Os avanços do Fórum Social Mundial

13/02/2005
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A quinta edição do Fórum Social Mundial, realizada em Porto Alegre de 26 a 31 de janeiro, confirmou a vitalidade desta iniciativa plural, unitária e democrática de distintos movimentos sociais, forças políticas e da intelectualidade progressista do planeta. No essencial, o seu saldo foi altamente positivo. Ao contrário do Fórum Econômico de Davos, o convescote esotérico dos magnatas autistas neoliberais que a cada ano mais se parece com a gélida estação de esqui da Suíça, o FSM se consolida como um espaço de reflexão crítica e também de ativa mobilização dos que lutam em defesa da humanidade e por um mundo melhor. Em pelo menos três aspectos, o 5º FSM cravou avanços: participação, politização e planos de ação. Se o primeiro fórum, em 2001, reuniu 20 mil pessoas num gesto de enorme ousadia – o segundo já teve 50 mil; o terceiro, 100 mil; e o quarto, que arriscou se deslocar de Porto Alegre para Índia, teve 111 mil presentes –, o desse ano superou todas as expectativas ao congregar 155 mil participantes de 135 países de todos os continentes. Ativistas de 6.588 organizações participaram dos mais de 2.500 eventos autogestionados, que foram transmitidos ao mundo por 6.823 profissionais da comunicação. Até a reacionária mídia gaúcha foi obrigada a reconhecer a potência do 5º FSM, destacando a sua marcha de abertura com 200 mil pessoas. Salto na politização Mas o principal avanço não se deu nesse aspecto mais visível, quantitativo, mas sim no campo subjetivo. Aos poucos, certas incompreensões e intolerâncias vão sendo suplantadas num esforço para unir forças na luta contra os inimigos comuns. Respeitando-se a rica diversidade de opiniões e movimentos, a geração dos fóruns vai superando suas fragmentações e construindo pontes entre os diversos setores engajados na luta contra a barbárie neoliberal. O 5º FSM representou um salto na politização, nessa visão de totalidade. Ele deu passos para enfrentar a falsa dicotomia entre movimentos sociais e ação política e para estreitar a relação entre as chamadas esquerdas sociais e partidárias. Sem dúvida, ele foi o mais político dos fóruns! Em vários painéis, uma questão nevrálgica antes tergiversada e até rechaçada veio à tona com ímpeto: é possível mudar o mundo sem interferir na política e almejar a conquista do poder? Desta vez, a resposta não coube somente aos apologistas do movimentismo, que pregam “mudar o mundo sem tomar o poder” e endeusam a ação atomizada das “organizações não-governamentais”. Como notou Gilberto Maringoni, o 5º FSM não foi apenas mais “um encontro de ONGs, com sua miríade de pequenas utopias, focadas em realizações parciais. A realidade do ‘mundo lá fora’ se impôs na busca por vontades e saídas gerais” [1]. De diferentes formas, renomados intelectuais e lideranças sociais colocaram o dedo nessa ferida. Os gurus do movimentismo fragmentário, do espontaneísmo despolitizado e autonomismo anárquico, como o irlandês John Holloway, o italiano Toni Negro e o estadunidense Michael Hardt, não reinaram absolutos! Desta vez, eles tiveram que enfrentar a polêmica franca e aberta. O finlandês Teivo Teivainen, militante da Attac, foi contundente. “Tenho uma má notícia para vocês. Não é possível mudar o mundo sem tomar o poder. E não se toma o poder sem tomar o Estado”, argumentou. Já o sociólogo argentino Atílio Borón, secretário-geral da Clacso, criticou tais concepções como despolitizadoras e desmobilizadoras [2]. Em decorrência desse arejamento, houve uma participação mais intensa e respeitosa de vários partidos e correntes políticas de esquerda, antes limitada pela própria carta de princípios do FSM. Apesar dela ainda afirmar que o fórum “reúne e articula somente entidades e movimentos da sociedade civil... Não deverão participar do Fórum as representações partidárias”, essa 5ª edição presenciou várias estandes oficiais dos partidos e inúmeras e concorridas atividades promovidas por estes. Essa presença não colocou em risco a amplitude do fórum nem causou sua partidarização; apenas contribuiu para politizá-lo ainda mais – e este talvez fosse o maior temor de alguns “ongueiros”, como são batizados certos profissionais