para não encher os camburões de presos por desacato à autoridade, quando quem desacatava a integridade e o respeito humano daqueles trabalhadores era ele, o homem do gás de pimenta.

O frio não era para brincadeira – fazia 12 graus na noite de estrelas, e um grande fogo nascera na frente do terminal, e ali se estava, também, a preparar lingüicinhas assadas com pão. Era muito grande o número de companheiros naquele terminal: motoristas, cobradores, sindicalistas, apoiadores. Havia os com medo e os sem medo, e aquelas perguntas angustiantes de quem sabe o travo amargo da pobreza:

- Os dias parados serão descontados?
- E se um trabalhar e o outro não, vai haver demissão?
- O que vai acontecer?

E sempre havia quem consolava:

- A força está na nossa união. Há que ficarmos juntos. Nada de discussões, que os caras querem é que a gente discuta, para dizer que houve tumulto ... – e a noite seguia.

Apesar, no entanto, dos com medo e dos sem medo, o que imperava era a grande dignidade de um conjunto de homens que sabia o valor que tinha e que se sentia ultrajado por coisas ultrajantes, como aquela do gás de pimenta. Aqueles homens tinham sonhos e tinham estrelas de Esperança dentro de si, estrelas muito maiores que a luz daquele fogueirão ali aceso. Um deles, na noite fria, com os olhos cheios de profundidade, falava das suas estadas no sítio que amava, no Alto Vale, e das leituras que costumava ler, coisa de muito bom gosto. Era sereno e suave na postura que lembrava um príncipe, e penso que muito burguês gostaria de ter tido um filho assim, a melhorar a dignidade da sua genealogia. Porque, cá entre nós, a burguesia tem produzido cada figura... E o burguês nem acredita nisto que estou dizendo, e nem acredita que entre trabalhadores possa haver alguém que possa pensar e sentir como aquele, como aqueles estavam fazendo. Fico pensando se, talvez, vez ou outra, a burguesia não se reúna para discutir se o trabalhador tem alma. Se até a Igreja já passou 350 anos discutindo coisa parecida...

A passeata

Heroicamente, a greve cumpria seu segundo dia, e nem é possível que se conte o tudo que aconteceu naquele tanto tempo em que a cidade era quase como que um grande dinossauro agonizante, privado do seu sangue e do seu oxigênio. Talvez tenha havido, mas não fiquei sabendo: não conheci exceção sobre o comportamento da imprensa, agindo abertamente, decididamente a favor do Capital – e tem gente que fala em democracia num país com uma imprensa assim!

Este segundo dia era na quinta-feira, e nunca que pensei ver ao vivo, algum dia, o Germinal, de Emile Zola (1) acontecendo nas ruas da minha cidade. (Bem, por que não? Se somos a Europa Brasileira...). O fato é que depois da Assembléia, a categoria dos motoristas de ônibus saiu pela cidade numa passeata, partindo da prefeitura e descendo a Rua Sete. Era MUITA gente, tanta que nem sei dizer quanta – e, organizadamente, toda aquela gente seguia caminhando e gritando palavras de ordem, e eram homens adultos, homens maduros, homens velhos, e usavam os uniformes marrons e pretos das suas empresas, e o dia gelado fazia-os usar os casacos mais pesados, o que os tornava, na aparência, incrivelmente parecidos com o que a gente imagina quando lê Germinal. Mas o que mais os assemelhava aos personagens de Zola era a profunda indignação de que estavam tomados no seu íntimo, a verificação sem nenhuma máscara de que nada eram diante dos donos do poder e do Capital, e que não adiantava uma vida inteira de serviços prestados à comunidade que fazia com que as engrenagens do Capital pudessem girar azeitadamente para que tivessem atingido o status de homens – sabiam antes, mas sem tanta certeza – sabiam agora, com toda a certeza, que os poderosos os viam apenas como escravos, carne de canhão para alimentar a grande fornalha da produção – para os que mandavam, nos empregos e na cidade, a condição humana deles não existia. E a indignação crescia dentro deles, e com os punhos levantados eles socavam o ar como se socassem a sua humilhação, e era possível vê-los tão fortes, mas tão fortes, que era como olhar para um muro feito da mais dura rocha,quando se olhava para seu conjunto, e então não dava para duvidar da força do povo.

A noite vem cedo, neste tempo de maio, e assim naquela penumbra que se formava, aqueles homens de punhos levantados, de marrom e de negro, me contaram, naquele dia, que só poderia haver a vitória. Quando muita gente fica indignada junta, não há ameaça, amedrontamento ou gás de pimenta que possa ter força maior que a dignidade ultrajada. E tem gente que não consegue nunca ter a sensibilidade para entender coisa tão simples!

... e houve o dia do lazer, coisa esquecida.

