O sonho americano
05/09/2005
- Opinión
Não sei o que é mais apavorante, se o sonho ou se o pesadelo norte-
americano.
O sonho, todos os povos à margem do mundo anglo-saxônico sabemos o que é:
vida farta, riqueza, poder desmesurado de compra e de venda, prêmio
conseguido ao fim por um self-made-man. E o man seria qualquer um de nós,
negro, amarelo, mestiço, quase branco ou quase wasp. Nesse caminho, nesse
way, a todos que na terra USA chegássemos, aportássemos, bastaria
praticar o manual “Só é pobre quem quer”, para conseguir ser um best. E
ser um best, em suma, é o próprio sonho americano.
Ser um best, o melhor, é mais que um superlativo de good ou de well. Ser
um best, para os modestos, é ser o melhor na sua profissão, ou na sua
atividade. No sonho americano, isto significa mais que o dar o melhor de
si em qualquer ação, é mais que o envolver a própria pessoa no seu agir.
É vencer todos os demais, é derrubar todos os outros na sua profissão, é
ser o boss, o chefe, é mais, é ser o tycoon, o magnata, o godfather, o
chefão, é ser o God, enfim, o poderoso, o supremo. Isto, para quem
conhece o preço dessa meta, é apavorante. Porque é uma anti-humanidade.
Porque também guarda uma desumana e inumana mentira. Um paradoxo de
vigarista. Se o the best nasceu para todos, ninguém jamais será the best.
Por um lado, este superlativo exige que todos os demais sejam superados e
vencidos. Por outro, dizem os vigaristas, os demais também são the best.
Porque, continuam, os Estados Unidos são a terra da oportunidade. Para
todos, para todos ...
Ainda que o sonho não se realize para todos, façamos uma recordação, que
é uma forma de pensar. Quando lembramos, refletimos, que o extraordinário
poder de compra para todos exige a contrapartida de poder de venda de
todos, para todos, entramos em uma coisa mais profunda que um thriller.
Pela simples razão de que isto universaliza, universaliza, não, unifica
tudo e todas as coisas à qualidade útil de mercadoria. O que vale um
beijo, um afeto, um amor, isto não se pergunta. Avalia-se, com a mão
sobre o talonário de cheques: quanto custa um beijo, um afeto, um olhar
de ternura? Paga-se, em dólar. A própria pessoa, a própria beleza e
criação transformam-se em algo degradado, infamante. Mas os pobres,
reconheçamos, os miseráveis de todo o mundo não se dispõem a sentir muita
filosofia ou discutir estética. Estão carentes de tudo, de alimentos, de
pedras no estômago, de casa, de abrigo, na rua ou na prisão, que importa,
e por isto seguem para o rainbow, para a arca de ouro que está ao pé do
arco-íris. O próximo capítulo dessa busca, sabemos, é um vácuo, um
mergulho no espaço além da terra.
O pesadelo americano, para a maioria da gente, foi o 11 de setembro de
2001. Aquela imagem do avião a perfurar uma das torres gêmeas, como uma
agulha perfura um tumor, e de lá explodindo pus em forma de fogo, e
depois um outro, a ratificar e confirmar o absurdo que era o terror na
terra onde sempre nasce o arco-íris, e depois o desabamento, do aço, do
concreto à experiência, os gritos, o espanto, os corpos dilacerados,
aquilo foi a encarnação do pesadelo em terras norte-americanas. O comum
da gente toma aquilo como o pesadelo porque o comum da gente acredita no
que vê e no que se repete à exaustão até o nível de idiotia. Mas o
pesadelo e seu outro, o sonho norte-americano, vem de antes, bem antes.
“Estranhos Frutos, As árvores do Sul suportam estranhos frutos, Sangue
nas folhas, Sangue na raiz, Corpos negros balançando na brisa do Sul,
Estranhos frutos pendurados nas árvores de madeira branca... Cena do
campo do nobre Sul, Os olhos arregalados e as bocas torcidas, O doce
perfume da magnólia e frescor, E de repente o cheiro de carne queimada..
Eis um fruto para o corvo bicar, Para a chuva vincar, Para o vento sugar,
Para o sol estragar, Para a árvore derrubar, Nesta estranha e amarga
colheita .”
Strange Fruit
Southern trees bear strange fruit
Blood on the leaves
Blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees
Pastoral scene of the gallant south
The bulging eyes and the twisted mouth
The scent of magnolia sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh
Here is a fruit for the crows to pluck
for the rain to gather
for the wind to suck
for the sun to rot
for the tree to drop
Here is a strange and bitter crop
Esta lembrança da eterna canção de Billie Holiday não é forçada nem
gratuita, quando se aproximam o sonho e seu siamês, o pesadelo, quando
unimos o visto nos últimos dias ao lembrado. As fotos, os relatos do que
restou depois da passagem do furacão Katrina traduzem melhor o que
aproximamos. Em lugar de negros enforcados nos campos do Sul dos Estados
Unidos tivemos negros, multidões de negros ilhados, em desespero, em
depósitos de estádios e nas ruas de Nova Orleans, e em tal número e
presença, que mais pareciam constituir os 100% da população da cidade. É
certo que Nova Orleans é uma cidade de minoria branca, mas não alcança
produzir corpos negros como nessa colheita depois do Katrina. E a razão
dessa estranha colheita não é difícil de achar. Os negros não conseguiram
um lugar entre os the best, porque se encontram entre os mais pobres da
população. Ou, se quiserem, invertam a ordem: porque são os mais pobres,
não conseguem seu lugar entre os the best.
