Veja estimula ódio e preconceitos

12/08/2006
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Na noite deste sábado, no caixa de um supermercado na região central de São Paulo, uma típica senhora da alta classe média, vestida no pior estilo da perua decadente, pega a última edição da revista Veja. Na capa, a foto de uma mulher negra, título de eleitor na mão, e a manchete: “Ela pode decidir a eleição”. No texto-legenda, a descrição: “Nordestina, 27 anos, educação média, 450 reais por mês, Gilmara Cerqueira retrata o eleitor que será o fiel da balança em outubro”. A dondoca burguesa, indignada, tenta puxar conversa, em plena militância eleitoral. “Que absurdo. Onde já se viu essa gente pobre decidir o destino do país. Eu odeio o Lula. Deus nos livre dele”. O episódio, por mais repugnante que possa parecer, é verídico. Dá ânsia de vomito, mas é real, infelizmente. Ele revela o grau exacerbado de preconceito da burguesia e de parcelas da “classe mérdia” contra o presidente Lula e por sua opção, mesmo tímida, de priorizar os investimentos nas áreas carentes. A extremada reação da madame deve ter sido exatamente a orquestrada pelos conspiradores da Editora Abril, asseclas do golpista-mor Roberto Civita. O objetivo desta e de outras edições da revista Veja é o de criar um clima de ódio entre as camadas médias contra o atual governo. A publicação não visa informar, mas sim manipular e gerar preconceitos. E a perua nem havia lido a revista – bastou a capa para liberar seus piores instintos de classe. As páginas internas destilam veneno; são todas editorializadas e não informativas e imparciais. Num texto leviano, por exemplo, esta edição novamente vincula os petistas ao crime organizado. Sem provas, afirma: “Fica evidente a simpatia do PCC pelo PT, bem como a aversão da organização pelo PSDB” – o que mereceria um imediato processo judicial do partido contra a Editora Abril. Noutro artigo, não vacila em citar a China – seu eterno diabo comunista – para atacar o “tímido” crescimento da economia brasileira, por culpa do “populismo e do corporativismo” do governo Lula, que “criam um ambiente avesso à competição e a inovação”. Haja descaramento! Panfleto da direita Mas é na reportagem de capa, que ocupa dez páginas da edição, que a Veja escancara todo o seu preconceito e ódio de classe. O primeiro artigo tenta desqualificar os 34 milhões de eleitores do Nordeste, com pouca escolaridade (93% até o nível médio) e baixa renda (71% ganham até R$ 700). De forma marota, acusa essa “gente pobre” de ser vítima do assistencialismo. “[Gilmara] não tem dinheiro para comprar um par de óculos para o filho caçula, mas está satisfeita com a vida – e com Lula. ‘Ele é um homem bom’, diz ela, que, como outros 22 milhões de nordestinos, recebe o Bolsa Família – a mais espetacular alavanca eleitoral de Lula no Nordeste”. Já o segundo texto reforça o dogma neoliberal de que os investimentos públicos em programas sociais equivalem à “gastança” e são ineficientes economicamente. A manipulação é descarada. O próprio articulista constatou que várias cidades e regiões do Nordeste tiveram suas economias dinamizadas devido aos programas sociais do governo. As vendas no varejo cresceram 17,7% - bem acima dos 7% na região Sudeste – e “os nordestinos passaram a comprar mais alimentos perecíveis, material de limpeza e higiene”. Apesar destes fatos irretocáveis, o pau-mandado dos Civitas aposta no desastre desta política e ainda tenta estimular a discriminação regional: “O Nordeste enfrenta uma bolha de crescimento inflada pelo aumento do consumo, que, por sua vez, é lastreado em grande parte no dinheiro que os brasileiros que trabalham e pagam impostos carreiam para a região em programas assistenciais”. Haja rancor pequeno-burguês! O último texto é o mais raivoso de todos; já verte veneno no título: “Reféns do assistencialismo”. Em poucas linhas, ele bate três vezes na tecla de que os programas sociais do governo “distribuem dinheiro dos brasileiros que trabalham e pagam impostos a 44 milhões de outros brasileiros” – os nordestinos. A repetição não é por mera incompetência. Visa exatamente contaminar a madame e outros individualistas empedernidos das camadas médias. O medo da democracia O lamentável episódio deste sábado, que causou irritação e reforçou a convicção de que a classe “mérdia” é egoísta e burra, corrobora uma tese defendida pelo historiador Augusto Buonicore, num excelente artigo na revista Debate Sindical. Conforme ele demonstra, as classes dominantes fizeram de tudo para evitar a ampliação dos espaços democráticos. Sempre temeram o sufrágio universal, exatamente por temerem o voto da “gente pobre” – da mulher, nordestina, negra, baixa escolaridade e poucas posses. No caso das mulheres, elas só conquistaram esse direito em 1918, na Inglaterra; em 1920, nos EUA; em 1934, no Brasil; e em 1948, na França. Já os negros dos EUA, exemplo de democracia para a Editora Abril, só adquiriram direitos políticos nos anos 60. Foi John Locke, principal teórico liberal da revolução inglesa, quem propôs a exclusão dos não-proprietários do direito ao voto: “Todo governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade”. Já James Madison, o quarto presidente dos EUA, confessou: “Se as eleições forem abertas para todas as classes do povo, a propriedade não será mais segura”. E até John Stuart Mill, um liberal progressista, tentou desfigurar o sufrágio universal. “Um empregador é mais inteligente do que um operário por ser necessário que ele trabalhe com o cérebro e não só com os músculos. Nestas condições, pode-se atribuir dois ou três votos a toda pessoa que exerce uma dessas funções de maior relevo”, pregou, ao defender o voto diferenciado entre as classes. A conquista destes direitos demandou dos trabalhadores muitas revoltas, manifestações, greves e revoluções. “A consigna ‘um homem um voto’, que se tornou paradigma dos estados modernos, soava como algo subversivo aos liberais burgueses. A própria palavra democracia era explosiva. Assim, contraditoriamente, o que conhecemos como democracia burguesa foi uma conquista da luta dos trabalhadores contra a própria burguesia que tentava excluí-los da vida pública”, conclui Buonicore. Apesar dos limites e seduções da democracia burguesa, ela permitiu que um operário grevista, no Brasil, e um líder camponês, na Bolívia, chegassem à Presidência da República. Atentado à Constituição É isso que causa tanta ojeriza, preconceito e ódio de classe à revista Veja e às madames-peruas. Por mais que o governo Lula tenha cedido – e cedeu demais ao “deus-mercado” –, as elites não o toleram. Não aceitam que um novo bloco de forças, oriundo das camadas populares e das lutas sociais, tenha chegado ao governo central. Não aceitam que o governo, mesmo que timidamente, inverta algumas prioridades e invista em programas sociais, na valorização do salário mínimo, na ampliação do crédito popular, na agricultura familiar. Elas têm nojo desta “gente pobre” e do que Lula simboliza. A maioria pobre é para ser uma fiel serviçal e não quem “decide a eleição”. Numa democracia mais avançada, a Editora Abril seria processada por estimular o preconceito e a discriminação regional, que ferem a Constituição; já a dondoca seria presa por racismo! Apesar dos limites da “democracia dos proprietários”, seria saudável para a democracia e para o próprio jornalismo que pipocassem centenas de processos na Justiça contra esta asquerosa publicação! É preciso ter a dignidade e ousadia do jornaleiro Fabio Marinho, dono de uma movimentada banca em Porto Alegre, que se recusou a vender esta revista! A Veja está passando de todos os limites e merece o forte repúdio da sociedade. - Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi).
https://www.alainet.org/es/node/116571
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