O assassinato de uma cidade
- Opinión
Do alto dos seus 1 metro e 61 centímetros de altura, bem harmonizados em 62 quilos e 69 anos, o historiador e arquiteto José Luiz da Mota Menezes não impressiona a vista inculta. Por força do seu olhar, olhamos sempre para a sua cabeça, para os fios brancos da barba e das têmporas, e ainda assim nada vemos da fama do homem que descalço nos recebe em sua casa. Ele é reconhecido internacionalmente pelos trabalhos de restauração que tem feito, pela ressurreição de monumentos da época do domínio holandês, e para sorte da cultura judaica e sobrevivência material do mestre, é autor da recuperação da primeira sinagoga das Américas, no bairro do Velho Recife.
- A nossa entrevista será sobre o quê? pergunta.
- Sobre a ampliação da Avenida Dantas Barreto, professor, respondo E continuo: depois, sobre a decadência do centro do Recife, depois ....
Com um gesto, ele encerra a série de depois, porque deve saber, por experiência, que dos muitos depois pouco sai na imprensa, depois.
- Veja logo se o gravador está funcionando, me diz.
Eu presto atenção no que os entrevistados falam, professor, se o gravador falhar, com esforço e paciência, poderei reconstruir, tenho vontade de lhe dizer, mas isto já seria um depois, e por isso em silêncio fico a ligar e a desligar o gravador, até o momento em que, acho que ele não percebeu, acerto a estranha posição em que a fita nova se encaixa e gira. Respiro o alívio: o entrevistador consegue demonstrar que põe um gravador para funcionar com sucesso.
A primeira vez em que vi este senhor que se põe a discorrer à minha frente, foi na Igreja da Conceição dos Militares, numa palestra em que ele relacionava as imagens de Nossa Senhora no teto, nas paredes e nos nichos da igreja à própria evolução da imagem da mãe de Deus na história. Isto nunca me havia ocorrido. Eu julgava, como boa parte dos ignorantes à minha imagem e semelhança, que a imagem da Virgem Maria era uma só, havia mais de 500 anos. Lembro que o meu deslumbramento era freqüentemente interrompido pela Secretária da Prefeitura, que recomendava ao professor que fosse breve, porque a sua fala deveria ser apenas uma das falas de um evento histórico-turístico-publicitário da Prefeitura do Recife. A Secretária chegava a lhe puxar a manga da camisa, ao que o mestre respondia com as mais polidas palavras do
- Tenha calma, tenha calma!
A Secretária não teve, para melhor sucesso do evento. Interrompido assim antes do fim, quando a multidão se dirigia para o próximo ponto onde outros arquitetos falariam em português de substantivos sem verbos, lembro que me dirigi ao professor e lhe disse que a Prefeitura do Recife cometia um erro em chamá-lo para uma pequena exposição. Ele me olhou firme, e me encarou, lembro. Ao que eu lhe disse, “não se chama um sábio para um evento de turistas”.
Este homem que agora fala à minha frente, relembra um crime que a exatidão aritmética, física, deveria chamar de destruição de parte de um bairro do Recife. A exatidão histórica, não. Isto porque o mestre José Luiz da Mota Menezes se refere à destruição do bairro de São José, um bairro do centro da cidade, um mais-que-bairro, uma identidade do Recife. E conta com palavras de quem viveu, sem consulta a registros nos jornais, como se deu este crime. Até porque o assassinato se fez no mais brutal ano da ditadura Médici, em 1973. Os registros fiéis dos jornais não há, e aqui a falta significa medo, e repressão. Ao ouvir agora o que este homem conta, dou graças aos deuses a fita do gravador girar sem a minha interferência. Eu não saberia interferir, eu não saberia dizer-me, agora, enquanto ouço e escuto o seu relato objetivo, “tenha calma, tenha calma”.
Vocês irão ver, o arquiteto e historiador narra um assassinato. Que para ser fiel ao fato, deveria ser chamado de O Assassinato de um Bairro. Deveria, mas à última hora preferi o que vai no título acima. Espero que compreendam. Para denunciar um crime todo exagero é ponderação.
