Raízes éticas da minha esperança
11/09/2005
- Opinión
Amigos perguntam como me sinto. Aliviado, angustiado, esperançado. Deixei o
governo federal antes dos escândalos do mensalão, cético quanto aos rumos da
política econômica. E sem a menor desconfiança de que havia tanta safadeza nas
operações financeiras do PT. O governador Jorge Viana, do Acre, tem toda razão
ao cobrar da nova direção do partido apuração urgente e punição dos culpados.
O alívio não me exime da responsabilidade histórica que me vincula ao PT,
embora sem filiação partidária. Minha angústia só não é mais profunda porque
conheço a trajetória da esquerda. Foi um choque Kruschev denunciar os crimes
de Stalin, em 1956, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética.
Houve suicídios de dirigentes, como relata Jorge Semprún em sua autobiografia.
Não podiam supor que a nova sociedade tivesse sido erguida sobre a dor de
tantos expurgos, massacres, prisões, torturas e fuzilamentos.
Nem por isso perdi a fé num outro mundo possível, no qual liberdade
individual e justiça social se complementem, e a cidadania e a democracia
sejam levadas à radicalidade o que chamo de socialismo.
Experimentei muitas derrotas: a morte de Che na Bolívia, o fracasso dos
grupos armados contra a ditadura militar brasileira, o terror da Revolução
Cultural chinesa, a falência da Revolução Sandinista, acrescida de casos
escabrosos de corrupção, a queda do Muro de Berlim, o fim do eurocomunismo.
Sempre lutei do lado certo e perdi todas, declarou Antônio Callado em sua
última entrevista. Não me dou o direito de tamanho ceticismo. Vejo conquistas
na Revolução Cubana, na derrota dos EUA no Vietnã, no fim das ditaduras
militares no Cone Sul, na criação do PT, no fortalecimento dos movimentos
populares, como o MST, nos avanços de organizações indígenas, feministas,
ecológicas, e de lutas contra discriminações sexuais e raciais.
Minha fé no socialismo nada tem a ver com os meus sentimentos religiosos.
Funda-se na arraigada convicção de que o capitalismo é intrinsecamente inapto
a construir um mundo de justiça e liberdade. Bastam os dados da ONU: somos 6,2
bilhões de habitantes no planeta, dos quais 2/3 vivem abaixo da linha da
pobreza. O bem-estar dos países ricos resulta da cruel história de colonização
e extorsão praticada sobre as nações da África, da Ásia e da América Latina e,
hoje, prosseguida pela globocolonização neoliberal.
Meu socialismo nutre-se mais da comunidade primitiva dos cristãos, descrita
nos Atos dos Apóstolos, que na teoria do valor. Sinto-me mais próximo de
Proudhon que de Marx. Por isso, não chego a me abater com os escândalos e o
rumo da política econômica.
Minha esperança não se ancora em teorias políticas, ideologias ou promessas
eleitorais. Tem raiz ética: mais que qualquer escândalo de corrupção,
envergonha-me, como ser humano, a miséria coletiva. Não escolhi a família nem
a classe social em que nasci. Fui premiado pela loteria biológica. O que não é
justo. Todos têm direito a uma vida digna. A desigualdade social me repugna. É
uma ofensa à condição humana.
Recuso-me a aceitar que “sempre foi assim e não haverá de mudar”. Não costumo
ouvir isso da boca de quem foi injustamente privado de acesso aos bens mais
elementares, como alimentação, saúde e educação. Nunguém escolhe a pobreza.
Ela decorre de leis e estruturas injustas. Isso é o que precisa mudar.
Minha angústia não é com os atuais escândalos. É ver crianças barrigudas de
vermes sem direito a uma infância feliz; a menina condenada à prostituição
precoce; a mãe vendo o filho largar a escola para ingressar no narcotráfico; o
pai desempregado sem poder sustentar a família.
Deus nos criou para viver num jardim, o Éden. A liberdade humana inventou a
injustiça, que gerou a segregação e a exclusão. Não creio no deus que admite
seus filhos divididos entre miseráveis e abastados. Comungo a fé de Jesus, que
identifica Deus na face do oprimido (Mateus 25, 31-44).
Sei que não haverei de participar da colheita. Mas faço questão de ficar ao
lado dos que lançam, ainda que em terra árida, as sementes de um futuro melhor.
- Frei Betto é escritor, autor de Sinfonia Universal a visão de Teilhard de
Chardin (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/112939?language=es
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