Em (auto) defesa das girafas

21/11/2004
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I. Primeira, breve, porém necessária semelhança com as girafas. Girafa. Animal de grande altura. Pode chegar a 5,3 metros. É o animal mais alto. Mora em regiões secas com árvores dispersas, ao sul do deserto do Saara. As girafas, fêmeas e machos, têm de dois a quatro chifres pequenos, arredondados, revestidos de pele. O couro das girafas ostenta manchas de pêlos de cor escura sobre um fundo creme, uma camuflagem perfeita no conjunto de luzes e sombras da ramagem. As girafas descansam e dormem em pé. A comunicação entre as girafas é realizada através da emissão de gemidos e outros sons de freqüências muito baixas. As girafas se defendem dando coices. II. Um truque neoliberal: o "destino" para os de cima, a "liberdade" para os de baixo. Na grande televisão mundial, o canal um, único e eterno do neoliberalismo, apresenta uma imagem repetida até o vômito: o rico é rico porque assim o quis o destino, deus ou a herança (conforme o caso); e, por outro lado, o pobre é pobre porque quer ser pobre. Assim, o rico deve sofrer a ditadura do destino e "padecer", sem poder se opor, toda uma vida de luxos e impunidades (ainda que, vista de perto, a impunidade é também um luxo); enquanto isso, o pobre desfruta da liberdade de escolher ser pobre, e não tem que se sujeitar a nada...porque não tem nada. No horário nobre, o neoliberalismo propõe uma globalização de cima e outra de baixo. Lá em cima, a riqueza se apresenta, mais do que como numa tela de televisão, como um aquário. Os peixes são bonitos, mas estão presos atrás do vidro. Lá em baixo, a pobreza se apresenta como liberdade de escolher entre estar em baixo ou em cima. Contudo, é esta a cantilena que nos inculcam, de muitas formas e a toda hora: "Você não pode ser como nós (o destino nos reservou o direito de admissão). Mas, em troca, você tem a liberdade de tentar se parecer conosco. Você pode escolher de se vestir como nós, a cor da pele é secundária quando coberta com roupa de marca. Você pode escolher cantar, dançar, fazer amor como nós. Mas, sobretudo, você deve optar por pensar como nós". Enfim, a escravidão disfarçada de "liberdade induzida". III. Quando o poder define o "outro", define o inimigo. Agora como nunca, a base desse crime de lesa humanidade chamado "capitalismo" se aplica em todos os cantos do planeta: os que produzem a riqueza são "libertados" de tudo o que não for sua capacidade de produção. E a moderna Operação Liberdade mundial conta agora com meios militares e financeiros que superam várias vezes a capacidade "libertadora" das bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki. A estranha alquimia da globalização dos de cima conseguiu a mundialização de um novo dogma: liberação da humanidade é igual a liberação dos mercados. Em todo o planeta e em todos os idiomas, se repete a nova reza e se adora um novo deus que, como todos os anteriores, não deixa de ser caprichoso, instável e incompreensível: o mercado. E, como os deuses anteriores, o mercado não caminha com racionalidades de números, estatísticas, leis de oferta e procura, cálculos financeiros. Não, o novo deus tem passo de morte e destruição, de guerra. Apesar disso, nunca irá reconhecer que está destruindo, mas sim que reparte, democraticamente, uma homogeneidade com um vaivém de identidades limitadas: comprador-vendedor. Tudo e, sobretudo, todos os que não podem ou não querem ser uma ou outra coisa, no compasso estridente e frenético do mercado são os outros. Tampouco vai reconhecer que mata, mas sim que "humaniza" impondo uma ordem que vai repovoar a face da terra: a ordem de sua hegemonia. Aqueles que não cumprem esta ordem, são os outros. A nova "verdade" não é tão nova... "Os indígenas, vítimas da mais gigantesca espoliação da história universal, continuam sofrendo pela usurpação dos últimos restos de suas terras, e continuam condenados à negação de sua diferente identidade. (...) de início, o saque e o outrocídio foram executados em nome do Deus dos céus. Agora são realizados em nome do deus do Progresso". (Eduardo Galeano. Ser como eles). Se antes os "outros" eram os indígenas, os negros, os amarelos ou os vermelhos, agora a globalização de cima nos trouxe uma autêntica "democratização mundial": os outros somos todos, e TODAS, nós que não queremos ficar parecidos com o modelo hegemônico, e nos negamos a homogeneizar nossa identidade, ou seja, resistimos a renunciar à nossa diferença. Na diferença, no seu reconhecimento, no tratar de compreendê-la, ou seja, em respeitá-la, está a base da humanidade. Ao definir o diferente como inimigo, o Poder define a humanidade inteira como o contrário a ser aniquilado. IV. A Nova Ordem Mundial em síntese: os países ricos o são as custas dos