das ONGs. Prova inconteste dessa maior politização ficou expressa na calorosa recepção ao presidente Hugo Chávez, que hoje comanda a experiência mais avançada de enfrentamento ao neoliberalismo na América do Sul. As 15 mil pessoas que lotaram o Gigantinho e as outras 15 mil que assistiram à sua conferência num telão fora do ginásio tiveram a oportunidade de constatar a importância da ação política e o indispensável uso de instrumentos de poder na luta por um novo mundo. O líder da revolução bolivariana foi taxativo: “No marco do modelo capitalista é absolutamente impossível solucionar os problemas da pobreza no mundo. Não há solução no capitalismo. Temos que reivindicar o socialismo como tese, projeto e caminho”. Chávez ainda deu uma aula de tática. Ciente das críticas da esquerda às dubiedades do governo Lula, ele citou Simón Bolívar. “É preciso ter paciência, constância e trabalho. Há fases e ritmos que devem ser respeitados”. Mais adiante, lembrou Mao Tse-Tung: “É imprescindível precisar bem quais são os nossos amigos e quais são nossos inimigos; muitos processos revolucionários se perderam por não saber disso”. E arrematou: “Alguns de vocês podem não gostar do que vou dizer e podem até surgir ruídos estranhos no ginásio, mas vou ser direto: eu gosto muito do Lula, é um companheiro que carrego no peito... Junto com Lula, Kirchner e Tabaré Vazquez vamos realizar o sonho de Bolívar” da integração latino-americana. Conforme a perspicaz observação de Marco Aurélio Weissheimer, “se a aclamação que Chávez recebeu em Porto Alegre reflete, de fato, sua popularidade entre os participantes do FSM, então, um dos principais debates teóricos dessa quinta edição teve um vencedor: não é possível mudar o mundo sem tomar o poder. E também não é possível essa mudança sem transformar o poder, radicalizando a democracia e colocando o Estado a serviço do conjunto da população” [3]. Este talvez tenha sido o fato mais auspicioso do fórum! Jornadas de luta Por último, vale registrar os avanços no que se refere ao plano de ação. O 5º FSM foi bem mais dispersivo do que o fórum de 2003, que concentrou suas energias na denúncia da cruel agressão dos EUA no Iraque e alavancou as históricas jornadas contra a guerra daquele ano. Agora não houve uma marca registrada nem um foco único. Mas isso não invalida o enorme esforço dos participantes para aprovar calendários de lutas e eixos unitários. Foram realizadas inúmeras assembléias, reuniões e conversações para definir as próximas batalhas. O que mais se viu em Porto Alegre foram articulações de novas jornadas e campanhas. Uma expressiva plenária aprovou um calendário de mobilizações contra a Alca, a militarização e a dívida externa – que inclui uma semana latino-americana de protestos em abril e a massiva presença no Encontro de Havana. Já a assembléia mundial dos movimentos sociais aprovou a data de 19 de março como “dia de ação global pela retirada das tropas de ocupação do Iraque”, como parte de uma extensa “agenda de luta”. O primeiro tema foi o mote da passeata de encerramento do fórum; já a mobilização contra a carnificina dos EUA no Iraque mobilizou cerca de 200 mil pessoas na marcha de abertura do 5º FSM. Houve ainda a louvável iniciativa de intelectuais para unificar as bandeiras de ação. O Manifesto de Porto Alegre, assinado por Pérez Esquivel, Eduardo Galeano, José Saramago, Boaventura Santos, Ignacio Ramonet, Frei Betto, Emir Sader, entre outros, é uma arrojada plataforma política. Com doze propostas, ele prega a mobilização da geração do Fórum pela anulação das dívidas dos países do Sul; pela taxação das transações financeiras; desmantelamento dos paraísos fiscais; desmonte das bases militares; democratização dos meios de comunicação; e reforma dos organismos internacionais, como a ONU. Polêmicas em aberto Todos esses avanços, porém, não escondem as debilidades do 5º FSM e nem significa que suas complexas polêmicas estejam sanadas. Num breve balanço, o sociólogo Emir Sader, um dos principais mentores do fórum, registrou alguns problemas políticos e organizativos dessa quinta edição, como “a ausência da luta contra a guerra como tema central na programação oficial; o caráter discriminatório e antidemocrático das atividades