As diferentes versões de um crime
03/07/2005
- Opinión
No dia em que a crise política foi a principal notícia em todo o Brasil, no Recife, que também é brasileiro, as manchetes de 17/6/2005 foram outras. Dizia o mais antigo jornal da América Latina, mais conhecido pelo nome de Diário de Pernambuco: “UM CRIME PERFEITO?” (Com uma tarja mais acima, em menores letras, “Cai José Dirceu”). Dizia o mais popular jornal do estado, mais conhecido como Folha de Pernambuco: “PF INDICIA KOMBEIROS, MAS SEM NOVAS PROVAS”. Dizia o jornal mais lido por assinantes, mais conhecido por Jornal do Commercio, num raro momento de indecisão: “NOVAS TESTEMUNHAS CONTRA OS KOMBEIROS”, no alto, com a foto de duas mocinhas, e abaixo, em maiores letras: “CAI DIRCEU”.
O que quer dizer, com todos mais mais, se elevarmos os jornais à expressão escrita de uma cidade: no Recife, apesar de toda a crise política, a maior parte do povo estava mais interessado em saber os autores de um crime. Saber, enfim, quem eram os culpados de um homicídio, de um duplo homicídio, para ser mais preciso.
Pequeno glossário sem apêndice
Como os dicionários ainda não registram algumas palavras mencionadas acima, aqui é o lugar para duas ou três ligeiras definições. Kombeiro é aquele que vive de transportar passageiros em um veículo, perua, que todos conhecem pelo nome de Kombi. Kombeiro também é sinônimo de motorista pobre, clandestino quase sempre. PF é abreviatura de Polícia Federal, muito útil para diminuir espaço físico de manchete. E os jornais da cidade, nas suas diferentes versões de um crime, mais adiante veremos.
Antecedentes criminais
Até o dia 3 de maio de 2003, Tarsila Gusmão e Maria Eduarda Dourado eram duas adolescentes de 16 anos. Não bastasse essa condição de sexo e idade, eram bonitas como costumam ser todas as jovens nesse estágio, um estímulo ao abuso e homicídio, já se vê; queriam ser livres, iguais a todo e qualquer rapaz, um risco alto que muito tarde veriam, e aqui e ali talvez consumissem drogas, como mais tarde uma versão punitiva e conservadora disse do seu comportamento. Pronto, era e estava desde aí desenhado o seu destino em potência.
Então, o que fizeram as mocinhas insensatas? Acharam de passar o feriado longo do primeiro de maio de 2003 em uma casa de praia de amigos tão jovens quanto elas. Ao fim de um passeio de lancha, em boa paz e convívio, disseram em depoimento tais amigos, elas decidiram ficar sozinhas em outra praia, para um retorno mais tarde. Em resumo, dez dias depois o que restou delas foi encontrado em um canavial, decomposto e perfurado por parasitas e urubus.
Os homicidas
Esta é uma história de rápida solução e desenlace. O criminoso existe antes do crime. Primeira pista: quando mocinhas de classe média são mortas, os criminosos não se encontram entre os seus colegas de melhor classe e condição, que com elas se divertiam . Segunda pista: se entre esses encontram-se herdeiros dos ricos da terra, como de um dono de hospital cinco estrelas, ou de uma rede de supermercados, não existe para tais virtuosos qualquer suspeita. Terceira e última pista: mesmo que alguns desses herdeiros, num lapso, possuam antecedentes criminais, como o espancamento de outro jovem até quase a morte, ainda assim, os seus álibis e comportamentos são perfeitos.
Assim como já se disse que no Exército, diante de um ilícito, é norma o costume do “faça-se um rigoroso inquérito e puna-se o soldado”, aqui também um rigoroso, para os acusados, inquérito foi feito. Na Polícia Civil de Pernambuco, a solução para a morte das duas adolescentes foi dada: os criminosos são dois kombeiros. Que têm nomes, porque assim exige o processo. Marcelo Lira e Valfrido Lira. Que a Polícia Federal, dois anos depois, na última quinta-feira, confirmou.