“- A intervenção do prefeito Augusto Lucena se dá no seu segundo mandato.
- Lucena representava para os militares uma pessoa importantíssima, porque tinha popularidade.... e Lucena então resolve retomar aquilo que ele iria fazer e que não fez. Talvez por um capricho pessoal, talvez porque havia necessidade de uma grande avenida para desfiles militares, porque ela daria nas proximidades do Forte de Cinco Pontas, talvez porque houvesse interesse de Incorporadoras (empresas imobiliárias), etc., a verdade é que a Avenida Dantas Barreto é retomada. E naquela oportunidade os arquitetos de planejamento da Prefeitura pediram uma reunião na “Sementeira”... essa reunião foi realizada, e verificou-se que a Avenida Nossa Senhora do Carmo supria completamente a demanda do trânsito para Boa Viagem, e como tal, a avenida Dantas Barreto poderia ser deixada de lado. Por outro lado, além do mais, nesse intervalo, tinha vindo aqui ao Recife um especialista em arquitetura barroca e visto que a Igreja de Bom Jesus dos Martírios era uma igreja importante, porque era uma igreja de pardos e pretos do final do século XVIII, e portanto deveria ser preservada. Então nessa altura argumentou-se com isto com o senhor prefeito Augusto Lucena, e o Secretário de Planejamento dele, Luiz Coimbra, declarou que uma vez que a Igreja de Bom Jesus dos Martírios fosse tombada, fosse considerada Patrimônio Nacional, federal, então não teria por que abrir, ampliar a avenida Dantas Barreto, porque iríamos destruir um patrimônio federal. E assim foi feito. O IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - fez um processo e foi feito então o tombamento da Igreja dos Martírios.
Mas Lucena não abriu mão da idéia de fazer a Dantas Barreto dele, uma vez que ele foi o homem da obra da Avenida Recife, um indivíduo dado a grandes obras... ele queria marcar a sua administração com uma obra que projetada em 1914 deveria ser feita, ignorando naquela altura que ela já era contornável, já não era mais necessária. Foi então que eu declarei num documento para a Academia de Letras, para os intelectuais, que iria se fazer uma obra que era absurda, porque era “uma avenida do nada para o nada”. Eu gravei e entreguei à Academia de Letras, entreguei aos intelectuais essa minha declaração e que ficou na história. Lucena insistiu, e então iniciou a derrubada de todos os imóveis, na primeira etapa, até chegar na Igreja. Quando ele chegou na Igreja, a igreja era tombada. Então ele iniciou um processo que caracterizasse o destombamento. Para esse fim, ele (e há uma documentação arquivada no Ministério da Cultura), ele mandou que um indivíduo chamado Ubirajara, que era o demolidor oficial da Prefeitura do Recife, amarrasse um cabo de aço na torre da Igreja, para derrubar a torre e descaracterizar dessa forma o edifício. Wilson, fotógrafo, (aquele, do “Quiosque de Wilson”, na Rua Nova) nessa altura se achava presente, documentou o prefeito Lucena, em pessoa, auxiliado por seu secretário Ubirajara, amarrando o cabo de aço na torre da Igreja e puxando, e a torre caindo. Justo no dia em que vinha um representante do IPHAN para identificar a Igreja como importante.
Por outro lado, se apresentou ao Prefeito Lucena a idéia de que a avenida poderia ser desviada pela parte de trás da igreja, porque a igreja era muito estreita, muito pequenininha, então ela ficava dentro de uma ilha (como a Igreja de Nossa Senhora da Candelária no Rio de Janeiro), sem prejuízo nenhum para o tráfego, e se manteria a Igreja e o casario que identificava o que restou do Pátio, do bairro de São José. Ele não aceitou a idéia, continuou a batalha, e conseguiu do ministro, o ministro militar, o Ministro da Educação e Cultura Jarbas Passarinho, o destombamento, contrariando intelectuais, como Ariano Suassuna, o Conselho de Cultura, enfim, ele conseguiu o destombamento da Igreja. E então demoliu.
- Em que ano foi isso, professor?
