Trabalho escravo: Migrantes, uma crônica da vergonha
04/05/2005
- Opinión
"Precisa-se de costureiros para trabalhar no Brasil. Salário de 300 dólares ao mês, com direito a moradia e alimentação". Um anúncio semelhante a esse atraiu Jorge* e Maité*, que acreditaram ser essa a maneira de sair da miséria em que viviam, na periferia de La Paz, capital da Bolívia. Venderam todos os móveis que tinham e partiram rumo ao Brasil. Aqui, contudo, não saíram da miséria.
Jorge só compreendeu o que estava acontecendo quando ele e sua esposa demoraram quatro meses para pagar uma dívida que tinham com o coiote (agenciadores), trabalhando duro, das sete da manhã até meia-noite. "Às vezes, até três da manhã, morando num lugar muito ruim", conta.
Se soubesse que a vida seria assim, Maité nunca teria vindo. Mas era tarde demais. O casal procurou outra fábrica. Depois de dois meses de trabalho, nada a receber. Brigaram com os empregadores e procuraram uma terceira fábrica. A mesma coisa. Na quarta, apareceu um tumor no pescoço de Jorge. Feita a cirurgia, descobre-se que decorria de tuberculose ganglionar.
Maité também contraiu tuberculose. Com dificuldade de trabalhar, Jorge foi agredido pelo dono da confecção, também boliviano, e o casal foi expulso da fábrica. Eles foram acolhidos pela Casa do Migrante, onde vivem há quatro meses, e estão em tratamento de saúde.
Escravidão
A história de Jorge e Maité é semelhante à de milhares de bolivianos que saem de seu país fugindo da miséria, e entram ilegalmente no Brasil todos os anos para trabalhar em pequenas confecções da cidade de São Paulo, em condições comparáveis ao que os defensores de direitos humanos chamam de escravidão moderna. Os operários daquelas fabriquetas costumam ser atraídos para a escravidão pelas falsas promessas de bons salários feitas por coiotes, por meio de anúncios em jornais e rádios bolivianos.
De acordo com o padre Roque Pattussi, coordenador do Centro Pastoral do Migrante - entidade ligada à Igreja Católica que apóia os imigrantes no país - há grupos que são trancados em porões, fechados com grades, correntes e cadeados. Os empregadores também se aproveitam da ignorância dos imigrantes em relação à legislação brasileira e abusam do terror psicológico.
Terrorismo
"Eles dizem que se o trabalhador sair, será pego pela polícia e preso. Assim, eles não saem e produzem mais", afirma padre Pattussi. Outra maneira de cercear a liberdade dos trabalhadores é apreendendo os seus documentos logo no primeiro dia de trabalho. Em muitos casos, os imigrantes também ficam enredados em um ciclo vicioso de dívidas, trabalhando por longos períodos sem receber, para cobrir os custos da viagem para o Brasil. O que aconteceu com Maité e Jorge.
No entanto, devido à sua presença ilegal no país, os imigrantes não protestam quando seus empregadores não cumprem o que prometeram, tornando-os presas fáceis para os donos de fábrica que utilizam mãode-obra barata. A situação degradante a que são submetidos os imigrantes é "pior do que no interior", diz Juan Plaza, coordenador da Casa do Migrante.
Em situação irregular, e clandestinos, os estrangeiros sofrem ainda mais do que os escravos do campo, pois não têm como recorrer ao Ministério do Trabalho. "Essas pessoas são submetidas a condições sub-humanas porque não existe na legislação nada que as proteja. Pelo contrário. Nem a legislação trabalhista, nem o Estatuto do Estrangeiro lhes dão respaldo", acrescenta Plaza.
Ele diz que a legislação brasileira dificulta o trabalho dos defensores dos direitos dos imigrantes, e os impede de fazer um "trabalho mais agressivo". A última coisa que os estrangeiros que vivem em situação degradante querem é que a Polícia Federal apareça, observa Plaza. Nesse caso, explica, terão que pagar multas onerosas e, de um jeito ou de outro, pelo menos eles estão trabalhando. Para o coordenador da Casa do Migrante, a solução é permitir aos imigrantes obter um visto legal de trabalho. Para isso, é preciso mudar a legislação pertinente, argumenta Plaza.
Degradação
As confecções localizadas na região central da capital paulista, e que agora estão se expandindo para o interior do Estado, ficam escondidas para não ser detectadas pela polícia. Nelas, a maioria dos trabalhadores começa a jornada às 7 horas e acaba meia-noite, com um intervalo curto para as refeições.
Em média, ganham 50 centavos por peça de roupa montada, cujo preço de venda nas lojas da região é de até R$ 60. Se danificam uma peça, devem pagar o preço do varejo do item, não os 50 centavos que recebem. Para não levantar suspeitas, as máquinas funcionam em lugares fechados, sem ventilação nem luz natural. Geralmente, os imigrantes moram no local de trabalho, onde vivem em péssimas condições de higiene.
Insalubridade
"Em alguns lugares, só têm direito a tomar banho uma vez por semana", denuncia padre Roque Pattussi. Para economizar, os empregadores alimentam mal os costureiros, que também ficam o dia inteiro respirando pó. Nessas condições insalubres, a saúde das pessoas vai ficando debilitada.
"Eles acabam contraindo doenças como tuberculose, doenças de pele, problemas na coluna. As mulheres também não fazem acompanhamento pré-natal porque não têm documentos e têm medo de ir ao hospital. E ainda trabalham até os últimos meses de gravidez", afirma a advogada Ruth Camacho, que presta assessoria jurídica aos imigrantes. E também não vão ao hospital porque perdem o dia de trabalho, e têm aluguel, alimentação, água e luz descontados. Assim, continuam trabalhando, mesmo doentes.
Egoísmo
Enquanto no interior o trabalho forçado geralmente envolve brasileiros, na cidade de São Paulo, "infelizmente, são os próprios compatriotas que os exploram", lamenta padre Pattussi. Ou seja, as confecções costumam ser dirigidas por gerentes bolivianos, que trabalham para lojistas coreanos.
De acordo com o padre da Pastoral do Migrante, o mundo do imigrante está piorando e ele está se tornando egoísta. "Antes, os imigrantes procuravam se unir para ser fortes. Agora, querem ser ricos para ser fortes. A exploração vem gerando uma eterna repetição de experiências ruins", observa o padre Patiussi. Prova disso, foi o que Maité e Jorge ouviram de seus empregadores bolivianos, ao questionarem as condições de trabalho a que foram submetidos: "Nós sofremos, vocês também têm que sofrer".
*Por questões de segurança, os nomes dos entrevistados foram modificados.
- Tatiana Merlino. Brasil de Fato.
https://www.alainet.org/es/node/111900
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