Breve releitura
20/08/2005
- Opinión
A arte tem, entre outras, a propriedade de extrapolar espaço e tempo. Reli
agora meu primeiro romance, O dia de Ângelo. Transcrevo abaixo um trecho que,
dezoito anos depois, parece não ter perdido a atualidade, infelizmente.
“Todas as quintas-feiras, ao cair da noite, ele esvaziava um Château Petrus,
seu vinho preferido, com o tesoureiro do partido. O encontro, sob discrição,
realizava-se no escritório que lhe servia também de biblioteca particular, em
seu apartamento (...). O tesoureiro apresentava-lhe o movimento do caixa dois
as doações que não eram oficialmente contabilizadas, os investimentos em
nome de terceiros, as aplicações fora do país, e especialmente a
administração da verba em dólares (...). Temia-se que a notícia desse
dinheiro, ainda que sem revelar a procedência, atiçasse a cobiça de políticos
ávidos de quaisquer meios que engordem suas poupanças eleitoreiras e
prejudicasse a imagem que o partido desfrutava junto aos eleitores.
Filho bastardo da ditadura, o partido tornara-se, sob os difíceis anos da
ditadura militar, uma espécie de Arca de Noé resistente a tempestades. Nele
abrigara-se todo tipo de político que, por esse ou aquele motivo, evitara o
descarado adesismo lambe-botas e a flagrante subserviência à política de
segurança nacional tutelada pelos militares. (...)
Tratava-se de uma salada partidária com todos os ingredientes possíveis:
latifundiários e comunistas, empresários e anarquistas, banqueiros e
jornalistas, padres e profissionais liberais, sindicais e feministas. O
tempero advinha desta preciosa artimanha da mais tradicional escola política
do país, a mineira: ficar em cima do muro para ver melhor os dois lados... No
parlamento ou na imprensa, deputados do partido não poupavam criticas à
ditadura, denunciavam as atividades repressivas e as torturas, defendiam os
direitos humanos, atacavam as empresas transnacionais e os credores
internacionais, falavam contra a censura e a favor da reforma agrária, do
direito de greve e do aumento real dos salários. (...). Contudo, não passavam
das palavras aos atos. Preferiam abster-se das manifestações em defesa
daquelas bandeiras, a menos que fosse véspera de eleições ou viessem
respaldadas por grande contingente popular e cobertura de TV. Uma retórica
para agradar aos próprios ouvidos, pois não se empenhavam em agilizar a
aprovação de leis que pudessem arranhar os interesses de quem detinha o poder
ou apurar os escândalos financeiros que envolviam ministros. E quase sempre
acatavam, resignados, o solene desprezo do Executivo pelo Legislativo.
(...) Como presidente praticamente vitalício do partido, ele acompanhara as
articulações que asseguraram uma transição pacífica, sem ônus para os
militares, os empresários, as corporações estrangeiras e os credores
internacionais e sem eleições diretas para presidente. Político de fácil
trânsito em todas as direções, estava estigmatizado pela origem modesta que
intimamente o envergonhava. Compensava-se com hábitos requintados, como
trajar roupas finas, viajar em aviões particulares e colecionar vinhos
importados. Pela mesma razão, desculpava-se da falta ou do atraso a um
compromisso, alegando que recebera um chamado urgente do gabinete do
presidente da República. A mentira, além de inquestionável, por seu relevo
político, o fazia invejado e respeitado por seus correligionários, que lhe
atribuíam mais poderes do que realmente detinha.
Fora tais epiquéias do ofício, era avesso à malversação, ao arbítrio e
sensível às demandas populares, embora montado numa complexa máquina
partidária que o impedia de defendê-la como desejaria. Nas lides parlamentares,
mantinha como farol e guia o princípio de que não podendo facilitar ao menos
tudo faria para não dificultar ainda mais. Nesse sofismável equilíbrio
navegava, como um peixe escorregadio, entre as águas turvas da República. Em
sucessivos mandatos, aprendera a não atribuir demasiada importância a outra
coisa que não fosse sua estabilidade política, a fim de não tropeçar nas
próprias pernas. Sabia que é mais prudente ser dono da boca que escravo das
palavras e, por isso, escutava com paciência, mas sem transferir para si o
peso e o valor que o interlocutor dava à questão que lhe era apresentada.
“Bolo quente embrulha o estômago”, dizia sua mãe no sítio em que fora criado.
