Sindicalismo e desordem mundial [1]

20/01/2005
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“Sobretudo, sejam sempre capazes de se indignar contra qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. Esta é a qualidade mais linda de um revolucionário”. Carta de Ernesto Che Guevara aos seus cinco filhos. A compreensão sobre os graves problemas mundiais e a decisão de interferir nesses processos é hoje uma exigência para todo o trabalhador consciente e para os seus organismos de classe. O mundo está cada vez mais interligado ou globalizado, como a mídia gosta de alardear. A crise estrutural do sistema capitalista, expressa nas taxas declinantes de crescimento econômico e na crônica instabilidade financeira, afeta todas as nações. A crise do petróleo, agravada pela agressão dos EUA no Iraque, interfere no país; já a decisão do banco central estadunidense de elevar os juros domésticos pode ameaçar nossa vulnerável economia. Mas não é só no campo econômico que os reflexos são rapidamente sentidos. Embates políticos mundiais também interferem no ânimo das nossas lutas, arrefecendo-as ou impulsionando-as. A heróica resistência dos iraquianos emperra a máquina de guerra dos EUA motiva a resistência dos povos contra a arrogância imperialista. Já as recentes vitórias eleitorais dos venezuelanos, que deram maior vitalidade à revolução bolivariana liderada por Hugo Chávez, servem de estímulo aos latino-americanos na luta por soberania e justiça e comprova a falsidade do discurso de que não há alternativas ao neoliberalismo. Estes e outros episódios revelam que hoje, mais do que nunca, é preciso estar atento diante das questões mundiais e também globalizar as nossas lutas. A ativa solidariedade internacionalista é um termômetro da concepção classista do sindicalismo. Não somos uma ilha; sentimos os reflexos do que ocorre no mundo e podemos e devemos dar nossa contribuição para mudar esse mundo – antes que seja tarde! A humanidade corre sérios riscos, inclusive da sua sobrevivência, na atual fase destrutiva e regressiva do capitalismo. Barbárie e agressão Nas últimas décadas, o quadro mundial se degradou ainda mais. A barbárie humana, que a mídia insiste em banalizar, está presente nas ruas ensangüentadas do Iraque, onde já morreram quase 20 mil pessoas; nos campos de tortura de Guantanamo e Abu Ghraib; ou nos relatórios dos organismos “neutros” que atestam o aumento da miséria. O próprio secretário-geral da ONU, Kofi Annan, confessa sua impotência: “A triste verdade é que o mundo hoje é um lugar muito mais desigual do que há 40 anos atrás”. Até o Banco Mundial reconhece que, dos 6 bilhões de habitantes da terra, 2,8 bilhões vegetam com menos de dois dólares diários; a ONU informa que 924 milhões de pessoas moram em favelas sem água potável e saneamento; e a Cepal (Comissão Econômica para América Latina) relata que em 2003 houve um saldo de 20 milhões de pobres a mais somente no nosso continente – cerca de 380 por hora ou seis por minuto! Atualmente, 44,4% dos latino-americanos e caribenhos (227 milhões de pessoas) vivem abaixo da linha da pobreza, destes, 177 milhões são crianças e adolescentes sem qualquer perspectiva de futuro. Isso não significa que o planeta hoje produza menos ou esteja mais carente. Com a revolução tecnológica, prova da genialidade humana, nunca se produziu tanto e tão rápido. O problema é que toda essa riqueza é apropriada por uma minoria de ricaços: 0,5% da população mundial abocanhou US$ 28,8 trilhões no ano passado. A maior parte do esforço produtivo é desviada para saciar a ambição da elite parasitária e serve à especulação. Hoje o mundo vive sob a ditadura do capital financeiro, que castra investimentos das nações, estranguladas em dívidas eternas. Como efeito, o desemprego bate recorde, a renda despenca e os jovens se tornam “o exército de reserva do narcotráfico”, na dramática síntese do sociólogo Hélio Jaguaribe. Para manter seus privilégios, essa casta usa todos os