O Arco, a Corda e a Flecha do Desmatamento

24/02/2005
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Já se tornou conhecida a imagem do “arco do desmatamento” quando se fala do caos socioambiental da Amazônia. Essa imagem de desordem e caos ambiental na Amazônia se tornou lugar comum desde os anos setenta, quando o regime ditatorial sob tutela militar resolveu promover a Operação Amazônia de ocupação não-amazônida da região. A resistência dos Povos da Floresta, de que Chico Mendes foi a maior expressão, mostrou que a Amazônia não era desabitada, sendo de se registrar que em 1985, quando da criação do Conselho Nacional dos Seringueiros, a principal mensagem que queriam dar ao Brasil e ao mundo era de que na Amazônia havia gente, além de floresta. Já se vão 20 anos dessa criação e mais de 30 dos megaprojetos que ali se implantaram para levar o desenvolvimento e, mais uma vez, é preciso um cadáver ilustre, o da freira estadunidense Dorothy Stang, para que a região mereça a atenção devida. Digo um cadáver ilustre porque só no ano passado foram 73 as pessoas mortas em conflitos agrários no Brasil, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra. O mais grave nesse momento é que a imagem de “arco de desmatamento” está mudando. Agora, é rigorosamente arco e flecha, pois a BR 163 é a flecha que conforma o novo desenho e, pura ironia, é um arco que está apontado contra nós, brasileiros. A flecha da BR 163 estará fragmentando a floresta em grandes blocos e, assim, expondo à pressão do desmatamento. Para a imagem ficar completa é preciso lembrar que o arco do desmatamento tem a sua corda, a Transamazônica, que por razões conhecidas malogrou nos intentos maiores de ocupação. Com certeza, a corda e o arco já por si sós gravíssimos nos efeitos sociambientais, terá sua tensão aumentada com a flecha da BR 163. Este arco e flecha completo está nos condenando não só pelo que estamos fazendo com nossos recursos naturais e com o destino do nosso povo, com comprovados efeitos para a humanidade e o planeta como, pela maneira açodada como as medidas estão sendo tomadas, tudo indica, parece ser mais uma resposta à repercussão da morte de Dorothy Stang do que uma preocupação em ir ao fundo da questão para resolvê-la. É isso mesmo, pois por mais mortes que venham ocorrendo no Pará, não é lá que estão os maiores índices de violência e mortes no campo brasileiro. E se tanta vontade está havendo de resolver o problema da violência no campo, com certeza se está errando o centro do alvo. Dizer que o Pará é o estado brasileiro onde há maior violência e mortes é o mesmo que dizer que São Paulo é o estado brasileiro onde mais gente morre, ignorando-se que assim é porque, simplesmente, é o estado mais populoso do país. Só tem sentido falar de maior ou menor índice de violência se relacionarmos os dados absolutos de mortes com a população rural do estado considerado e, quando assim se faz, as surpresas mostram um Brasil que muito pouco se vê na mídia, pelo menos quanto à violência. Ë o que se vê no mapa abaixo, onde o estado de Mato Grosso lidera os índices de violência no Brasil em 2003, seguido por Rondônia. O Pará ocupa o 3º lugar nesse índice macabro de violência e morte. Observe-se, ainda, que além de Roraima, onde se arrasta a definição de Raposa Serra do Sol, demora essa responsável pela violência e morte naquele estado em 2003, que os estados de Tocantins e Mato Grosso do Sul também se destacam com índices Muito Altos. No velho nordeste, região que ainda guarda a imagem dos violentos coronéis na cabeça de muito burocrata, somente Pernambuco comparece com índice Alto comparável ao de Mato Grosso do Sul, ainda que mais baixo do que todos as estatísticas de Mato Grosso, Rondônia, Pará e Tocantins considerados Muito Altos e Altíssimos. Observemos que dos sete estados que têm seus índices considerados Altos, Muito Altos ou Altíssimos quatro deles são a menina dos olhos da política econômica com seu agronegócio. A violência no Brasil é, também, moderna. Aliás, tão moderna como era a cana de açúcar nos séculos XVI e XVII quando éramos responsáveis pela exportação da maior commodity da época. Afinal, não havia nada de mais avançado tecnologicamente para produzir para exportação que o engenho de açúcar. Tudo indica que evoluímos da mão santa da chibata que à época nos colonizava para a nova colonização da Monsanto. Enfim, caminhamos de Pôncio a Pilatos Fazer monocultura para obter 3,6 toneladas de grãos por hectare, que é o que se obtém numa excelente propriedade moderna de soja, numa região onde a biomassa por hectare varia entre 350 e 550 toneladas, como a Amazônia é, rigorosamente, ignorar a produtividade biológica primária de uma região que mais tem insolação e água no mundo, para não falar da sua biodiversidade. Aproveitar somente 1% dessa biomassa nos daria mais do que qualquer produção agrícola com base na monocultura. Contam-se em dezenas, e até uma centena dependendo da safra, os sabores diferentes nas sorveterias de Belém, no Pará. Não ignoremos que por trás dos sabores há saberes, todavia, aceitar essa premissa implica partir da matriz de conhecimento indígeno-cabocla da região que, ao contrário do que se diz, conhece bem não só a sua biodiversidade, como muitos dos seus mistérios. O grande patrimônio da Amazônia não é só a sua natureza mas, também, a sua enorme diversidade cultural. Assim, preocupa-nos quando o governo, no calor dos acontecimentos derivados da morte de Dorothy Stang e outros agricultores recentemente, nos promete decretar milhões de hectares como unidades de conservação de proteção integral ou de uso restrito ignorando, assim, que na Amazônia tem gente, como gritaram os seringueiros em 1985 e como costumava afirmar Chico Mendes – Não há defesa da floresta sem os Povos da Floresta. Afinal, extensas áreas para uso restrito por cientistas, ignorando essas muitas outras matrizes de conhecimento é ignorar o custo político, assim como de toda a logística necessária para manter milhões de hectares de terra sem gente ainda pressionados por um modelo de desenvolvimento agrário nos cerrados altamente concentrador de terras e riqueza. Registre-se que em Mato Grosso o patamar considerado básico para cultivar soja com lucro é o de 2000 hectares! Além disso, qual o cientista que entra na mata sem um mateiro, seja ele um índio ou um caboclo ? E se os cientistas são financiados por grandes corporações multinacionais não teriam sido essas áreas de proteção integral exatamente para seu uso restrito ? Não estaríamos substituindo o velho latifúndio por um novo, o latifúndio genético ?




* Carlos Walter Porto-Gonçalves, 55, ganhou o Prêmio Chico Mendes de Ciência e Tecnologia - 2004 conferido pelo Ministério de Meio Ambiente; é ex-presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000). É autor de diversos livros publicados no Brasil e no exterior sendo os mais recentes: - “Geo-grafías: movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentablidad”, ed. Siglo XXI, México, 2001; “Amazônia, Amazônias”, ed. Contexto, São Paulo, 2001; Geografando – nos varadouros do mundo, edições Ibama, Brasília, 2004; O Desafio Ambiental, editora Record, 2004, assim como diversos artigos publicados em revistas científicas nacionais e internacionais.
https://www.alainet.org/es/node/111466?language=en
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