Reforma agrária: Com o pé na estrada, pelo direito à terra

04/05/2005
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Os 12 mil participantes da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, que dia 2 saíram de Goiânia rumo a Brasília, debaixo de sol forte, já haviam vencido, até dia 4, data do fechamento desta edição, 44 dos 220 quilômetros da BR-060. A marcha deve chegar à Esplanada dos Ministérios dia 17. Das 30 audiências agendadas pelos organizadores com quase todos os ministérios para discutir uma pauta com 16 pontos, 12 já estavam confirmadas nos primeiros dias da marcha. Os caminhantes, organizados em três filas, se estendem por quatro quilômetros de extensão e têm levado cinco horas para dar conta de um percurso médio diário de 16 quilômetros, a uma velocidade de 3 km/h. A rádio itinerante "Brasil em Movimento" FM 88,5, criada especialmente para a marcha em parceria com a Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço), é a única forma eficaz de comunicação simultânea com os marchantes - cada um carrega um radinho para escutar as orientações. Para se ter uma idéia do tapete vermelho formado pelas bandeiras ao longo do caminho, quando a primeira delegação completa o trajeto, a última ainda leva quase duas horas para chegar. Em um sistema de rodízio, que procura valorizar todas as delegações, a cada dia um Estado diferente puxa a marcha, indo para o final da fila no dia seguinte. A imagem impressiona. A quantidade de pessoas é tamanha que quem está marchando raramente consegue ver o início ou fim da coluna. Militantes de cada Estado, identificados por coletes de diferentes cores com o símbolo do movimento, dividem-se em setores de saúde, segurança, infra-estrutura e comunicação. A cada 3 quilômetros, caminhões-pipa fornecem água aos marchantes para atenuar o calor excessivo do Planalto Central. O espírito de sacrifício está estampado no rosto de cada caminhante, como o sem-terra da Bahia que caminha com uma muleta, e outro do Rio Grande do Norte, que usa um triciclo movimentado por manivela. Todo esse aparato faz a marcha funcionar de forma orgânica e coordenada, com 12 mil pessoas agindo como se fossem uma só. É inacreditável constatar que, em meio a tanta gente, não acontecem brigas, confusões ou furtos. As barracas de cada Estado ocupam quase um quilômetro quadrado, em combinações impensáveis. Não é em qualquer lugar que Bahia faz fronteira com São Paulo ou Rio Grande do Norte com Santa Catarina e todos se entendem. A marcha é uma cidade em movimento. Todos os dias, o acampamento é montado e desmontado, avançando lentamente em direção à capital federal. Para que tudo esteja pronto quando a marcha chegar a um novo local de acampamento, mais de mil militantes se antecipam em 31 caminhões, 9 ônibus e 27 carros. Em cerca de quatro horas, armam gigantescas tendas brancas (com capacidade de até 800 pessoas cada), providenciam água, banheiros e descarregam as bagagens mais pesadas dos participantes. Deixar os pertences nas mãos de pessoas desconhecidas, em meio à bagagem de 12 mil pessoas, exige um alto grau de desprendimento e confiança no outro. Ainda mais quando - como acontece com a maioria dos marchantes - se leva nas malas quase tudo o que se tem. Mas não há incidente. Na chegada, todos recuperam suas coisas, devidamente distribuídas pelas tendas de cada Estado. Mochilas nas costas "Estamos começando mais uma jornada que os livros de História vão registrar no futuro, e vocês são os atores", disse João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a militantes sociais concentrados no ginásio do Estádio Serra Dourada, um dia antes do início da marcha. "Daqui sairão definições para os nossos próximos passos", acrescentou Ademar Bogo, do setor de formação nacional. "Com a mochila nas costas, trocamos de lugar todos os dias para importunar a burguesia", disse Bogo, referindo-se aos militantes do MST, que para ele devem ser vistos como guerrilheiros de um outro tempo. Para caminhar, cada participante recebeu uma mochila e um chapéu de palha (no lugar do tradicional boné