Panamenhos decidem sobre ampliação do canal

13/06/2006
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Era nove de janeiro de 1964. Naquele dia os estudantes do Instituto Nacional decidiram caminhar até a zona do canal e içar ali a bandeira do Panamá, afinal, aquela era a terra deles. E assim foi. A grande caminhada reuniu não só estudantes, mas gentes de todas as cores políticas. Era um gesto poético, visto que desde 1903 os panamenhos estavam impedidos de entrar em seu próprio território. Mas era também um gesto político, anti-imperialista e de recuperação da soberania. A zona do canal era dos Estados Unidos e ali só podiam entrar os chamados “zoneiros“, estadunidenses que moravam no local. Os panamenhos só entravam com um passe especial, e suas funções naquele lugar eram geralmente subalternas. E naquele 9 de janeiro, o povo do Panamá foi recebido por tropas ianques, mais de cinco mil soldados, tanques e armamento pesado. Uma estúpida demonstração de força, mas que mostrava bem o que era o canal e o que era aquela ocupação centenária. As gentes tremeram diante da força. Mas, alguns garotos, rebeldes como só a juventude pode ser, não se deixaram intimidar. Empunharam a bandeira do Panamá e marcharam até a cerca, prontos a levantar o símbolo de seu país na escola Balboa, que ficava dentro da zona do canal. Foram impedidos pelos estudantes estadunidenses que frequentavam a escola e também por militares, a bandeira do Panamá foi rasgada. Aquilo foi o estopim da revolta. Em pouco tempo começaram a soar os disparos e a pacífica marcha acabou em tragédia. O primeiro a tombar, morto, foi o jovem estudante Ascanio Arosemena, que poucos minutos antes tinha sido fotografado ajudando a um amigo ferido. Ao todo foram 22 mortos e mais de 500 feridos. A bandeira do Panamá não ficou tremulando na escola estadunidense, mas ficou marcada no coração de cada panamenho. Desde então, o sacrifício de Ascanio e de outros tantos, não foi em vão. O povo do Panamá lutou e reconsquistou a soberania sobre o canal, que foi devolvido em 31 de dezembro de 1999. Mas, agora, de novo, a vida das gentes do Panamá está ameaçada por conta do canal. Há uma proposta – vinda da Autoridade do Canal do Panamá (ACP) - de uma ampliação que pretende construir um terceiro jogo de eclusas. A obra custará em torno de cinco bilhões de dólares e levará oito anos para ficar pronta. O governo se propôs a fazer uma consulta popular sobre o assunto, mas as críticas já começaram a pipocar. “A possibilidade de que se distorça o caráter democrático do referendo mediante a intervenção presidencial se faz cada vez mais real e intolerável. Porque, tanto o Estado, quanto a Autoridade do Canal e os partidos políticos têm recursos inesgotáveis e uma maquinária de persuasão tão poderosa que a promessa do presidente de que haverá um debate livre e democrático parece uma brincadeira de mau gosto numa sociedade como a nossa, marcada pela iniquidade, a demagogia, a corrupção, o entreguismo aos Estados Unidos e aos seus clones políticos“, diz o coordenador do Serviço de Paz e Justiça, Julio Yao. Outros analistas panamenhos falam da autonomia exacerbada da Autoridade do Canal (ACP), que praticamente repete os tempos em que o canal não era do povo do Panamá. Também falam dos encontros amistosos entre a gente do governo e o embaixador dos Estados Unidos no país, o que pode dar indícios de que os EUA, que por quase cem anos foi o dono da região, volte a sê-lo, só que por outras vias, a da dominação financeira. Os camponeses panamenhos criticam a idéia e denunciam que a obra de ampliação do canal proposta pela ACP pode causar o alagamento de centenas de propriedades agrícolas, além de comprometer o abastecimento de água potável para todo o país. Segundo eles, a obra atingirá mais de 100 mil camponeses e não vai trazer grandes ingressos para a economia panamenha. Alegam que tudo não passa de mais uma armadilha para endividar o país, tornando-o ainda mais dependente do capital estrangeiro. Já o presidente Martin Torrijos, que apóia abertamente a idéia, acredita que esta ampliação se configuraria, finalmente, na “construção de um projeto de nação” para o Panamá, uma vez que atrairia mais recursos para o país que, então, cresceria. Conversa que segue a