A revolta dos imigrantes na França

14/11/2005
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A mídia burguesa, com seu ranço aristocrático, tem feito de tudo para estigmatizar a revolta da juventude imigrante na França. Seguindo o script do reacionário ministro do Interior Nicolás Sarkozy, que taxou os jovens rebeldes de “escória e gentalha”, ela exagera nos adjetivos contra os “baderneiros e incendiários”, em reportagens que só tocam na superfície, sem analisar as reais causas desta impressionante rebelião. Se fosse à essência, a mídia teria que condenar o capitalismo, esse sistema destrutivo que saqueia as nações da periferia, forçando a fuga de seus filhos, e, ao mesmo tempo, explora e discrimina os que conseguem ingressar no “primeiro mundo”. Ela teria que concluir que o capitalismo conduz a humanidade à barbárie! A “intifada dos subúrbios”, como estão sendo chamados os distúrbios nos bairros pobres das periferias de Paris, evidencia que o mundo está sob irrupção. Ela teve início em 27 de outubro, num cite – um conjunto de precários edifícios do Estado, similar ao Cohab brasileira – próximo à capital. Dois jovens de origem africana morreram carbonizados num transformador de energia ao tentarem fugir do cerco da polícia; um terceiro ficou gravemente queimado. Eles estavam jogando futebol e não roubando, conforme a primeira versão oficial, e correram porque não tinham os documentos da imigração. A brutalidade e a falsidade da polícia geraram os primeiros coquetéis molotovs e pedras contra 148 veículos e vários prédios públicos. No dia seguinte, algumas organizações, principalmente mulçumanas, ainda tentaram acalmar os jovens, a maioria entre 12 e 17 anos. Mas o ministro Sarkozy, filho de um refugiado húngaro anticomunista, optou por acirrar os ânimos – até por razões eleitorais, já que postula no interior do partido de Jacques Chirac a candidatura para as eleições presidenciais de 2007 e tenta se apropriar dos votos dados ao neofascista Len Pen no último pleito. Além das suas declarações favoráveis à “tolerância zero”, ele reforçou os rafles, as batidas policiais contra populares na qual são comuns os insultos e a violenta repressão. Na noite de 30 de outubro, a policia chegou a lançar bombas de gás numa mesquita em plena cerimônia. Diante da penúria reinante nestes “guetos” e das provocações racistas, a rebelião se alastrou como rastilho de pólvora, atingindo o centro de Paris e se estendendo para várias cidades, como Marselha, Nice, Lyon e Estrasburgo. Confirmando os temores de outros países que têm grande quantidade de estrangeiros, agora a revolta atinge a Bélgica e Alemanha. O fogo foi ateado na Europa da precarização e da discriminação dos imigrantes. Como já havia antevisto o ex-presidente François Miterrand, ainda em 1990, “o que se pode esperar de um jovem que nasce num bairro sem alma, que vive num imóvel sujo, rodeado de indignidade, numa sociedade que somente intervem em sua vida cinzenta quando tem de proibir e castigar?” [1]. Por enquanto, a resposta da burguesia tem sido a pura repressão. O governo francês inclusive autorizou o estado de emergência, com base numa lei de 1955, elaborada para coibir a guerra de libertação na Argélia. Esta nunca havia sido aplicada na metrópole, nem durante o levante estudantil-operário de Maio de 1968. Além do toque de recolher, esta lei permite “proibir a circulação de pessoas”, criar “zonas de segurança”, expulsar “qualquer pessoa que procure entravar a ação dos poderes públicos”, controlar “a imprensa e as publicações de toda natureza” e submeter as pessoas à prisão domiciliar. A não ser que impere a “paz dos cemitérios”, a brutalidade poderá reduzir os distúrbios, mas não resolverá o drama social dos imigrantes. Drama das migrações O êxodo de milhões de miseráveis do “terceiro mundo” em busca de trabalho digno e uma vida melhor no “primeiro mundo” está se tornando um pesadelo para o sistema capitalista. Ex-colônias da África, Ásia e América, saqueadas durante séculos pelas metrópoles, tornaram-se infernos do desemprego e da exclusão. A fúria neoliberal, deflagrada nos anos 80, agravou ainda mais este cenário, estagnando as economias das nações periféricas em função da dívida externa e da desidratação de seus Estados. Já os países do extinto bloco soviético assistiram a regressão imposta pela restauração capitalista. Esse quadro alterou o fluxo da migração. No passado, ele se dava das nações desenvolvidas para os países periféricos. Hoje, é o inverso! Os miseráveis da periferia migram para o coração do capitalismo... e a revolta também! O caso europeu é sintomático. “Em 1950, a Europa Ocidental abrigava 3,8 milhões de estrangeiros. Hoje, esse número é de 20,5 milhões e está crescendo” [2]. Fugindo do desemprego e da miséria, os africanos preferem testar sua sorte na França, Espanha e Portugal; os albaneses, na Itália; os turcos, na Alemanha; os paquistaneses, na Grã Bretanha. Segundo estudo da Organização Internacional para Migrações (IOM), cerca de 175 milhões de pessoas, quase 3% da população mundial (o equivalente a um Brasil), deslocaram-se de seus países na década passada na esperança de encontrar um “paraíso capitalista”. Triste destino, enorme desilusão! E