Pascoa, o lado avesso da pele

31/03/2005
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Uma das características da pós-modernidade é a redução da cultura a mero entretenimento e a exacerbação dos sentidos em detrimento da razão e do espírito. Para estimular o consumismo, utilizam-se como isca recursos capazes de nos fazer sentir mais e pensar menos. Isso vale para a publicidade, certos programas televisivos e até rituais religiosos. Dissemina-se uma cultura centrada no epidérmico, na qual há mais estética que ética, nádegas que cabeças, urros que melodias, ambições que princípios, devaneios que utopias. Tudo é aqui e agora, a ser devorado por olhos e ouvidos, o corpo entregue a um frenesi de sensações que faz do prazer e do sexo simulacros da felicidade e do amor. Seres relacionais e racionais, como acentuam os filósofos desde Sócrates, somos agora reduzidos a seres extrofiados, revirados para fora, estranhos a nós próprios, como lamentava Kierkegaard, pois nossa auto-estima passa a depender do que vem de fora ­ da gula e da antropofagia visual aos arremedos de fama, fortuna e poder. Páscoa significa travessia, passagem. Talvez uma das mais difíceis é a que nos faz percorrer o caminho entre a epiderme e a vida interior, não para dualizar polaridades, mas para resgatar a unidade. O budismo tibetano tem razão ao afirmar que, malgrado todo avanço científico e tecnológico, cada pessoa é ontologicamente a mesma desde que o símio tomou consciência de que o galho de árvore em sua mão poderia servir-lhe de arma de ataque e de defesa. Aristóteles sintetizou-nos em esferas sensitiva, racional e espiritual, como unidade que exige equilíbrio. A exacerbação de uma resulta na atrofia das outras. Só a predominância do espiritual é capaz de imprimir sensatez "às loucas da casa", como diria o poeta, evitando o sabor de náusea dos sentidos, descritos por Sartre, bem como o racionalismo que, ao contrário de Tomás de Aquino, julga equivocadamente que a razão é a suprema expressão da inteligência. Fazer Páscoa em si mesmo é cultivar a subjetividade. "Beber do próprio poço", sugerem os místicos. Desnudar-se de ilusões egocêntricas, jejuar os sentidos, adequar a razão a seus limites, orar e meditar para poder contemplar. Somos seres vocacionados à transcendência. Como dizia Hélio Pellegrino, uma samambaia desfruta de sua plenitude vegetal. Nós, não; escravos do desejo, temos buracos no corpo e na alma. É a "gula de Deus", da qual falava Rimbaud. Ao deixar de trilhar as veredas que conduzem ao Absoluto, corremos o risco de nos perder no acidentado terreno que cotidianiza o absurdo: iras e mágoas, inveja e competição, medo e, sobretudo, uma incômoda sensação de não saber exatamente o que fazer desse breve período de existência. A Páscoa é precedida de morte que, emblematicamente, a tradição cristã qualifica de paixão, um ato de amor, de entrega, que faz refluir tudo aquilo que dispersa, aliena e ilude. Jesus no túmulo simboliza o silêncio, a volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçar a solidão sem se sentir solitário. Ressuscitar, renascer na ousadia de assumir valores altruístas e empenhar-se para que a justiça seja o fundamento da paz. Tudo que existe pré-existe, subsiste e coexiste. É Universo, e não pluriverso. Comunhão e luz. Não é em vão que os orientais chamam o centro energético do nosso ser, lá onde se situa o coração, de plexo solar. O silêncio das galáxias no infinito é um convite para que se saiba fechar os olhos para ver melhor. E descobrir, no âmago de si, a presença amorosa de Deus, que impregna o lado avesso da pele e ansia fluir por todo o corpo, palavras e atos, de modo a fazer de nós seres vitalmente pascais, cuja existência coincida com a sua essência. * Frei Betto é autor de "Treze Contos Diabólicos e um Angélico" (Planeta), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/111688
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