Como me sinto

01/09/2005
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Amigos indagam como me sinto frente à atual crise política. Sabem que dediquei os últimos trinta anos de minha vida à construção de um novo projeto libertário que emancipasse milhões de brasileiros da miséria e da exclusão. O que sinto? Uma "tristeza d'alma", como declarou Chico Buarque a 23 de agosto, em Passo Fundo, na Jornada Brasileira de Literatura. Sensação corrosiva, ideais fraudados, sonhos roubados, esse gosto amargo de frutos apodrecidos. Um pequeno núcleo dirigente do PT conseguiu em poucos anos o que a direita não obteve em décadas, nem nos anos sombrios da ditadura: desmoralizar a esquerda. Ainda assim, não me corrói o abatimento, nem a desesperança anula-me a fome de justiça. A inquietação subjetiva aperta o coração, mas não faz sangrá-lo. A vida me ensinou a ser espectador do próprio sofrimento. Distanciamento psicológico aprendido ao assessorar José Celso Martinez Corrêa na montagem de "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, em 1967. O ator encarna o personagem sem perder o domínio sobre ele. Não sucumbe à criatura, como queria Mefistófeles. Não diferia muito disso o que presenciei encarcerado entre presos comuns no Carandiru. O torturado driblava a própria dor. Pauladas e choques elétricos maceravam-lhe o corpo sem decompor o espírito. Gritos lancinantes ressoavam das cordas vocais, à semelhança de birras infantis desprovidas de lágrimas. Habituadas ao sofrimento, as vítimas pareciam flutuar acima da carne ensangüentada. Muitos se antecipavam ao martírio rasgando a pele com giletes e estiletes, cobrindo-se de púrpura para o macabro rito sacrifical. Os anos de luta clandestina, de cárcere, de convivência numa favela capixaba, de atuação pastoral junto aos mais pobres, infundiram-me a desilusão de esperar coincidir meu tempo pessoal com o tempo histórico. Ao contrário do que apregoavam as quimeras esquerdistas, convenci-me de que o socialismo ao alcance das mãos não passava de miragem. O processo de humanização, o acesso a um patamar civilizatório melhor, no qual toda pessoa sentir-se-á engrandecida de dignidade, ainda levará longos anos, até que se supere o acúmulo de bens e de poder como suprema ambição, valor prioritário dessa nossa conflitiva convivência social. Na posse exacerbada busca-se, em vão, a imortalidade, e os vinhos do Olimpo embriagam-nos dessa maldita pulsão de querer figurar entre os deuses. Nos porões da humanidade aprendi por que na floresta os tigres se movem à noite. Não buscam a luz, nem se deixam inebriar pelos primeiros raios do alvorecer. Nutrem-se do que vislumbram em plena escuridão. Basta-lhes a magia das estrelas e a certeza de que a noite é apenas um intervalo entre dois dias. Não é o poder, a vitória, o lapidar cartesiano das ideologias que movem meus passos. É o escândalo da miséria, a vergonha da pobreza, o sofrimento de meus semelhantes, a razão dessa invencível teimosia em juntar cacos, costurar retalhos, começar de novo, refazer o caminho, ainda que a roda do moinho deixe a impressão de que nada sai do lugar, tudo gira em torno de um mesmo ponto, nessa cíclica labuta de Sísifo sobrecarregado de esperanças abortivas. Venho de um povo peregrino. Venho da confiança de Noé na reinvenção do humano, da persistência dos hebreus na travessia do deserto, do desalento de Elias clamando pela morte, do aparente fracasso do Nazareno dependurado na cruz. E trago em mim a marca indelével do pecado original. Sei que novos projetos exibirão fraturas, sonhos virarão pesadelos, o militante de hoje será o arrogante de amanhã. Se os coxos não tropeçam é por prestarem maior atenção aos acidentes do percurso. Ainda assim, salva-me do ceticismo a fé no ser humano, os avanços históricos, a proclamação dos direitos humanos, a indignação coletiva frente à corrupção e à injustiça, o repúdio à guerra, à escravidão e à tortura, a progressiva conquista de cidadania e democracia. Salva- me a genética bíblica do grão de mostarda - a menor de todas as sementes engendra uma árvore frondosa onde os pássaros se aninham. - Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto autobiografia escolar" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/112868
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