Votar: alteridade e responsabilidade
01/10/2006
- Opinión
O uso e – mais ainda – o abuso de certas palavras carregadas de significado e conteúdo acabam por banalizá-las e relegá-las ao cesto olvidado da repetição inconsciente e automática. Assim tem acontecido com a palavra “responsabilidade”. Acostumamo-nos a qualificar alguém de responsável quando se mostra de conduta irrepreensível segundo os parâmetros vigentes, fiel a seus deveres de estado, de colégio ou de profissão. Responsável é alguém que paga suas contas em dia, assume seus compromissos conjugais e paternos e/ou maternos, não rouba, não mata. Enfim, um honesto cumpridor da lei.
A palavra “responsabilidade” traz em seu bojo muito mais do que isso. Trata-se, na verdade, de algo que engaja a vida. Encontra sua fonte em outra palavra: “resposta”. Por isso, a ética filosófica define responsabilidade como a situação de um sujeito consciente em relação aos atos que pratica voluntariamente. Ou ainda, indo mais fundo, como obrigação de reparar o mal que causou a outros.
Isto nos faz chegar da “responsabilidade” ao “responsável”. “Responsável” é aquele que responde pelos próprios atos ou pelos de outrem; que responde legal ou moralmente pela vida, pelo bem-estar, de alguém. Ser responsável, portanto, é estar pronto a responder “Eis-me aqui!” quando está em jogo a vida, e o direito à vida e à dignidade não apenas de si próprio, mas também dos outros.
Quem, na filosofia contemporânea, melhor trabalhou essa questão foi certamente o filósofo lituano de origem judaica que viveu e morreu na França: Emmanuel Levinas. Segundo Levinas, a identidade do sujeito somente se constrói na acolhida responsável ao outro como referência necessária à relação e à identidade. Esta relação se torna sempre uma interpelação ética. A alteridade do outro – sua identidade diferente da minha, sua diferença e sua originalidade - é convite constante, repetida demanda para sair de si, para transcender-se na responsabilidade pelo outro.
Para Levinas, o Eu é portador da responsabilidade do outro e pelo outro; por outro lado, seu pensar introduz na fenomenologia e na hermenêutica jurídica o conceito de substituição. Na responsabilidade para com o outro se instaura a situação ética e emerge um novo imperativo categórico que põe a interpelação ética como principio da justiça. Assim fazendo, supera a instituição jurídica formal, indo além de seu código restrito.
Minha subjetividade é configurada então pelo outro e pela minha responsabilidade diante dele. É no rosto do outro concreto em carne e osso que o olhar de seu rosto me interpela e me convoca a uma resposta.
A esta altura, os leitores se perguntarão o porquê desta reflexão filosófica sobre a responsabilidade no momento das eleições. A razão simplesmente é esta: estando tão enojada por uma campanha que enlameia e avilta a mídia e o coração dos brasileiros, não posso pensar no evento eleitoral com alguma elevação de espírito senão apelando para a filosofia de Levinas.
Votar implica uma tremenda responsabilidade ética. Portanto, na hora de escolher, apesar das aparências tão desalentadoras do cenário nacional, não nos esqueçamos de que somos responsáveis por todos os que são nossos companheiros de cidadania neste país tão amado e tão sofrido que é o Brasil.
Ao votar, digamos “Eis-me aqui!” e não “Que me importa?” ou “Não adianta nada mesmo”. Respondamos por nosso povo com todo o nosso ser, eis o apelo que o filósofo e talmudista Levinas nos lança aqui e agora.
- Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/es/node/117355
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