expedientes. Governos das potências capitalistas, que representam os seus mesquinhos interesses, não vacilam em saquear e oprimir o mundo através de vários mecanismos: militar, econômico, político e cultural. A trajetória dos EUA é a prova inconteste dessa cruel agressividade. Com a sua economia em apuros – a soma dos déficits comercial (importa mais do que exporta) e fiscal (gasta mais do que arrecada) alcançou a cifra astronômica de US$ 930 bilhões em julho –, essa potência unipolar copia métodos nazistas para subjugar governos e massacrar os povos do planeta. Para garantir o combustível ao seu oásis consumista, o terrorista George Bush mentiu descaradamente e desconheceu resoluções da ONU ao invadir o Iraque. É o sangue pelo petróleo! Num futuro bem próximo, outras fontes vitais de energia, como a rica biodiversidade da Amazônia, estarão no alvo de suas “bombas inteligentes”. Hoje essa nação imperialista tem mais de 700 bases militares espalhadas pelo planeta. O gasto militar dos EUA para o biênio 2004-2005 está orçado em US$ 500 bilhões – cerca de US$ 1,36 bilhões por dia, US$ 56,6 milhões por hora ou US$ 16 mil por segundo! No campo econômico-comercial, esse império chantageia os países mais frágeis da América Latina para impor tratados bilaterais de livre comércio (TLCs) e preparar o golpe fatal da Alca – esse projeto nefasto de recolonização do continente. Já no terreno político, aposta na desestabilização de governos soberanos, como prova o criminoso bloqueio a Cuba, a recente intervenção militar golpista no Haiti e as constantes conspirações na Venezuela. Na área cultural, é só contabilizar as músicas ouvidas, os filmes assistidos e os McDonald’s ingeridos para se dar conta dessa acachapante hegemonia! Mas não são apenas os povos dos países periféricos que sofrem tamanha agressão. Mesmo no coração do sistema capitalista se observa brutal retrocesso civilizatório. Na Europa, antes paraíso do Estado de Bem-Estar Social, governos impõem contra- reformas trabalhistas; onde isto não ocorre, as próprias empresas sabotam as leis existentes. Tudo sob pretexto de que a “globalização” exige maior competitividade e que os direitos engessam o mercado. Na rica Alemanha, por exemplo, patrões propõem ampliar a jornada para 50 horas semanais e reduzir as férias para uma semana; na França, solapam a lei das 35 horas semanais. O próprio FMI sugeriu há pouco que a Europa “estimule o aumento do total anual de horas trabalhadas”. Já nos EUA, a pátria da desregulamentação trabalhista, só as indústrias demitiram 2 milhões de operários nos últimos três anos. Recente censo oficial revelou que o número de pobres cresceu em 1,3 milhão de pessoas apenas em 2003; outros 1,4 milhão de pessoas ficaram sem qualquer cobertura para saúde. Além de já não ter o direito às férias remuneradas, ao 13º salário ou ao pagamento de licenças ou adicionais, os trabalhadores dos EUA agora são alvos de um novo pacote trabalhista que reduz o valor da hora extra e corta benefícios da previdência social. Estes fatos confirmam que o capitalismo não tem mais nada a oferecer à humanidade e que conduz os povos, inclusive do coração do sistema, à pura barbárie! Resistência e alternativa A cada dia que passa fica mais visível o fiasco do neoliberalismo, esse amargo remédio prescrito como cura para os males do capitalismo. Além de não servir à humanidade, esse projeto hegemônico do capital não consegue superar a própria crise estrutural do sistema. Isto explica o crescente aumento da resistência no mundo todo. O Iraque é hoje o calcanhar de Aquiles da arrogância imperialista. Na luta pela soberania, os iraquianos enfrentam com heroísmo a maior máquina de guerra do planeta. Por ironia da história, eles ferem o império na sua maior cobiça, o petróleo, e ainda atiçam as contradições interimperialistas. Outro epicentro da resistência se dá na América Latina, que já foi o principal laboratório de experimentos neoliberais e hoje é palco de constantes