países pobres. A modernidade neoliberal modernizou também a linguagem: onde antes se dizia "forca", agora se diz "pagamento dos serviços da dívida externa". Soa melhor, mas é mais letal. Na grande televisão globalizada, os países pobres produzem riquezas e os países ricos produzem organismos financeiros que cobram estas riquezas. O México, que é um país pobre, pagou, nos últimos dez anos, quase 350 bilhões de dólares pelo que se chama de "serviço da dívida externa". Somente no mandato do governo "da mudança" se gasta anualmente, no pagamento dos "serviços da dívida", cerca de seis vezes mais do que se gasta no combate à pobreza no mesmo período. Do total pago pelo México, que é um país pobre, nos últimos 10 anos, a quarta parte foi para o Banco Mundial, para o Fundo Monetário Internacional e para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (que, ou não são pobres, ou se disfarçam muito bem), e cerca de dois terços foi para bancos de países ricos (a maior parte dos Estados Unidos, e, em menor medida, trata-se de bancos europeus, japoneses, canadenses e asiáticos). A América Latina, que é uma região de países pobres, por cada dólar que recebe de empréstimo paga oito e fica devendo quatro. Os credores? Bancos norte-americanos e europeus (principalmente ingleses, franceses e espanhóis). Em suma, a globalização de cima simplificou a geografia: no mundo já não há norte e sul, oriente e ocidente, agora há países que pagam e países que cobram. E não só. se antes a "lei" era "quem paga manda", agora é "quem cobra manda". Mas, como os anteriores, o novo deus tem os pés de barro. Seu andar tem como motor principal não a geração de riquezas, mas sim a especulação financeira. O mercado neoliberal, fascinado pelo frenético ir e vir de capitais (a ubiqüidade do capital financeiro, milagre produzido pelas super-rodovias da informação), "esqueceu" duas coisas fundamentais para a reprodução do capital: as mercadorias e aqueles que as produzem (a pós-modernidade continua sendo imperfeita: precisa ainda do trabalho humano). Assim, um sistema parasitário tende a produzir mais parasitas. Ávida em devorar lucros, a globalização de cima não deixa bem-estar algum onde põe o pé. Ao contrário, como os quatro cavaleiros do Apocalipse, semeia, com garantia de imediata colheita, fome, miséria, destruição, morte. Esta passagem não fará outra coisa a não ser destruir o mundo da forma mais simples: destruindo aqueles que o habitam. Claro, isso sim, se os outros o permitirem... V. O neoliberalismo corrigindo "erros". Na globalizada telenovela neoliberal, o outro não é sequer o vilão, é o monstro cuja eliminação é necessária para o final feliz (ou seja, que a "bonitinha" se case com o "bonitinho" e o vilão se redima - com a prévia comprovação de uma sólida conta bancária). Os "outros" são um erro da humanidade. Globalizar a partir de cima é corrigir esse erro no mundo todo. E corrigir é eliminar. Para isso, faz-se necessário despojar os "outros" dos símbolos de sua identidade. A diferença é, assim, um erro da natureza. Os índios da América eram isso, e "civilizá- los" era corrigir os erros de deus...em nome de deus. Mas a modernidade neoliberal não promove a caçada de índios ou negros. Não, agora se trata de caçar humanos...ou, melhor ainda, de caçar identidades de humanidade. E que identidade melhor que a cultura! Se a lógica do mercado é a do lucro (atenção, que é diferente da geração de riqueza), então toda cultura que não responde a esta lógica deve ser eliminada. Se a cultura é fundamentalmente um espelho vital (inclusive quando tem a morte como tema) que nos diz "este eu sou, fui e serei", então o ataque (por comissão ou por omissão) à cultura é um ataque à vida. Dois anos atrás, um jornalista e escritor mexicano, Vicente Leñero, por ocasião da entrega dos prêmios nacionais de Ciências e Artes, definiu para o México o que poderia valer para o mundo de cima: "A classe governamental, a classe política, a classe empresarial, não se diga a classe eclesiástica, se revelam refratárias à avidez cultural; não a incorporam à sua própria existência, talvez porque pensam que a gratuidade com a qual se gesta toda obra de arte, este desprendimento, esta generosidade do fenômeno criador, é suspeita em termos de utilidade pública". (Discurso na cerimônia de entrega dos prêmios nacionais de Ciências e Artes. No jornal mexicano Reforma, Cultura, 26/02/2002). Diante da cultura, o neoliberalismo não é um compêndio de grosserias e superficialidades instantâneas e solúveis. É também isso, mas não só. Trata-se também de uma doutrina de guerra anticultura, ou seja, de guerra contra tudo aquilo que não responde à lógica do mercado. Além disso, artistas e intelectuais são suspeitos de pensar. E pensar é o primeiro passo para ser diferente. Se