Onde entram os jornais
Na sexta-feira 17, o Jornal do Commercio com imparcialidade absoluta noticiava no Caderno Cidades: “PF indicia os kombeiros com provas testemunhais. Inquérito apresentado ontem pela PF é reforçado pelo depoimento de três novas testemunhas que teriam visto as jovens no ponto de parada da Kombi”. E mais adiante:
“Um dos casos mais conturbados da história policial de Pernambuco, o assassinato das estudantes Maria Eduarda Dourado e Tarsila Gusmão, teve, ontem, um capítulo decisivo. Seis meses após assumir a investigação, a Polícia Federal, repetindo o que a Polícia Civil fez há dois anos e que não foi aceito por duas vezes pelo Ministério Público, indiciou os irmãos kombeiros Marcelo e Valfrido Lira pelo duplo homicídio, ocorrido em Ipojuca, no Grande Recife, em 3 de maio de 2003. O delegado federal Cláudio Joventino afirmou não ter dúvida de que os kombeiros são os assassinos. E ressaltou que todas as pessoas envolvidas na onda de boataria que cercou o caso, incluindo os amigos ricos das estudantes e até o pai de Tarsila, José Vieira, foram investigados. Nada contra eles ficou provado” .
Importa aqui, para não entrar no método de objetividade de notícias do gênero, que passam a impressão de reproduzir o acontecido sem entrar no mérito, importa aqui realçar que no Jornal do Commercio, ao reproduzir as conclusões da Polícia Federal, os acusados pelo inquérito seriam os “verdadeiros assassinos” porque: três novas testemunhas disseram ter visto as jovens entrarem na Kombi dos acusados; esses verdadeiros criminosos entraram em contradição no inquérito da Polícia Federal; o sigilo telefônico dos kombeiros não foi quebrado, diferentemente do ocorrido com os demais suspeitos, que, na verdade, segundo o delegado, nem mereciam tal desconfiança. Portanto, como foram os únicos sem sigilo quebrado, em dúvida, contra o réu!
O inquérito da Polícia Federal é soberano, inquestionável, sobre ele não se discute. “Investigação feita pela PF trouxe três novas testemunhas e uma revelação sobre a vida pregressa de um dos irmãos kombeiros. Quebra de sigilos telefônicos descartou o envolvimento de amigos na morte de Tarsila Gusmão e Maria Eduarda”. Ao que parece, o trabalho maior da reportagem foi o de resumir o inquérito para os assinantes. É verdade, justiça seja feita, o jornal ouviu os dois acusados, mas num conjunto de 12 títulos, eles ocupam 3. O que vale dizer: pelo peso e altura, com igual objetividade, o mal já está feito.
O caso na Folha de Pernambuco
Se mais tempo e espaço houvesse, deveria estar escrito acima, O caso da Folha de Pernambuco. Talvez pela estreiteza do mercado para jornalistas na cidade do Recife, não sei, talvez por isso não haja muitos trabalhos científicos sobre a notícia na Folha. Para quem não a conhece, digamos de vez que o jornalismo praticado na Folha é o de imprensa marrom. O Dicionário Aurélio dá para essa expressão o significado de “a que explora o sensacionalismo, dando larga cobertura a crimes, fatos escabrosos e anomalias sociais”. A se aplicar com rigor essa definição, a imprensa mais séria nos últimos tempos tem seus dias de marrom. Tanto no Brasil quanto em outros países, onde se transforma em uma cor amarela.
No caso particular da Folha, que já expôs na primeira página nos seus heróicos tempos a foto de uma cabeça, somente ela, sem o corpo da vítima, no caso da Folha importa aqui uma surpresa. Ela destaca, como é seu costume, o crime em 17 de junho de 2005. Mas já na manchete, há uma clara posição, nada marrom: “PF INDICIA KOMBEIROS, MAS SEM NOVAS PROVAS”. E pelo texto interno, ficará patente que o adjetivo “novas” é inútil, porque mais acertadamente, se liberdade de opinião houvesse, o título seria “PF indicia kombeiros, sem provas”. Lá na página 3 se escreve:
“A Polícia Federal chega ao mesmo fim no Caso Eduarda e Tarsila. Novamente os irmãos kombeiros Marcelo e Valfrido Lira foram indiciados. Mas levanta um questionamento: por que a polícia (seja ela Federal ou Civil) não consegue apagar o sentimento de descrença? Desde o início das investigações, várias lacunas foram expostas, sem serem encobertas. Mesmo porque o inquérito da PF não difere da PC – aquele por duas vezes devolvido pelo Ministério Público. Diante deste fato, a única certeza é a morte das duas adolescentes e a sensação de impunidade”.