lógica do Estado subalterno. Seus críticos insistem em dizer que a obra monumental, certamente endividadora, não tem nada a ver com “projeto nacional”. Para o jornalista Abdiel Augusto Patiño, mais vale o governo trabalhar na melhoria da saúde, da educação e da moradia dos panamenhos - que estão cada dia mais críticas - do que ficar apoiando idéias megalomaníacas. A Autoridade do Canal insiste em dizer que com o terceiro jogo de eclusas a região iria absorver uma boa fatia das empresas que utilizam o canal de Suez. Mas, outros analistas rebatem dizendo que isso não vai acontecer e que apenas menos de 3% do fluxo do Suez poderia potencialmente passar pelo Panamá, o que configuraria um gasto muito grande para pouco retorno. Enfim, a questão está em debate no país e o povo vai ter seu direito de opinar na consulta popular que deve acontecer em novembro. Até lá, corações e mentes estarão em disputa. Um pouco de história O canal do Panamá é uma das mais gigantescas e sofisticadas obras da engenharia mundial. São 85 quilômetros de terra cortada - e um engenhoso sistema de eclusas - que permitem a ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico. As eclusas são uma espécie de elevador que sobe e desce os imensos navios num jogo mecânico de absoluta engenhosidade e beleza. O trabalho de construção inicou em janeiro de 1880, sob o comando do francês Ferdinand de Lesseps, o mesmo que fizera o canal de Suez, no Egito. A obra que era para ser feita em tempo recorde, acabou marcando um período de tragédia para as gentes do lugar. Ao contrário da região do Suez, que era de puro deserto, o espaço geográfico do novo canal era floresta tropical. Milhares de vidas dos trabalhadores – franceses e colombianos - foram ceifadas por doenças como malária e febre amarela e pelos desmoronamentos e chuvas torrenciais. O custo acabou tão alto que os franceses decidiram abandonar o projeto. O sonho da ligação ficaria adiado até o princípio do século XX. No ano de 1903, os Estados Unidos, já usando de sua velha política de intervenção, provocou uma revolta que acabou deslanchando na separação do Panamá, até então pertencente à Colômbia. Durante a guerra separatista, os navios estadunidenses estacionados na costa da região impediram qualquer ação por parte da Colômbia e em novembro já havia um novo país no mapa, completamente à mercê da ganância dos EUA. Naqueles dias, a condição para a independência era de que fosse permitidos aos Estados Unidos terminar a obra e ter o controle sobre o canal. Assim, em 23 de fevereiro de 1904, por apenas dez milhões de dólares, o recém formado governo panamenho entregou o canal para os EUA, dando ao país do Tio Sam o direito ao uso perpétuo daquelas terras. O tratado assinado garantia o domínio dos Estados Unidos sobre uma faixa de terra de 16 quilômetros de largura, incluindo uma ferrovia já construída com 77 quilômetros, as águas do lago Gatún e os terrenos ao redor. No total eram 1.676 quilômetros, contando com mais cinco quilômetros de mar adentro em cada oceano. Negócio lucrativo, mas não para o Panamá. Com o acordo e consolidada a “independência“ do Panamá, as obras foram retomadas e a inauguração do canal se deu 11 anos depois, em agosto de 1914. De lá para cá, aquele território foi espaço estadunidense e os panamenhos sequer tinham o direito de entrar na região abrangida pela obra. Com o tempo, a zona do canal passou a ser estadunidense até no modo de viver. As casas dos trabalhadores graduados do canal – que eram estadunidenses – foram construídas tal e qual aquelas casas que se vê nos filmes de Hollywood. Largos alpendres, belos jardins. Até a escola do lugar funcionava na lógica dos Estados Unidos e só para estadunidenses. Os panamenhos não podiam entrar. Cercada e bem guardada pelos militares, a zona do canal virou uma excrescência. Era um país dentro de outro. Por outro lado, ainda que fosse um país criado pela ganância dos Estados Unidos, com o tempo as gentes do lugar foram adquirindo um sentimento de “panamenhidade“, ou seja, criaram um espírito nacional e as lutas para retomar o território e o canal começaram. Foi dentro desse espírito que aconteceu o 9 de janeiro de 1964. Naqueles dias, apesar da sistemática subalternidade dos governantes, havia sido