Bruna e várias outras
21/02/2006
- Opinión
Recente reportagem de uma das revistas mais lidas do país explorou em maiores detalhes o que a televisão já tinha anunciado há não muito tempo. Nas grandes cidades, muitas meninas de classe média, que tiveram uma vida abastada e boa instrução, procuram a prostituição como meio de vida. A matéria traz o depoimento de Bruna Surfistinha, codinome da menina que botou o próprio caso na rua e no espaço público. Ao lado dela depõem várias outras, nenhuma acima dos 25 anos. A maioria mora com os pais, que ora não sabem ora toleram sua escolha profissional. Motivo da decisão e da escolha? Dinheiro e não mais. O trabalho honesto, diuturno e cotidiano jamais foi fonte de renda fácil e rápida. Há que labutar toda uma vida, de sol a sol, para aposentar-se já em idade avançada com algum dinheiro guardado para uma velhice decente. As meninas da reportagem não se conformam com esse ritmo nem com esse estado de coisas. Descobriram no "atendimento" a executivos de alto bordo e no "trabalho" em prostíbulos de luxo uma fonte muito mais rápida e fácil de chegar aos objetos de consumo sonhados e desejados. É assim que muitas delas hoje têm carro, computador, celular da moda, além de roupas de griffe, perfumes caros e mesmo casa própria. Ganham em um só programa de uma hora o que levavam às vezes mais de um mês para obter, em um suado e obscuro trabalho. Agora o dinheiro lhes corre nas mãos abundantemente. Enquanto houver juventude e beleza, haverá programas. E homens entediados, que pagam caro pelo prazer de aluguel porque não conseguem criá-lo gratuita e amorosamente em seus lares e alcovas. Longe de mim querer aqui julgar Bruna e suas colegas. Quem sou eu para penetrar no íntimo de seus jovens corações e saber que dramas e que dores por ali passaram para que optassem por esse caminho? Quem sou eu para avaliar as lacunas e carências de afeto, de sentido para a vida que atormentam suas noites insones e seus dias tranqüilizados por drogas e academias incessantes? Quem sou eu para imaginar o tremendo vazio de horizonte e de transcendência que faz com que seu cotidiano só se explique pelo imediato: o prazer imediato, o lucro imediato, o poder aquisitivo imediato? Pesa-me, no entanto, no coração ler os depoimentos dessas jovens ao falar sobre suas vidas. Pesa-me verificar o que a sociedade neoliberal fez com elas e sua vocação de seres humanos. Pesa-me constatar que o único valor que as move é o dinheiro e por ele vendem o que têm de mais precioso na vida: seu corpo, sua pessoa, sua dignidade. Pesa-me ver que algumas declaram ter ficado com nojo de homem e, portanto, admitem terem se colocado para sempre fora do alcance do amor, seus êxtases e seus encantos. Pesa-me ver que o pão de cada dia destas meninas é contemplar a morbidez das infidelidades masculinas, que diante delas, no motel, telefonam para as esposas com sórdidas mentiras antes de usá-las em mais uma rodada de cama sem enlevo e sem compromisso outro que o pagamento que virá depois. Algumas ainda têm sonhos: casar com um jogador de futebol, mirando o dinheiro que desfrutarão com o parceiro. Ou escrever um livro e fazer o mesmo sucesso editorial que Bruna surfistinha, virando bestseller de uma cultura que consome de tudo, sobretudo o que não faz pensar nem exige altura de espírito. Outras desejam sair daquela vida. Têm vergonha de andar na rua e se sentem apontadas com o dedo pelos que passam, embora nada em sua aparência denuncie a clássica prostituta, de meia arrastão, roupa barata e curta, seios de fora e poucos dentes na boca. O selo que levam na testa, no entanto, lhes pesa da mesma maneira. Sentem-se marginalizadas, malditas, envergonhadas. Triste cultura a nossa em que o ser humano foi reduzido a um mero sujeito consumidor de bens inúteis e supérfluos. E que para adquiri-los faz qualquer coisa: transportar droga, aviãozinho ou mula, marcado para morrer preso nas malhas do tráfico, ou vender o próprio jovem corpo, feito para o amor e a maternidade, no anonimato de relações estéreis e destrutivas. Resta esperar que Bruna e suas amigas um dia encontrem em seu caminho alguém que as trate como pessoas e lhes mostre o quanto valem, como são preciosas suas vidas e seus corpos, e como vale a pena investir seu tempo e seu potencial no amor cultivado e dedicado e no trabalho honesto e na criatividade de cada dia, que pode demorar, mas fará toda a diferença. - Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/es/node/114393
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