rebeliões. Levantes populares derrubaram governos subservientes na Argentina, Equador e Bolívia. No Brasil, a insatisfação resultou na eleição de um presidente operário, fato inédito na história. Na Venezuela, que hoje realiza a experiência mais avançada de enfrentamento ao neoliberalismo, o povo derrotou um golpe fascista e um locaute petroleiro e garantiu a continuidade da “revolução bolivariana” dirigida por Hugo Chávez. Cuba, apesar do criminoso bloqueio, resiste! O cenário atual é bem mais promissor para a luta dos trabalhadores. Até no coração do sistema, o capital é acossado: toda semana pipocam greves contra a flexibilização trabalhista na Europa e atos contra George Bush juntam multidões nos EUA. O movimento contra a globalização neoliberal é uma marca desse novo tempo. Inaugurado com a guerrilha em Chiapas, em 1994, esses protestos estão em marcha ascendente – Seattle, Genova, Madrid. Prova dessa ascensão, o Fórum Social Mundial, deflagrado em Porto Alegre, tornou-se referência dos povos em luta e, em 2002, o planeta bateu recordes de participação nos protestos contra a guerra no Iraque. O mundo já não é mais a paz de cemitério do pensamento único neoliberal! Essa ascensão das lutas populares, porém, ainda não resultou na total superação do neoliberalismo e nem na construção de alternativas consistentes. Nas últimas décadas, o capitalismo sofreu profundas mudanças e hoje é hegemonizado pelo capital financeiro, que possui enorme poder. Com o desmanche dos Estados nacionais e a libertinagem financeira, chantageia governos, ameaça com fuga de capitais, desvalorização da moeda, retorno da inflação e o fantasma do “risco-país”. O perfil de classe dos trabalhadores também foi alterado, hoje é mais complexo e fragmentado, o que explica a defensividade de suas organizações. Governantes eleitos com plataformas de mudanças viram reféns desse fascismo de mercado, frustram as esperanças do povo e permitem o retorno de neoliberais. Isto já havia ocorrido na Europa, com a derrota de governos centristas na Espanha, Itália e França e a posse de conservadores como Aznar, Berlusconi e Chirac. Agora começa a se manifestar na América Latina. A frustração popular já resultou na queda de Fernando de La Rua na Argentina e cresce com a vergonhosa traição de Lucio Gutierrez no Equador. Estes e outros fenômenos revelam que a correlação de forças ainda é adversa para os setores populares. Apesar do aumento da resistência, o proletariado ainda se encontra numa fase de prolongada defensiva estratégica. Diante desse cenário, hoje já não basta eleger governos comprometidos com as aspirações populares. Como ironizou o mega-especulador George Soros, o voto popular perdeu seu valor no mundo globalizado; o povo elege de tempos em tempos, já a oligarquia financeira decide todos os dias na bolsa de valores, na cotação do dólar, nas avaliações de risco. Contra a chantagem da ditadura financeira, é preciso intensificar a pressão popular e acumular mais forças na disputa de hegemonia na sociedade. Do contrário, vitórias eleitorais podem se tornar derrotas políticas dramáticas. Diante da avalanche da “globalização neoliberal”, que chantageia e submete os governos, é urgente globalizar nossas lutas. De forma isolada será bem mais difícil enfrentar o cerco imperialista e derrotar a satânica engrenagem financeira. A ativa solidariedade internacionalista, que em nossa região reclama maior integração latino-americana, é hoje condição vital para o avanço da luta dos trabalhadores. Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro “A reforma sindical e trabalhista no governo Lula” (Editora Anita Garibaldi, 2004). * Esta série de artigos foi escrita originalmente para o Congresso do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente de São Paulo (Sintaema) e teve a valiosa contribuição dos ativistas dessa entidade classista.
https://www.alainet.org/es/node/111267?language=en
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