Reforma sindical e Convenção 87

18/04/2005
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Na polêmica em curso sobre a reforma sindical, uma conhecida figura jurídica volta à baila: a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que fixa regras de “autonomia e liberdade sindical”. O próprio governo defende essa norma e diz que só recuou para costurar o consenso no Fórum Nacional do Trabalho. Mesmo assim, revela que seu projeto pavimenta o caminho para a sua futura introdução. “O novo modelo conjuga princípios que derivam da unicidade, como a exclusividade de representação, com os da liberdade sindical, como a possibilidade da existência de mais de uma entidade num mesmo âmbito de representação” [1]. E, diante das críticas ao seu projeto, ele até ameaça desengavetar a Convenção 87! O curioso é que essa norma não seduz apenas os atuais ocupantes do Ministério do Trabalho. Por variadas razões, ela desperta paixões em áreas antagônicas da sociedade. Expressão maior do pensamento da elite, a mídia burguesa vive insistindo na sua ratificação imediata e agora critica a reforma por sua “timidez”. A Folha de S.Paulo avalia que o governo “acerta ao acabar com a unicidade”, mas que nega a autonomia ao manter as contribuições compulsórias [2]. Já a revista patronal Exame ataca: “O governo pretendia alterar as estruturas de poder criadas pelo ex-presidente Getúlio Vargas. Os sindicatos finalmente ficariam livres da interferência do Estado. Na prática, o que se vê no cartapácio de 80 páginas é quase o oposto” [3]. Em certo sentido, a mesma opinião é expressa por distintas correntes da CUT – da Articulação, tendência majoritária da central, até certas forças de esquerda contrárias à reforma. João Felicio, dirigente da CUT e secretário sindical do PT, apóia a proposta do governo porque ela “acelera a transição do modelo tutelado pelo Estado para outro de plena autonomia e liberdade nos moldes da Convenção 87” [4]. Já a minoritária corrente O Trabalho pensa exatamente o oposto: ela seria “um inaudito ataque ao princípio inviolável da liberdade e autonomia – da Convenção 87 da OIT” [5]. A mesma tese é pregada por outros segmentos da esquerda petista e até mesmo pela Conlutas – numa estranha convergência de opiniões. Baita confusão! Contrabando perigoso Mas, afinal, o que é essa tão badalada Convenção 87? Porque ela seduz setores tão dispares da sociedade? Ela realmente garantiria, conforme alegam seus distintos apologistas, a plena liberdade e autonomia para o sindicalismo? Ou ela serviria, como alertam os seus opositores, apenas aos intentos do patronato para dividir e fragilizar as organizações de classe dos trabalhadores? Esse debate não é um mero diletantismo, na medida em que o próprio governo e as centrais que apóiam a reforma em curso, CUT e Força Sindical, garantem que esse projeto prepara a transição para a vigência dessa norma internacional no Brasil. A Convenção 87 versa sobre “Liberdade Sindical e Proteção ao Direito de Sindicalização” e foi aprovada em julho de 1948 na 31ª sessão da Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho. Ela trata especificamente da questão sindical, fixando normas tanto para as entidades dos trabalhadores como para as dos patrões. Com apenas 21 artigos, apresenta uma fisionomia aparentemente progressista. Elaborada no clima democratizante do final da II Guerra Mundial, ela procura contemplar antigas reivindicações do sindicalismo europeu traumatizado e fragilizado pelo corporativismo autoritário da besta nazi-fascista [6]. Alguns dos seus artigos objetivam eliminar o atrelamento dos sindicatos ao Estado. “As organizações de trabalhadores e empregadores terão o direito de elaborar seus estatutos e regulamentos administrativos, de eleger livremente seus representantes, de organizar a gestão e a atividade dos mesmos e de formular seu programa de ação. As autoridades públicas deverão abster-se