essa estatística não inclui o penoso êxodo dos clandestinos. Estima-se que a migração ilegal, repleta de perigos e mortes, corresponda a mais de 1/3 dos ingressos nos países industrializados. Em média, o fluxo anual de migrantes irregulares para União Européia envolve cerca de 500 mil pessoas, nove vezes mais do que há dez anos atrás. E estes desesperados ainda são vítimas do tráfico e o contrabando, que movimenta mais de US$ 10 bilhões anuais. Apenas no Estreito de Gibraltar, nos 14 quilômetros que separam a África da Espanha, morreram 3.286 pessoas entre 1997 e 2001, segundo denúncia da Associação de Famílias e Amigos de Vítimas da Imigração Clandestina [3]. Outros 18 mil foram detidos no mesmo período e local. A explosiva situação da França é um reflexo desse êxodo. Segundo Emmanuel Peignard, até os anos 50, o país se desenvolveu explorando trabalhadores italianos, portugueses e espanhóis. Na seqüência, cresceu o número dos imigrantes procedentes África, em especial das ex-colônias saqueadas no norte do continente – Argélia, Marrocos e Tunísia [4]. “É bom recordar que os estados da atual Europa civilizada e moderna foram, nos séculos passados, verdugos coloniais implacáveis na África, Ásia, Oriente Médio e América, onde escreveram uma história de rapina, saque, destruição e escravidão. No caso da França, seu domínio na África deixou atrás de si circunstâncias nacionais miseráveis e de escassa viabilidade socioeconômica, o que originou, por sua vez, o fluxo migratório destas ex-colônias até a antiga metrópole” [5]. Inferno capitalista O mais triste nesta história é que a fuga dos países periféricos não resulta numa vida melhor. A esperança do imigrante de encontrar um “paraíso capitalista” fica cada vez mais distante. A ofensiva neoliberal hoje devasta Welfare State na Europa, num intenso processo de precarização do trabalho e redução da proteção do Estado. Todos os trabalhadores sofrem nesta fase destrutiva do capital, porém as maiores vítimas são os imigrantes. Quando não vegetam no desemprego e na informalidade, eles padecem nos trabalhos mais penosos, perigosos e insalubres, com base em contratos temporários e precários. Além disso, ainda sofrem com a segregação, num continente que bate recordes de desemprego e estimula o racismo na sociedade. Na verdade, quem ganha com este êxodo são as corporações capitalistas. Através da brutal exploração dos estrangeiros, elas auferem altos lucros. Nos EUA, por exemplo, o trabalho dos 16,7 milhões de imigrantes gera uma renda de aproximadamente US$ 450 bilhões, o equivalente ao terceiro PIB das Américas [6]. O trabalhador estrangeiro, mesmo legalizado, fica com os piores salários; na clandestinidade, ele é obrigado a trabalhar longas jornadas, sem direito a férias, descanso semanal ou qualquer proteção estatal. Só mais recentemente, os imigrantes têm conseguido se organizar nos sindicatos para defender seus direitos, como revela a experiência grevista de um grupo de mulheres da rede hoteleira Accor [7]. A “intifada dos subúrbios” apenas explicita o grau de revolta dos imigrantes da França. Segundo dados do próprio governo, a taxa de desemprego nas cites é de 21%, o dobro da média nacional; entre as mulheres, ele sobe para 38%; entre os africanos com ensino superior, é de 26,5%, enquanto para os franceses com a mesma formação é de 5%. “A imensa maioria destes jovens está desempregada e sem a menor esperança de arrumar trabalho. Levar um nome ou sobrenome de origem africana, ter a pele mais escura, residir em alguma cite ou ter estudado numa escola desta zona torna praticamente impossível conseguir emprego. A única perspectiva é a miséria, um trabalho precário e mal pago... ou a delinqüência” [8]. Como efeito do desemprego, da precarização e dos aviltantes salários, os bairros da periferia lembram os bolsões de miséria do “terceiro mundo”, com seus cortiços de concreto e a precária estrutura de serviços públicos. Para piorar, os imigrantes são vítimas do racismo, dos abusos policiais e da ausência de espaços na sociedade. Num país que se orgulha da sua seleção de futebol campeã mundial, que tem sete jogadores de origem africana, entre eles o craque argelino Zinedine Zidane, não há um só descendente africano na Assembléia Nacional, no Senado, nem entre os apresentadores de TV. A morte dos jovens Bouna Traore e Zyed Benna, em 27 de outubro, revelou toda essa discriminação e apenas acendeu o pavio da revolta. NOTAS 1- Lisandro Otero. “El precio del colonialismo”. Rebelión, 08/11/05. 2- “A humanidade em movimento”. Jornal Valor Econômico, 16/08/03. 3- Giovanna Modé. “Uma caça aos ilegais”. Portal Porto Alegre, 07/09/02. 4- Emmanuel Peignard. “A imigração na França”, julho de 2001. 5- “Francia: raíces de la violencia”. Editorial do jornal La Jornada, 08/11/05. 6- Luiz Bassegio. “Travessias na desordem global”. Adital, 21/05/04. 7- Iracema Nascimento. “Direitos dos imigrantes ainda são violados na Europa”. Carta Maior, 16/10/04. 8- Flor Beltrán. “Los adolescentes excluidos hacen arder Francia”. Socialismo o Barbarie, 08/11/05. - Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, junho de 2005).
https://www.alainet.org/es/node/113490
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