aprovada uma lei que dizia que a bandeira do Panamá também deveria ser hasteada junto a dos Estados Unidos na região do canal. Por isso os estudantes decidiram levar a bandeira para a escola estadunidense. E deu-se o que deu. Mas aquele episódio sangrento não diminuiu o desejo de ver o canal passar para a mãos dos panamenhos e muita luta se fez. Foi só em 1977, no governo militar de Omar Torrijos (pai do atual presidente) que os Estados Unidos acabaram assinando um tratado onde se comprometiam a devolver o canal no final de 1999. É que o então presidente, uma raposa política, deu um ultimato aos EUA: ou eles aceitavam o acordo ou os panamenhos iriam destruir o canal. Assim, acossados pela ameaça que sabiam possível o acordo foi fechado, ficando os Estados Unidos sujeitos a cederem uma porcentagem dos ganhos do canal com o Panamá até que a devolução fosse efetuada. Não era o ideal, mas o povo achou bom, afinal, dia viria que aquilo tudo passaria a ser do Panamá. As marcas da destruição De qualquer forma, as chagas provocadas pelos Estados Unidos não acabariam aí. No ano de 1989, os Estados Unidos invadem o país sob o pretexto de prender Manoel Noriega (então tornado ex-amigo, já que fora formado pela agência de espionagem estadunidense), acusado de ser um narcotraficante. Foi uma ação espetacular com mais de 26 mil soldados, na qual resutou destruído um dos bairros mais populosos de Ciudad Panamá, El Chorrillo, e mais de 500 pessoas foram mortas. Preso o ex- agente da CIA, Noriega, termina o período militar e inicia o que os Estados Unidos chamam de “período democrático’’. Ou seja, governo civil mas totalmente submisso aos seus interesses. Quem anda pelas ruas de El Chorrillo ainda pode ouvir velhas histórias daqueles dias de ocupação. Num dos bares da Avenida dos Poetas, uma mulher fala sobre a morte de um de seus filhos quando um tanque estadunidense assomou pela casa adentro. “Meu marido e os filhos tiveram que saltar de uma beirada para não serem esmagados. Um deles não conseguiu“, diz, com aquela expressão de quem tudo aguenta. As ruas do bairro tinham centenas de casas de madeira, que foram praticamente destruídas pelos tanques e armas. O lugar não foi escolhido à toa. El Chorrillo sempre foi um bairro engajado nas lutas populares, super-populoso, espaço da rebeldia. Anos depois do golpe, várias famílias seguiam lutando para ter as moradias reconstruídas. Agora, as casas são de material, mas as marcas da dor ainda estão visíveis. Sempre é possível encontrar alguém que teve algum morto durante a invasão. O bairro, que abriga mais de 2.400 famílias e fica bem perto do mar, é um lugar típico da Ciudad Panamá. Parece que toda a gente da cidade vai ali comprar pescado e, durante a noite, os jovens estacionam seus carros, com o som a toda altura, e ficam a beber ou a comer ceviche (pescado curado no limão, com cebola e pimenta). Por ali pode-se comprar de tudo e o espírito da rebeldia ainda paira. Não é raro, vez ou outra, observar-se uma correria pela rua. Ninguém se preocupa. “Es solo una pelea“, dizem os moradores, tranquilos no más. Nas casas, que muitas vezes funcionam como bar, é possível tomar uma balboa (marca de cerveja) bem gelada, ou então um bom copo de chicha, bebida típica do lugar. Os jovens de El Chorrillo parecem não ligar para a presença dos “gringos“, mas os novos movimentos sociais que começam a se fortalecer insistem em trabalhar com um sentimento nacional que, pouco a pouco, parece crescer. Dois países ou três? Para qualquer panamenho a idéia de que seu território parece dividido entre dois países já faz parte do cotidiano, afinal, os zoneiros estadunidenses sempre foram estrangeiros vivendo num espaço à parte. O que poucos conseguem perceber é que na verdade existem três países num só. Um é o espaço dos Estados Unidos, que apesar de devolvido ao Panamá, ainda conserva sua mística. Outro é o do Panamá moderno, neoliberal, muito visível na capital do país com seus prédios enormes, parecendo uma Miami tropical. Os hotéis de luxo, as sedes dos bancos mais importantes do mundo, as mansões. O terceiro Panamá é o das gentes do povo, dos bairros pobres da beira do mar, com seus cortiços, sua pobreza, sua luta diária para sobreviver. O clima na capital deste Panamá popular é