de qualquer intervenção que possa limitar esse direito ou entravar seu exercício”, afirma o artigo 3. Diante da atual proposta de criação do Conselho Nacional de Relações do Trabalho, que poderá aprovar “disposições estatutárias mínimas” e até definir o “rol de atividades essenciais” nas greves [7], essas normas da OIT serviriam de anteparo à tutela estatal. Mas se estes dispositivos agradam os sindicalistas contrários a qualquer intervenção do Estado, um outro desperta a cobiça do empresariado. Num contrabando bem embalado, o famoso artigo 2 da Convenção 87 possibilita a total fragmentação do sindicalismo. Ele não impõe, mas dá brechas à introdução do arriscado pluralismo sindical. Astutamente, esse artigo afirma que “os trabalhadores e empregadores, sem distinção de qualquer espécie, terão direito de constituir, sem autorização prévia, organizações sob a única condição de se conformar com os estatutos das mesmas”. Nada mais singelo, porém, mais perigoso! Risco do pluralismo Com essa linguagem pseudoliberal, ele induz a formação de várias entidades sindicais numa mesma base. Na prática, qualquer corrente partidária, credo religioso ou até qualquer patrão poderia estimular a criação de mais de um sindicato numa mesma empresa ou base territorial. Sem impor limites à fragmentação, os trabalhadores ficariam “totalmente livres” para ver sua principal arma, a unidade de classe, ser destruída pelos patrões e seus agentes. Até em categorias relativamente bem organizadas, como a dos Metalúrgicos do ABC, as poderosas montadoras de automóveis poderiam formar dóceis “sindicatos-casa”. De há muito que a Volks fomenta esse sonho que até hoje não vingou em decorrência do anteparo legal da unicidade. Todo esse risco de fragmentação não fica explícito na própria Convenção 87, que é uma norma genérica e serve a todos os gostos. O perigo só aparece de maneira nua e crua numa leitura cuidadosa das súmulas do Comitê de Liberdade Sindical da OIT. Criado em 1951, já em plena Guerra Fria, esse organismo tripartite tem a função de fiscalizar a aplicação da norma e investigar condutas anti-sindicais nos países membros do organismo. As súmulas representam a jurisprudência da OIT e servem como seu ponto de vista oficial. Através delas ficam cristalinos o incentivo ao plurisindicalismo e as armadilhas dessa badalada norma. Na Súmula 16, por exemplo, o Comitê da OIT “reconhece o direito de todo o grupo de trabalhadores (ou de empregadores) de constituir um sindicato por fora da agremiação já existente” e justifica tal divisão “por razões de ordem profissional, religiosa ou política”. Já a Súmula 18 é taxativa: “A Convenção 87 não quer fazer do pluralismo sindical uma obrigação, mas pelo menos exige que essa seja uma possibilidade em todos os casos. A imposição da organização sindical única está em contradição com a Convenção 87”. Para a OIT, o princípio da unicidade, como o vigente no Brasil, é uma agressão à liberdade sindical. Mesmo reconhecendo que o patronato muitas vezes utiliza essa norma para criar frágeis entidades, a OIT sempre se posicionou contra qualquer tipo de contraponto legal à divisão dos trabalhadores. “A exigência de 50 membros para constituir um sindicato de empresa representa uma cifra, evidentemente, exagerada”, afirma. Em síntese: através da Convenção 87, um patrão poderia cooptar menos de 50 puxa-sacos numa empresa para fundar um “sindicato”. A real possibilidade da pulverização da organização de classe dos trabalhadores é o que explica o apoio da nata do capital a essa norma mundial – e, de quebra, à transição proposta pelo atual governo. O discurso em favor da “liberdade e autonomia” serve a propósitos escusos! História reveladora Não é para menos que dos 96 países que ratificaram a convenção, na maioria impera o plurisindicalismo. Um caso emblemático é o do Japão, onde os empresários estimularam, no pós II Guerra, a formação de milhares