Na página seguinte, outro petardo, com o título “Ignorado: PF descarta laudo da UPE”, onde se diz: “Depois que o inquérito foi devolvido à Polícia Civil pela primeira vez, os peritos da UPE (Universidade de Pernambuco), Railton Bezerra e Reginaldo Inojosa, fizeram uma nova perícia nos corpos e constataram que Eduarda Dourado não pode ter morrido com um tiro na cabeça, já que não foram encontradas reações vitais no esqueleto. Entretanto, o delegado Joventino não só disse que ambas morreram com tiros, como afirmou que todos os peritos da época confirmaram o fato”. E abre espaço, com fotos, para depoimentos de serralheiro, estudante, padeiro, professora em O Povo Fala. Como uma amostra fácil de pesquisa nas ruas do Recife.
É claro, evidente, que na Folha de Pernambuco há uma corte, uma adulação ao sentimento popular de descrença a esse trabalho da polícia. A Folha sabe para que lado sopra a simpatia da população, e, nesse caso, acompanha. Mas é digno de nota que ela não criou inverdades. Publica alguns fatos, sem grande esforço de pesquisa.
O Caso no Diário
Aqui parece ter havido a melhor cobertura. E de maior peso contra o trabalho da polícia. No Caderno Vida Urbana, publicou-se a foto de um Delegado de aparência intranqüila, com a legenda: “Delegado se baseia em convicção própria para acusar os irmãos Marcelo e Valfrido Lira”. E o título “Inquérito sem provas contra kombeiros”, que se abre com o lead:
“Um inquérito baseado em muitas teses e nenhum fato novo. Seis meses de investigação não foram suficientes para que a Polícia Federal apresentasse provas materiais contra os irmãos kombeiros Marcelo Lira e Valfrido Lira, além dos indícios já reunidos pela Polícia Civil, há exatos dois anos, em 16 de junho de 2003. Mesmo assim, na tarde ontem, durante entrevista coletiva que durou uma hora e 15 minutos e que parou a sede da Superintendência da PF, Marcelo e Valfrido foram novamente indiciados pelo assassinato de Maria Eduarda Dourado e Tarsila Gusmão, ocorrido em maio de 2003”.
É o caso de se dizer que o título é melhor que o texto. O conjunto deixa a impressão de escrito por redatores diversos. Porque o texto não cumpre o anunciado. Era de se esperar qualquer coisa mais eloqüente do que os redigidos falta de provas materiais e a repetição, pela Polícia Federal, dos indícios coletados pela Polícia Civil. E aqui, com certeza, não há uma incompetência jornalística. Há um impedimento, uma censura.
Onde se diz o que não se diz
Na última página da cobertura do Diário de Pernambuco se escreve: “Na sua edição de 1º. de maio, o DIARIO antecipou que duas pessoas seriam indiciadas com o desfecho da investigação da Polícia Federal. A matéria lembrava o aniversário de dois anos do Caso Serrambi. Na reportagem, os nomes dos kombeiros Marcelo e Valfrido Lira não foram revelados para não atrapalhar as investigações ainda em curso e pelo impedimento legal do segredo de Justiça. Na matéria, o delegado Cláudio Joventino previa fechar o inquérito até o final de maio”.
Quarenta e sete dias antes da divulgação do inquérito, o Diário soube os nomes dos que seriam indiciados! É de se notar, é do texto, soube do resultado com investigações que ainda estavam em curso. É o caso de se perguntar, o curso é de rios, desses que se sabe antes aonde vão dar? Ou o curso é de culpados antes das provas, que se pesquisam muito para que fundamentem, como robustas e inequívocas, uma denúncia?
Perguntas e perguntas não respondidas nas três versões do resultado da investigação. É possível que os dois kombeiros sejam assassinos. Pobres de maneira geral matam, é certo, mas era bom que fossem denunciados um pouco depois das provas.
https://www.alainet.org/es/node/112355?language=en
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