Então, no domingo, que já era o quinto dia de greve, os motoristas de ônibus de Blumenau descobriram que havia uma coisa da qual já não lembravam: o lazer com suas famílias! Aquela vida que vinham tendo, de acordar às duas da manhã e dormir às sete da noite, trabalhando de 12 a 14 por dia, vida que os impedia a ter vida privada ou familiar, de repente ressurgia no aceso da greve, e todo o mundo almoçou junto, homens, mulheres e crianças, e os casais conversavam de mãos dadas com outros casais de mãos dadas, e as mulheres estimulavam seus homens na continuação da luta, e um malabarista encantava as crianças que nunca tinham podido andar por aí junto com os pais, como as outras, e aquela coisa quase esquecida, da união familiar e do prazer se irradiava dos rostos como um campo de girassóis na primavera! Discretamente, se podia ouvir segredinhos: como as pessoas tinham desligado seus telefones nas paredes, para não sofrer a pressão e o terrorismo dos patrões, e de como tinham desligado seus celulares. Ficava fácil imaginar uma nova rede de comunicações na cidade, primos levando recados para primos, amigos dando notícias para velhos pais preocupados. Havia quem segredasse que nem em casa estava dormindo – e com o apoio da mulher – agora que os patrões já sabiam que os telefones estavam desligados e estavam mandando emissários fazer terror na própria casa dos empregados. Há que se ser muito bobo, mesmo, para se pensar que o povo é bobo!

Toda a dignidade que emanava daquele campo de girassóis tinha que resultar em alguma coisa, e acho que é apropriado, aqui, baixar o nível e usar a expressão mais correta: os patrões pediram pinico, solicitaram negociar naquela tarde!

A falta de respeito

E então, em tradicional hotel da cidade, com uma hora de atraso, as duas partes sentaram-se para negociar. Segundo quem viu, a atitude dos patrões era negociar com os olhos no chão.

Quem não viu os patrões pode ver o outro lado, vilmente impressionante: formigueiro de polícia, tropa de choque, gente presa, caminhão de som e carro de passeio aprisionados – e a grande, dolorosa revolta daqueles homens que muito tinham aprendido nos cinco dias anteriores, e que agora esperavam do lado de fora do hotel – e também das suas mulheres, pois elas estavam solidárias com seus companheiros naquela solidariedade que se encontra tão facilmente entre os humildes.

Então os representantes dos trabalhadores ficaram sabendo do que se passava do lado de fora do hotel e não houve titubeio: com a dignidade que era necessária naquele momento, abandonaram a negociação, exigiram o respeito que estava faltando. Teve burguês estrebuchando, dizendo que não tinha poder sobre a polícia – mas foi só ver a coisa feia que os representantes do Capital passaram a usar seu poder sobre a polícia, e quem estava preso foi solto, e o formigueiro de policiais sumiu, coisas assim que muitas
vezes a gente não pensa que pode acontecer mesmo!

Afinal, acabou não havendo acordo na negociação, naquela noite de domingo – não tenho amizades entre os donos de ônibus, e, portanto, não sei dizer qual foi – mas vi quando um deles, decerto incomodado demais por ter que perder o Fantástico por causa daquela gente que talvez nem tivesse alma, saiu do hotel com ares nada amistosos e foi-se embora no seu automóvel de luxo.

A segunda-feira já seria o sexto dia de greve, e então a coisa ia ou ia. Desta vez as duas partes tinham que se sentar com uma Juíza do Trabalho, lá em Florianópolis, e anoiteceu e a noite avançou sem que se soubesse o que se passava lá naquela ilha. Então alguém sinalizou: parece que vinha coisa boa para a categoria, parece que havia sido fechado um acordo. Como cada vez mais não se usavam os telefones ou a Internet, penso ter visto, na noite de lua cheia, bastante nuvenzinhas de fumaça resplandecendo por esta cidade, repassando notícias alvissareiras.

A dignidade na madrugada

Foi às três da manhã, frio de dez graus, lá no terminal da Fonte, que a Assembléia aconteceu. Aqueles homens de marrom e de negro que tinham levantado os braços e socado o ar de tanta indignação, dias antes, agora faziam a mesma coisa movidos pela tremenda dignidade que tomava conta das suas pessoas que tinham tido o reconhecimento de que eram portadoras de almas. Os patrões tiveram que ter um tempo para poder resolver direito a coisa, claro, que a cidade exige respeito e bons profissionais bem treinados, como estes que cruzaram os braços por seis dias. Então os patrões têm meio ano para ter a coisa toda funcionando – e nossos motoristas, que sequer reinvindicaram salários, vão trabalhar, quando tudo estiver nos conformes, apenas sete horas por dia, uma razoável jornada para quem é responsável pela segurança e saúde de quase toda a população, sem contar as muitas outras conquistas – e então alguém disse: “E se os patrões não cumprirem o acordo?”. Foi engraçado, ninguém nem respondeu a quem perguntou uma coisa assim: as pessoas ao redor deram-se risinhos cúmplices e fizeram aquelas caras que dizem tudo, e cada um entendeu muito bem o que todos sentiam – que quando as pessoas aprendem a lutar, elas não se esquecem nunca mais!

E então houve uma coisa tão bonita, tão linda, que tinha que ter alguém como Emile Zola por perto, para poder contar depois da melhor forma: assembléia encerrada, três e pouco da madrugada, nossos motoristas nada discutiram - cada um envolveu-se bem no macio e protetor manto da dignidade conquistada, subiu no seu ônibus e foi trabalhar. Estão por aí, trabalhando, desde aquela hora. Já quase anoitece. Tivemos perto de 150 horas de greve, a mais longa greve de motoristas já acontecida no Brasil. E esta nossa cidade de Blumenau nunca mais será a mesma!


Blumenau, 29 de maio de 2007.

Urda Alice Klueger
Escritora e historiadora
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(1) Romance sobre a vida dos mineiros franceses do século XIX, em plena Revolução Industrial.
https://www.alainet.org/es/node/121452

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