Eles são “aqueles que escolheram ficar para trás”, como de imediato, nas
primeiras horas, foi divulgado pela grande imprensa do país das
oportunidades. E com isto queriam não somente se referir aos que se
comprazem em permanecer na linha abaixo de pobreza. Queriam destacar que
as vítimas não saíram, e não atenderam aos avisos da catástrofe (natural,
naturalmente), porque não quiseram, por preguiça (gente, que é sabido,
muito preguiçosa), ou por negligência (gente de ancestrais negros,
negligentes, of course, mas isto escrito entre parênteses). E por que
então não fugiram para melhor terra, supondo que exista alguma
hospitaleira na vizinhança, no Sul dos Estados Unidos? O jornalista Chris
Floyd, no CounterPunch, esclareceu: “É óbvio que a vasta maioria daqueles
que falharam em fugir são pobres: eles não tinham nenhum lugar para ir,
nenhum meio para sustentar a si e a sua família em outra terra. Enquanto
certamente existiam pessoas que ficaram para trás por escolha, a maioria
ficou porque não tinha escolha. Eles foram apanhados por sua pobreza e
muitos pagaram por isto com a vida” Daí a presença de quase 100% de
negros entre os frutos do furacão.
Que são estranhos a um nível que as fotos não revelam, não sabemos ainda
se por força da imprensa patriótica. O fato é que, enquanto em 11 de
setembro de 2001 o forte impacto veio das imagens, aqui, em Nova Orleans
depois do Katrina, o horror vem dos relatos:
“Produtos químicos tóxicos e petróleo também estão fluindo, assim como o
esgoto. Corpos em decomposição têm sido vistos flutuando na área, assim
como caixões com restos mortais que foram desenterrados dos cemitérios
pela força da maré... Os policiais se trancaram nas suas próprias
delegacias com medo dos saqueadores, dos tiroteios e das gangues que
tomam conta da cidade”. Ou quando se referem às condições do abrigo (did
you say shelter?!), no Ginásio de Esportes:...
“Crianças dormem em meio ao lixo. Saquinhos de cocaína entopem os
sanitários. Nas paredes ao lado das máquinas de refrigerante destruídas
por adolescentes há manchas de sangue. O Superdome, até a semana passada
um moderno estádio esportivo, se tornou palco do terror das mais de 20
mil pessoas que lá buscaram abrigo após a chegada do furacão Katrina.
- Estamos como animais, urinando no chão - contou Taffany Smith,
embalando o filho de três semanas, Terry. Com a outra mão, segurava uma
preciosa garrafa de água mineral - objeto de disputas que chegam à
agressão.... Um homem pulou de uma altura de 15 metros, gritando que não
tinha mais razão para viver... Durante o dia, foram encontrados sete
corpos próximo ao estádio.
- Não se trata nem cachorro desse jeito. Eu enterrei meu cão - gritava
Daniel Edwards, apontando para uma idosa, morta em uma cadeira de rodas,
sem socorro... Por causa do calor e do cheiro fétido, outros preferem
dormir fora, no terraço, e alguns tiraram a roupa e passaram a andar nus
pelo local.
April Thomas, que se refugiou no Superdome com os 11 filhos, instituiu
um sistema de rodízio para o sono da família: - É um hospício, aqui.
Temos que afastar os agressores constantemente. Temos que lutar pela
vida. Quando acordo, a primeira coisa que penso é: ‘Onde estão os meus
filhos. Estão todos aqui?’ ''.
E então, para conter o caos, para impor a ordem, Bush faz voltar algumas
tropas do Iraque. Com ordem de atirar para matar, como foram treinadas e
como fazem com os rebeldes no Iraque. Trata-se de uma operação de guerra.
Não, pior. Trata-se de uma guerra, para dominar com repressão mortal a
negligência, a preguiça, enfim, para resolver com sangue a grande
anarquia do capital norte-americano. Que não organiza sequer a defesa de
uma cidade abaixo do nível do mar, cidade de maioria negra, por certo,
mas ainda assim uma cidade norte-americana. Então nos ocorre a pergunta:
que roteirista louco, que artista paranóico, que escritor pervertido, que
imaginação neurótica seria capaz de filmar, pintar, escrever ou imaginar
um pesadelo assim? Os cientistas, esses malditos que não comungam do
Estado fundamentalista de Bush, já anunciam que “a temporada de furacões
do oceano Atlântico está apenas na metade, e ainda há uma probabilidade
de 43% de outro grande furacão atingir a costa dos Estados Unidos em
setembro”.
Quando pensávamos haver passado pelo pior, recebemos tal previsão. Isto
já passou de um pesadelo. Parece que mergulhamos por fim no verdadeiro
sonho norte-americano.
https://www.alainet.org/es/node/112896?language=en
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