Em meio às mais graves crises, preferia deixar as coisas esfriarem ao menos um
ou dois dias, para só então avaliar e decidir o rumo a tomar. Mais importante
do que chegar ao porto era não perder o comando do navio. Não obstante, ele
queria mais: aspirava à presidência da República. E, como todo aspirante,
nutria a ilusão de que, investido do cargo, promoveria reformas que viessem
tirar a nação do atoleiro de miséria em que se encontrava. Enfrentaria a
delicada questão fundiária e cessaria a sangria de recursos gerada pelo
apetite insaciável da agiotagem internacional. Porém, nesse terreno a
imaginação sobrepujava a experiência, pois, como todo aquele que ambiciona a
um posto sem familiaridade com sua mecânica interna, ele acalentava o sonho
acobertado por essa ingênua idéia que leva a maioria dos mortais a pensar que
o exercício do poder supremo decorre principalmente da decisão da vontade.
(...). Ocorria que, agora, o antigo partido de oposição era situação,
encontrava-se no poder, sem que isso significasse solução de continuidade
reformista, voltado à política de modernização do modelo de desenvolvimento:
combinar o ritmo do crescimento econômico com a adoção de medidas sociais que
favorecessem melhores condições de vida à população. (...)
O garçom aproximou-se solícito:
- O que os senhores desejam beber?
- Vê aquele meu uísque especial com uma pedra de gelo pediu o senador
(...).
Com um charuto Cohiba à boca e fósforo aceso à mão, o líder da bancada na
Câmara dos Deputados aspirava com força para tentar acendê-lo. O senador
tomou a palavra:
- Sejamos bem objetivos e realistas. Há pressão do movimento social para que
os abusos do regime militar sejam apurados. Todos nós sabemos das implicações
que envolvem este tema. A anistia decretada inclui a todos que cometeram
crimes políticos “e conexos”, o que beneficia também torturadores e demais
integrantes dos órgãos de repressão. No acordo da transição ficou acertado,
entre as Forças Armadas e o nosso partido, que não se tocaria jamais neste
assunto, para não suscitar revanchismos...
- Acertado com quem? Quem consultou quem para fazer esse acerto? protestou
o jovem deputado, espalhando cinzas sobre o terno de casimira azul do
presidente do partido.
- Calma, calma, deixe que ele conclua o raciocínio disse o velho deputado,
enquanto passava o lenço sobre a roupa.
(...)
Era sobretudo um pragmático. Entre os terrenos minados da esquerda e da
direita, traçara uma linha imaginária, da qual insistia em não se afastar.
(...) Entendia a política como a arte do equilíbrio. Assim, granjeara boas
relações tanto entre os setores da direita, quanto entre a esquerda
tradicional, que identificava nele um virtual aliado (...). Tal posição
facultava-lhe o acesso aos quartéis, às associações de empresários, à mesa
dos banqueiros. Com a mesma desenvoltura, levado pela esquerda de seu partido,
freqüentava sindicatos, movimentos populares e organizações de mulheres.
Sabia lidar com uns e outros. (...)
Essa mobilidade de que desfrutava em áreas tão distintas o imbuíra de certo
messianismo político. Estava contaminado por essa endemia que leva a maioria
dos políticos a confundir, ou a querer coincidir, o tempo histórico e o tempo
pessoal. O talento para aproximar posições divergentes parecia-lhe tão
importante e inato (...). A ética, a democracia, os direitos dos cidadãos
eram meras figuras de retórica em seus discursos perfumados. Só um governo
nacionalista, conduzido por mão-de-ferro e legitimado por grande apoio
popular, seria capaz de empreender reformas que reduzissem a disparidade
social. Por esse objetivo lutava em seu partido.
Sua indicação para líder da bancada federal servira para aplacar, entre os
eleitores, a suspeita de que o partido, agora no poder, se transformara num
grêmio neopopulista, destituído de combatividade. De fato, o partido tornara-
se um mero avalista das decisões do Executivo, cuja política econômica o
presidente da República conduzia restrita a um pequeno grupo de iluminados
que, como mágicos de um circo, a cada dia tiram de suas cartolas e exibem à
perplexidade do público novas surpresas. Nada porém que fizesse recuar os
pratos que se estendiam vazios. (...)
Política é isto, a arte de fazer acordos, de ganhar espaços, de conquistar
parcelas de poder, de saber recuar para armar o próximo bote, e não de
colecionar vitórias.”
- Frei Betto é escritor. O dia de Ângelo (Brasiliense, 1987) mereceu três
edições e, hoje, só é possível adquiri-lo, ao preço de R$ 5, através do @:
tecacarvalho@uol.com.br
https://www.alainet.org/es/node/112775
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