sempre muito abafado, de uma umidade pegajosa que parece grudar no corpo. Pelas ruas circulam os lotados e coloridos ônibus urbanos, cheios de luzes e enfeites, sempre tocando a típica cumbia em alto som. Contam os panamenhos que o primeiro a começar com essa magia de pintar os coletivos urbanos foi “el maestro“, Andre Salazar, um negro apaixonado pela beleza das cores que entendia que era preciso “despertar a alma do ônibus“. Desde então, todos pintam seus ônibus com os desenhos mais belos, na exuberância das cores do Caribe. As pessoas deste terceiro Panamá em geral são sorridentes e dançantes. É simplesmente impossível andar pela Rua do Comércio sem balançar o corpo ao som da música que se derrama por todo o trajeto. Nas barraquinhas do comércio ambulante é igual. Ruben Blades é o rei, e a cumbia, o mambo e o regaton perseguem o caminhante por onde ele for. Esse Panamá, ainda que pobre, parece estar sempre em festa. Na Universidade – considerada quase como um espaço sagrado pelas gentes - pode-se perceber todo um sentimento de luta e resistência. Nas paredes abundam os murais que são a memória viva das batalhas travadas pelo povo do Panamá. A clássica cena dos garotos fincando a bandeira na cerca dos zoneiros no 9 de janeiro, e enormes desenhos de praticamente todos os mártires da América Latina. José Martí, Dom Oscar Romero, Che Guevara, Farabundo Marti, Sandino e outros tantos. Palavras de ordem universais gritam das paredes: “por uma universidade democrática e popular“, “contra as taxas de matrícula“ e outras do gênero. Os povos originários também tecem suas milenares dores nas ruas e nos empobrecidos pontos de venda de artesanato. As mulheres da etnia Kuna, belíssimas nas suas roupas coloridas, não gostam de ser fotografadas. Elas vendem objetos típicos da sua cultura, feitos de bambu ou pano, ambos com desenhos étnicos de uma beleza sem igual. E agora? O que virá? São estes três Panamás que, neste momento, estão em debate, visto que o governo apoia a ampliação do canal e deve promover uma consulta popular mais para o final do ano. Para o Panamá dos estadunidenses, a idéia é ótima, pois é lá na central do capital que a ACP vai buscar o dinheiro para financiar a obra que deve consumir – nos oito anos que durarem a construção - o equivalente a 100% do PIB do país. Além disso, a ampliação serve aos interesses bélicos dos Estados Unidos, cada dia mais presentes na vida da América Latina e tendo como “inimigo“ próximo, o presidente Hugo Chávez, da Venezuela. Para o Panamá moderno, dos empresários e dos neoliberais, pouco se lhe dá se a obra vai endividar o país, se vai causar problemas ambientais ou desalojar camponeses. O que importa são os “bussiness“, o lucro privado que isso tudo vai trazer. Já para o Panamá das gentes empobrecidas, esta é uma decisão que pode implicar em mais pobreza, mais violência, mais favelização da vida. Além disso, paira o perigo sobre os mananciais de água. Os ricos tomam a água engarrafada que pode vir de qualquer lugar. Mas, e a gente do povo? Quem lhes valerá? A batalha já está em curso e as mentes estão em disputa. A esperança de quem luta contra a ampliação do canal é de que o povo do Panamá possa trazer de volta a sua velha engenhosidade, a mesma que foi capaz de enganar o mais temido pirata de todos os mares, o inglês Henry Morgan. Conta-se que em 1670, quando Morgan invadiu, saqueou e destruiu praticamente toda a Panamá Vieja, o altar de ouro – uma das maiores riquezas da cidade naquele então – da igreja de São José ficou intacto. Isto porque o povo do lugar, ao ver assomar o pirata, pintou o altar como se de madeira fosse. Morgan não percebeu o truque e o altar escapou do saque. Agora ali está o ouro do Panamá – o canal - aberto a mesma velha rapinagem dos mesmos velhos piratas. Pintará o povo, o canal? Nas entranhas no Panamá profundo, as gentes conspiram. Algum trunfo haverão de ter. Se sobreviveram a Morgan, saberão lidar com os novos saqueadores. Disso é testemunha a histórica luta das gentes daquele lugar. - Elaine Tavares – jornalista no OLA. O OLA é um projeto de observação e análise das lutas populares na América Latina http://www.ola.cse.ufsc.br
https://www.alainet.org/es/node/115579
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