autogestionadas, em que as entidades que têm recursos podem financiar seus convidados e as outras, não” [4]. Para ele, porém, o principal nó é político. A própria fragmentação do temário do fórum refletiria “a concepção de organizações não-governamentais, que mantém as visões no marco estreito da polarização ‘sociedade civil versus Estado’, deixando de lado ou subestimando os conflitos políticos” [5]. O futuro dessa criativa e potente instância de reflexão e ação está em aberto. Há ainda inúmeras arestas de todos os lados. Algumas “organizações não-governamentais” e certos fundamentalistas do movimentismo insistem em despolitizar a geração do FSM, em “pensar global e agir local”. Não é para menos que já se agitam para evitar que o próximo fórum, que será descentralizado por continentes, ocorra na Venezuela – conforme a proposta da maioria dos movimentos sociais do hemisfério americano. “A proposta de Chávez de que o Fórum Social Mundial deve ter uma agenda política mais ofensiva não agrada muito a Oded Grajew e Francisco Whitaker” – dois dos expoentes das ONGs [6]. Esta postura contra a politização inclusive se expressa na agressiva aversão aos partidos. Marcos Rolim, ex-deputado petista e hoje “consultor em direitos humanos”, é um desses críticos rancorosos. Para ele, os partidos só atrapalham. “O que esta esquerda gostaria é que o FSM fosse uma espécie de Internacional... Felizmente, o FSM não tem nada a ver com isso. Aliás, só existe e só alcançou a dimensão internacional que tem exatamente por mimetizar as organizações de esquerda... Os ativistas que integram o FSM estão se dedicando a projetos com os quais interferem em realidades concretas e mudam a vida de pessoas concretas. Isso lhes parece muito mais importante e produtivo do que cantar refrões contra o imperialismo ou xingar governos. Há uma revolução aqui, mas não a preconizada pelos manuais de marxismo” [7]. No outro extremo dessa postura intolerante e arrogante estão alguns grupos de esquerda que insistem em instrumentalizar esse espaço plural, desconhecendo a sua natureza, sua composição e a própria correlação de forças na atualidade. Não participam do fórum com o intento de fortalecer esse movimento global, mas apenas para demarcar posições... e se contentam com suas ações isoladas e sectárias. Um grupo residual batizado de Fração Trotskista chega a desprezar a presença de 155 mil pessoas em Porto Alegre – “que não esconde a crise política e ideológica do fórum, a sua impotência em combater o neoliberalismo” [8]. Por ironia da história, os dois extremos acabam se tocando. Ambos fizeram cara feia à recepção calorosa ao presidente da Venezuela. “Chávez não se dispõe a um enfrentamento conseqüente com o imperialismo e, muito menos, em um rumo anticapitalista. Por isso, é lamentável que praticamente toda a esquerda do FSM, fora o PSTU, tenha ido ao ato de apoio a Chávez sem qualquer delimitação programática e política” – esbraveja o jornal desse partido. Para ele, que hoje exacerba sua postura de demarcação de forças, “cada vez mais existe uma complementaridade entre Davos e o FSM” – que serviria apenas para “gerar ilusões” no capitalismo [9]. É muito doutrinarismo para uma organização que caminha para o isolamento! * Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: originalidade e ousadia”. (Editora Anita Garibaldi, 2005). NOTAS 1- Gilberto Maringoni. “O melhor e mais político dos fóruns”. Agência Carta Maior - Especial. 2- Katarina Peixoto. “A mudança do mundo e o poder: a polêmica do Fórum”. Agência Carta Maior. 3- Marco Aurélio Weissheimer. “Geração dos fóruns aclama Chávez”. Agência Carta Maior. 4- Emir Sader. “Altos e baixos do 5º Fórum”. Agência Carta Maior, 03/02/05. 5- Emir Sader. “Fórum Social Mundial requer um balanço”. Agência Carta Maior, 18/01/05. 6- Marco Weissheimer. “FSM na Venezuela e Chávez já despertam oposição”. Agência Carta Maior. 7- Marcos Rolim. “Notas para um balanço futuro”. Agência Carta Maior. 8- Paulo Matos e Milton D’León. “El Foro Social ante sua decadencia”. Estratégia Socialista, 04/02/05. 9- Eduardo Almeida. “FSM: uma ‘ponte’ para Davos?”. Opinião Socialista, 02/02/05.
https://www.alainet.org/es/node/111368?language=es
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