Lições da marcha
18/05/2005
- Opinión
Escrevo logo após a conclusão da marcha para a reforma agrária. Como em 1997, o MST fez questão de me convidar para testemunhar a audiência com o Presidente da República. Daquela vez com Fernando Henrique Cardoso, desta vez com Lula.
Antes de mais nada, lastimo os lances de violência, acontecidos nos momentos finais da concentração na esplanada dos ministérios. O lamentável confronto com as forças policiais destoou completamente de todo o contexto da marcha, e acabou divulgando uma imagem distorcida do seu espírito e dos seus objetivos.
A marcha foi ordeira, pacífica, organizada, e sobretudo muito consciente. Foi um roteiro não só de quilômetros a percorrer, mas principalmente de debates e reflexões, que aconteciam todos os dias.
Como estive na chegada das duas marchas, a de 1997 e a deste ano, me permito ressaltar algumas diferenças.
Em 1997 a marcha surpreendeu o país, pelo inusitado da proposta e pelo desafio de vencer centenas de quilômetros, numa convergência para Brasília que ninguém acreditava pudesse ser levada a bom termo. Daí a aparência de proeza, que foi saudada pela população de Brasília, que saiu às ruas para receber festivamente os sem-terra.
Desta vez o povo de Brasília não largou seu trabalho para ver os sem-terra passar. Nem eles queriam aplausos. Tanto que fizeram questão de nem atrapalhar o trânsito, ocupando disciplinadamente só meia pista das ruas por onde passavam. O que eles queriam era o atendimento de suas reivindicações. Eles também pareciam estar executando o seu trabalho, com fadiga e suor.
Esta diferença de clima entre uma marcha e outra faz pensar na diferença real que os anos vão trazendo. Passou o tempo das utopias fáceis e generosas, que encantavam só pelo fato de serem explicitadas. O que se cobra agora é a realidade, o concreto, o possível, o viável.
O que ainda continua a surpreender nos sem-terra é a persistência em realizar uma utopia que teria tudo para ser viável, mas que enfrenta resistências históricas que precisam ser vencidas com tenacidade política, com organização popular e com firmeza governamental.
O contraste maior foi na audiência com o Presidente. Em 1997 o governo foi encurralado, e teve que receber os sem-terra a contra gosto, enchendo-se de precauções. Resultou um clima de desconfiança e de prevenção.
Desta vez, era evidente o clima de descontração, assegurando a disposição para o diálogo.
Mas a surpresa veio na própria audiência. Na sua fala ao Presidente, os sem-terra demonstraram muita competência e conhecimento. Apresentaram suas reivindicações concretas sobre a reforma agrária, ao mesmo tempo que demonstravam uma ampla visão da realidade brasileira, onde inseriam a importância de uma verdadeira reforma agrária.
Os ministros, e o próprio Presidente, respondendo a eles, num primeiro momento ficaram nas fáceis explicações genéricas, capazes de prometer tudo e ao mesmo tempo não se comprometer com nada.
Aí os sem-terra reagiram. Com coragem e muita lucidez, retomaram a palavra, e deixaram muito claro que não tinham feito a marcha para agora ouvir vagas promessas. Eles queriam soluções concretas aos problemas bem específicos que tinham apresentado.
Concluída a audiência, o Presidente assegurou que continuaria reunido com seus ministros para definir as ações do governo.
Penso que este é o recado maior da marcha. Ela não foi feita para espetáculo. A organização e pressão popular é componente indispensável no cenário da democracia. Sobretudo para fazer avançar situações complexas, que encontram resistências ideológicas e demandam propostas viáveis, sustentação política e ação governamental.
Os sem-terra demonstraram que estão preparados, e o governo percebeu que tem sua parte a fazer. Não se fará outra marcha como esta. Agora é para fazer reforma agrária.
- D. Demétrio Valentini é bispo de Jales/SP
https://www.alainet.org/es/node/111984?language=en
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