de frágeis entidades por empresas – os tais “sindicatos-casa” – para sabotar a hegemonia dos comunistas. Nos anos 80, esse país possuía 73.694 pseudo-sindicatos. Na maioria das corporações, pelo menos duas entidades se digladiavam para ter acesso à negociação. Já na Alemanha, o patronato apostou na criação de quase 25 mil “conselhos de estabelecimentos”, que negociam isoladamente, são proibidos de repassar informações ao sindicato nacional do setor e, na prática, anulam a ação unitária da classe. Como confessa Efrén Córdova, que durante o regime militar foi perito da OIT no Brasil, um dos objetivos dessa norma foi o de se contrapor ao avanço dos comunistas no sindicalismo, em especial na Europa, após a II Guerra. “A Convenção 87 se originou da necessidade de reconhecer o fato da pluralidade como opção básica dos trabalhadores frente à rivalidade que caracterizava a evolução do movimento sindical” [8]. Não é para menos que o primeiro governo que propôs a sua ratificação no país foi o do ditador Eurico Gaspar Dutra. Após decretar a intervenção em 470 entidades de trabalhadores, cassando diretorias legitimamente eleitas, o general golpista ainda tentou destruir a estrutura sindical existente com base na unicidade. Relegada na época, ela só voltaria a ser cogitada dois anos depois do golpe militar de 1964, apresentada pelo deputado Flávio Marcílio – o mesmo que seria candidato a vice-presidente na chapa de Paulo Maluf na disputa do Colégio Eleitoral em 1985. Jarbas Passarinho, então ministro do Trabalho da ditadura, até defendeu a norma, mas descartou a sua aprovação “tendo em vista as condições do momento brasileiro” – momento esse de rígido controle dos sindicatos, de prisões e mortes de sindicalistas. Curiosamente, ela ressurgiria em 1984, já nos estertores da ditadura e diante da retomada do sindicalismo. Ela chegou a ser aprovada na Câmara Federal por iniciativa do deputado arquireacionário Irapuã Costa Junior. A Assembléia Nacional Constituinte de 1988, porém, protelou novamente essa polêmica norma mundial. O então deputado Luiz Inácio Lula da Silva até tentou emplacar a ratificação da Convenção 87, mas ela foi rejeitada [9]. Sob pressão da maioria das organizações de trabalhadores, os constituintes optaram por retirar o entulho autoritário que atrelava os sindicatos ao Estado, como o poder de intervenção e de tutela da vida sindical, garantir a organização do funcionalismo e ampliar o direito de greve – mas mantiveram o contraponto da unicidade no inciso II do artigo oitavo da Constituição. No seu triste reinado, FHC ainda tentou impor projetos “nos moldes da Convenção 87”, mas foi derrotado [10]. Agora, ela volta à baila! Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro “A reforma sindical e trabalhista no governo Lula” (Editora Anita Garibaldi). Notas 1- “Reforma sindical: perguntas e respostas”. Cartilha do Ministério do Trabalho e Emprego, 2004. 2- “Parvoíce sindical”. Editorial da Folha de S.Paulo, 28/02/05. 3- Gustavo Paul. “Toda força aos sindicatos”. Revista Exame, 11/03/05. 4- João Felício. A reforma possível na estrutura sindical, in “A reforma sindical e trabalhista no governo Lula”. Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2004. 5- “Reforma contra a CUT”. Jornal O Trabalho, março de 2005. 6- Altamiro Borges. “A quem serve a aprovação da Convenção 87”. Revista Debate Sindical, maio-1986; 7- “Projeto de lei de relações sindicais”. Ministério do Trabalho e Emprego, fevereiro de 2005. 8- Efrén Córdova. “As relações coletivas de trabalho na América Latina”. Editora LTr, São Paulo, 1985. 9- Ricardo Berzoini. “Direitos sindicais, direitos humanos”. Folha de S.Paulo, 05/03/05. 10- Marcio Pochmann e Altamiro Borges. “Era FHC: A regressão do trabalho”. Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2002.
https://www.alainet.org/es/node/111789?language=en
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