A degola do bode expiatório
25/08/2005
- Opinión
A atual crise é mais política que moral. É crise de representatividade. O
povo não se sente representado por aqueles que ele elegeu. A prova é que,
além da corrupção, em dois anos, 210 deputados sobre 513 mudaram de partido.
Previamente a tudo, importa reconhecer o caráter precário de nossa democracia.
Ela ganha contornos de farsa pois não pode haver democracia digna deste nome
na qual um terço da população é excluida e oito mil famílias controlam cerca
de 700 bilhões de reais, aqueles conhecidos rentistas que financiam
mensalmente o governo em troca de altíssimos juros.
Se elencássemos os valores da democracia como são apregoados pela retória
política - liberdade, igualdade, justiça social, participação, desenvolvimento
social com distribuição de renda e seguridades do cidadão - a nossa seria a
sua própria caricatura para não dizer a sua direta negação. Nem falemos dos
políticos. Fale por mim, Pedro Demo, sociólogo de Brasília que eu retenho por
uma das cabeças mais bem arrumadas deste pais:"A maioria é gente que se
caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco, fazer negociatas, empregar
parentes e apaniguados, enriquecer-se às custa dos cofres públicos e entrar no
mercado por cima. Há exceções, mas que confirmam a regra. Não tem outra
vocação senão permanecer no poder. Imoral é perder a eleição. Vale
tudo"(Introdução à sociologia, 330). Descrição realista, não uma caricatura.
Esse ethos político é sistêmico e histórico. Muito antes do PT, foi praticado
pelos partidos conservadores e liberais, pelo PSDB elitista, pelo oligárquico
PFL pelo negocista PTB e outros. A investigação deixou claro que já em 1998
por ocasião da reeleição do candidato do PSDB a governador de Minas Gerais, o
esquema de Marcos Valério já funcionava. Por ser sistêmico de nossa
democracia de baixa intensidade e de misturança de interesses públicos com
privados, o "caixa dois" contaminou praticamente todos os processos eleitorais.
Qual foi o erro da cúpula dirigente do PT? De não ter sido alternativa, de
ter-se adaptado a estes hábitos antirepublicanos. Com indignação vemos os
"bandidos" de ontem, com o dedo em riste, acusando o PT como se esta corrupção
sistêmica tivesse começado com ele. Se houvesse uma investigação séria na
perspectiva de uma profunda reforma política, dificilmente, partidos hoje
"puristas" e figurões "impolutos" escapariam da execração. O problema dos
dirigentes do PT foi seu amadorismo. Deixaram marcas e assim viraram bode
expiatório sobre o qual todos hipocritamente jogam seus própros pecados para
se sentirem redimidos. Como o mostrou René Girard, o mais famoso estudioso
mundial do assunto (Le bouc émissaire), isso somente ocorre, se houver a
degola da vítima. Na degola deve entrar o Presidente senão a expiação
coletiva não seria purgadora. Destarte, os "donos do poder" podem regressar
livremente ao poder de Estado e continuar lá a farra dos privilégios
estatuidos em direitos. Se isso ocorrer haverá uma profunda divisão na
sociedade, pois milhões irão defender o mandato do Presidente, tido como
mandato popular, enquanto outros, em menor número, buscarão seu o impeachment.
Uma nação somente amadurece, ensinava Celso Furtado, quando passa por provas
cruciais. Estamos passando por uma delas. Ou faremos as mudanças necessárias
ou condenaremos nossa democracia a ser de baixíssima intensidade e antipopular.
Chega de desperdício de oportunidades.
- Leonardo Boff é teólogo
https://www.alainet.org/es/node/112828?language=es
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