vermelho). Bogo prevê que um dia os trabalhadores voltarão a Brasília "para enterrar vícios e defeitos e plantar árvores que produzam frutos para alimentar a sociedade brasileira que hoje tem fome de comida, sonhos e esperanças". Amigos do MST Além das delegações de semterra de 22 Estados mais o Distrito Federal, também marcham "amigos do MST" de diversos países: África do Sul, Bolívia, Espanha, Itália, Paraguai, Suíça e Turquia. José Maria Recio Rivas, do grupo de apoio Red Euro-Latinoamericana, da Espanha, se diz apaixonado pelo MST: "A organização de milhares de pessoas conduzida pelo movimento é surpreendente. Aqui me alimento de companheirismo e amor diariamente. Todos têm responsabilidades ao mesmo tempo em que se sentem protagonistas da luta. Se um dia eu vier morar no Brasil, só haverá sentido viver entre os sem-terra." Caminham também representantes dos movimentos Atingidos por Barragens, Pequenos Agricultores, Mulheres Camponesas, Trabalhadores Desempregados, Cáritas, quilombolas, Trabalhadores Sem Teto, pela Estatização das Fábricas Ocupadas e 90 religiosos - freiras, aspirantes a freiras e seminaristas da Conferência de Religiosos do Brasil que vão se revezar ao longo da marcha -, além de um repórter da Al Jazeera no Brasil. Primeiro de maio Numa espécie de aquecimento para a marcha, no Dia do Trabalho, 1º de Maio, a delegação de Minas Gerais conduziu os marchantes por quatro quilômetros até a Praça Cívica, no Centro de Goiânia, onde houve um ato político-cultural. O arcebispo dom Washington Cruz e o pastor Ariovaldo Ramos, da Aliança Evangélica Brasileira, lembraram que Jesus também não se instalou comodamente no norte da Palestina. Durante os discursos, entre os quais o do prefeito de Goiânia, Íris Rezende (PMDB), foram citados os mártires da luta pela terra de cada Estado. Goiás foi lembrado por ter sido o palco da resistência camponesa em Trombas e Formoso, nos anos 50, e por ser o berço da Comissão Pastoral da Terra e do MST. Ao final, houve a bênção de pães que foram repartidos entre os sem-terra. "Seu" Luiz tem lugar de honra na linha de frente Dez Estados estão à frente da delegação de São Paulo quando "seu" Luiz Beltrami, 97 anos incompletos, percebe que a delegação de Minas Gerais já está puxando a marcha em direção ao Centro de Goiânia. De botas em vez de chinelos, ele - que marcha por São Paulo - empunha sua bandeira do Brasil com flâmulas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra costuradas. Com muita pressa de chegar na linha de frente da marcha, acelera o passo e passa rapidamente pela delegação do Maranhão. Alcança a de Mato Grosso do Sul, quando alguém grita para os mais jovens: "Olhem, é o 'seu' Luiz, de 97 anos, sigam o exemplo dele". Duas pessoas se colocam em seu caminho para tirar fotos. Nesse momento, ele já ultrapassou as delegações de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, mas faltam ainda dois quilômetros. "Seu" Luiz põe a mão na coxa esquerda, quando o trajeto fica mais íngreme e confessa: "Na subida, tem de manerar o passo, senão amanhã ninguém agüenta mais caminhar". Outro marchante se admira: "Eu te disse, eu estava falando do velhinho e olha ele aí". Alguém replica: "Ah, ele só vai até o Centro de Goiânia, não vai marchar até Brasília, não". Outro responde: "Você não sabe que ele andou 1580 quilômetros de São Paulo a Brasília na marcha de 1997?" Falta um quilômetro e "seu Luiz", que anda com o dobro de velocidade dos outros caminhantes, chega à delegação do Espírito Santo. Ele afasta as faixas que atrapalham sua passagem, numa última tentativa de estar à frente da longa fila dos milhares de caminhantes. Ainda não consegue. Dia 11, quando a delegação de São Paulo estiver à frente da marcha, "seu" Luiz poderá finalmente repetir o seu feito das marchas de 1997 e 1999 - desta vez, ele puxará 12 mil pessoas, fazendo pensar que não foi um simples acaso ele ter alcançado o Espírito Santo na marcha descrita acima. - Marcelo Netto Rodrigues, enviado especial a Goiânia (GO). Brasil de Fato, edição 114.
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