Uma moça, um homem, o poder e a morte
08/05/2006
- Opinión
Sandra tinha juventude, beleza e alegria. Cabelos longos e morenos brincavam, ora soltos, ora presos em rabo de cavalo, ao redor do rosto sorridente, emoldurando um sorriso branco e olhos pretos e brejeiros. Fazia seu trabalho de jornalista sem perder o jeito alegre e brincalhão. Na redação muitos gostavam dela e apreciavam seu jeito maroto de ser e de se comportar. Pimenta Neves não era jovem, nem belo, nem alegre. Era inteligente e subira na carreira. Tinha poder e influência. Era respeitado na redação, embora às vezes fosse mais temido por seu jeito frio, distante e arrogante. Era autoritário e usava de todo e qualquer meio para controlar o que saía no jornal que coordenava. Tanto que um dia enviou um presente a Sandra a fim de que ela não publicasse uma matéria que escrevera. Foi esse o começo de um romance que terminou em tragédia. A relação chefe-subordinada misturou-se com o desejo obsessivo e doentio de um homem mais velho por uma jovem mulher. Como toda jovem, despreocupada e segura de si, Sandra se achava imortal. Não percebeu que o amor do chefe era na verdade exacerbação do poder e do domínio que conseguia exercer sobre ela. Ao perceber, começou a sentir-se sufocada. O amor que sentia transformou-se em tédio. E em meio ao tédio, Sandra conheceu e encontrou outra pessoa Terminou o relacionamento, confessando ao antigo namorado a nova paixão. E ao fazer isso, foi levando o jornalista mais velho e maduro ao desatino feito de desejo frustrado e ciúmes enlouquecidos. Achou que seria simples assim terminar e dizer adeus. Não sabia em que vulcão havia mexido. Pimenta sentiu-se humilhado pela rejeição de Sandra. Humilhado como macho abandonado pela fêmea que acredita dever dominar por ser ela o sexo frágil e inferior. Humilhado como profissional, ao sentir-se largado pela subordinada. Antevia os momentos amargos que passaria quando toda a redação soubesse que Sandra o havia deixado. A mesma possessividade que sufocava Sandra e a fazia impaciente por respirar ares mais livres abrumava a cabeça e o coração de Pimenta, que do fundo de seu orgulho mortalmente ferido começava a planejar e executar vinganças contra aquela que tanto o ferira. O processo desembocou na demissão de Sandra e continuou na difamação que de sua pessoa fazia o ex-chefe e namorado, impedindo-a de encontrar outro emprego. Ao ver que não conseguia amedrontá-la e convencê-la a voltar, Pimenta passou a usar palavras violentas e gestos mais ainda. Testemunhas próximas, entre elas o pai da moça, afirmam que ele a agrediu fisicamente no desespero de trazê-la de volta à força. Quando os sentimentos feridos encontram-se em proximidade com uma arma de fogo, tudo pode acontecer. E aconteceu. Pimenta andava armado e não tinha reparos em usar a arma que portava. Seguiu Sandra até o haras onde ela ia montar a cavalo, em Ibiúna, em dia frio. Chegou em seu carro e viu-a. Cabelos negros, corpo jovem, cheia de vida. Saltou do carro. O primeiro tiro foi pelas costas. O segundo, Sandra já caída ao chão, foi dado na cabeça, para selar o crime. Depois disso, Pimenta entregou-se à polícia e assumiu a autoria do crime. Mas, surpreendentemente, poucos meses depois foi solto e aguardou julgamento em liberdade. Hoje finalmente transcorre seu julgamento. O país todo pode ver o sofrimento do pai de Sandra, homem humilde e honrado, esperando que a justiça se faça. Todo o desenrolar do caso nos leva a refletir sobre alguns pontos importantes. Por um lado, como é importante que o amor entre um homem e uma mulher seja feito de respeito e carinho, e não só de paixão cega e obsessiva. Se assim é, como no caso foi, facilmente o amor se transforma em ódio e o romance em tragédia. Ao mesmo tempo, como é vil e abjeto o uso do poder para ameaçar outro ser humano e forçá-lo a aceitar coações ilegítimas e agressivas. Pimenta era não somente o amante de Sandra, mas seu patrão. Quando percebeu não conseguir mantê-la a seu lado em relação gratuita, buscou coagi-la pelo poder usado abusivamente. Por outro lado, não conseguimos deixar de pensar e constatar que muito provavelmente, se Pimenta não possuísse uma arma, Sandra provavelmente estaria viva. Seu sorriso continuaria alegrando seus pais e amigos. E Pimenta, uma vez passado pelo crivo do sofrimento, seria um homem livre. Como é lamentável que o Brasil tenha perdido a oportunidade histórica de banir o comércio das armas de fogo! Quem sabe se não é o momento de tentar outra vez? - Maria Clara Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "Deus amor: graça que habita em nós² (Editora Paulinas), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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