- Em 1973. Na segunda gestão de Lucena.... Então, nessa altura dos acontecimentos, o então Ministro da Educação e Cultura Jarbas Passarinho declarou o destombamento, mas disse que obrigaria a Prefeitura a refazer o frontão da Igreja virado ao contrário para a avenida... o que seria uma solução, vamos dizer, mediadora, mas uma solução um tanto ou quanto estranha, porque se iria construir uma fachada de uma Igreja que nunca existiu, só para lembrar que uma igreja existiu. Para lembrar que uma igreja existiu, bastaria uma fotografia. Mas nem isto, esse paliativo, esse absurdo do frontão virado, foi feito.
Wilson Carneiro da Cunha / Arquivo Fundaj
Igreja dos Martírios
E a Dantas Barreto foi consolidada, gerando-se com isto, e aí é que vem um processo complicadíssimo, gerando um esvaziamento do bairro de São José, porque as famílias, foram mais de 200 desapropriações, as famílias foram deslocadas com uma indenização miserável, muitos eram inquilinos, a demolição foi feita a toque de caixa...
- Houve destruição de ruas?
- Total. Muitas ruas....
- O senhor lembra de ruas destruídas?
- Destruiu-se a Rua Augusta, a Dias Cardoso... destruíram-se todas as transversais que havia na Avenida, tenho mapeamento disso completo, com os números das casas que foram demolidas, e um casario magnífico, além da Igreja, um casario magnífico dos mais antigos do Recife, no bairro de São José. Ele destruiu quadras inteiras. Destruiu ruas inteiras, casario inteiro. Completo. Foi o desmantelamento do bairro de São José, porque o que ficou estava muito pouco vinculado a moradias efetivas, e já havia muita área com rendez-vous, na Rua do Rangel, casas de comércio, então perdeu-se o caráter residencial. Veja bem, quando você tem uma área da cidade, a segurança dessa área não é fruto apenas de policial, é fruto de residências. A manutenção do processo habitacional é uma forma de garantir que a segurança do lugar se mantenha, porque o circular permanente de veículos e o circular permanente de pessoas garantem que o ladrão não tenha ação facilitada. Hoje, nós temos a avenida Dantas Barreto, que a partir de determinada hora da noite está abandonada, temos então as ruas paralelas, com vários depósitos de casas de comércio, onde não há quase movimento nenhum, e as poucas residências que sobraram vivem uma insegurança muito grande.
- Professor, não houve, além dessa nota, desse documento que o senhor entregou à Academia de Letras, onde se dizia que a avenida Dantas Barreto fazia o transporte do nada para o nada, não houve um protesto da intelectualidade contra esse crime?
- Nenhum. A única pessoa que tomou a frente da defesa foi o jornalista Leonardo Dantas. E por essa causa ele foi demitido do jornal. Foi o único jornalista, que eu lembre, que tomou partido contrário ao prefeito Lucena, e foi demitido sumariamente. Por outro lado, os jornais calaram. Não só o Diário de Pernambuco, como também o Jornal do Comércio. Ao contrário, eles fizeram um marketing negativo, eles disseram que o que Lucena estava fazendo era a destruição de pardieiros. O que era uma mentira deslavada. Não era verdade. Não havia pardieiros, havia casas residenciais, com gente morando há mais de quarenta, cinqüenta, sessenta anos...
- E a destruição da torre da Igreja, ninguém disse nada?
- Ninguém mencionou, não saiu em jornal algum. E não foi só essa ação não. O doutor Ubirajara, doutor, não, o senhor Ubirajara, com um bulldozer, enfiou as traves na lateral da Igreja, e ia empurrando o bulldozer para cortar a Igreja com uma serra pelo meio. A violência era de tal ordem, que antes disso, um juiz, magnífico, que infelizmente suicidou-se tempos depois, o Dr. Benjamin, se não me engano, Doutor Emerson Benjamin, foi a favor nosso, pedindo na medida em que ele pôde, como Juiz Federal, uma ação contra o Prefeito Lucena. Mas não teve bases legais, porque a Igreja estava destombada, em documento do Ministro militar Jarbas Passarinho”.
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