aniquilar artistas e intelectuais traz condenações da imprensa, existe a opção da asfixia. Os governos de credo neoliberal não só não investem nas ciências e nas artes, como também arrebatam o pouco que há no âmbito cultural "para investi-lo em prioridades iniludíveis, urgentes e inadiáveis"...como é o caso do pagamento dos serviços da dívida externa. VI. Segunda e mais breve, mas igualmente necessária, semelhança com as girafas. O formato das manchas é peculiar de cada girafa que tem também ouvido, olfato e visão excelentes. As girafas foram caçadas por causa de seu couro grosso e resistente, mas, na atualidade, esta é uma espécie protegida. VII. Um mundo sem girafas? Com seu andar desajeitado, sua evidente falta de simetria, seu olhar despreocupado, as girafas têm uma feiura formosa. Bom, vistas de perto, não é que sejam feias, mas é que parecem ser bem "diferentes", com esta figura tão afastada das pedantes simetrias equilibradas que se outorgam aos depredadores. A girafa é a imagem mais emblemática da diferença no mundo animal. Não só é diferente, como faz passear sua irregularidade descomunal transformando sua "diferença" em beleza, exatamente porque se mostra. Felizmente, também a humanidade tem suas "girafas". Há, por exemplo, mulheres girafas, perseguidas e hostilizadas não só porque não se esforçam em acompanhar o padrão de beleza e comportamento impostos de cima ("os enfeites não pensam e não falam querida"), mas também por erguer sua diferença e sua luta para ser o que elas querem ser e não o que eles querem que sejam. Há também as jovens girafas, homens e mulheres, muitas e muitos dos quais resistem muito em submeter-se (se diz a "amadurecer") à seqüência de claudicações, traições e prostituições associadas ao calendário. Jovens que não só não querem ocultar a assimetria do corpo e da alma, como a enfeitam, põem gel, a tatuam, espetam-lhe um piercing, a "darkeam", a "skateam", a "hip-hopeaneam", a "punkeam", a "skineam", a "seja como for que se chama", a gritam com um graffiti na parede, a distribuem em panfletos apoiando uma luta social, a transformam em pequenos caracóis diante das "forças da ordem", a põe pra estudar mas sem ter o lucro como motor e objetivo, e a fazem pular quando o rock, este espelho sonoro, decreta a abolição da lei da gravidade e vai-correndo-cara-que-a-polícia-vem-aí-para- fazer-nos-amadurecer-e-apresse -esta-pixação-para-que-se- possa-ler-bem-que-"girafas-unidas -jamais-vão-virar- tapete"-ainda-que-não-rime-cara-nós-somos-girafas-não-po etas... Há também as "outras" girafas: as girafas homossexuais, lésbicas, transexuais, travestis e "cada-qual-à-sua- maneira", o que? Não só estão saindo do closet, como estão fazendo brilhar sua diferença com a dignidade que distingue os seres humanos dos neoliberais, perdão, dos animais. Sem se importar que sejam perseguidas ou gozadas inclusive por aqueles que dizem que querem mudar o mundo. Javier Lozano Barragán, bispo católico de Zacatecas, México, comparou homossexuais e lésbicas às baratas (La Jornada, 22/10/2004, Penultimatum). As baratas não estão em extinção. As girafas sim. E tem mais. De acordo com rigorosos estudos científicos, as baratas seriam os únicos seres a sobreviverem em caso de holocausto mundial. Não se sabe se os bispos sobreviveriam. Além disso, há girafas indígenas, homens mulheres e jovens, que carregam sua cor, sua língua e sua cultura com as mesmas cores chamativas de suas roupas, de seus cantos, de suas danças, de suas lutas e rebeldias. E há girafas operári@s, campones@s, empregad@s, professor@s, motoristas, balconistas, religios@s, artistas, intelectuais, sem documentos, calçando botas, tênis, chinelos ou sandálias ou com seus pés descalços. Um povo girafa enfim. No neoliberalismo, nós, os "outros" seres humanos que somos, as girafas, os feios, os assimétricos, ou seja, a imensa maioria da humanidade somos caçados para que lucrem com a nossa pele dura. Deveria haver uma lei para nos proteger como "espécie em extinção". Não há. Mas, no lugar da lei, temos nossa resistência, nossa rebeldia, nossa dignidade. É nosso dever resistir porque um mundo sem girafas seria...mmh...como vou dizer?...já sei!...seria como um taco al pastor [comida típica] só que sem a tortilha, sem carne, sem abacaxi, sem coentro, sem cebola, sem salsinha, enfim, só o papel engordurado, um simples papel com saudade de ter tido em cima um taco que, diga-se de passagem, já devorei, mas com a novidade de que o programa está pra acabar e não encontro o sal de fruta na mochila, assim, como diz aquela música, vou me danar. Bom, já estou indo. Continuem atentos ao Sistema Zapatista de Televisão Intergaláctica. Já sei que é uma televisão muito diferente, mas quero contar-lhes que, muito tempo atrás, a televisão era em preto e branco, e agora é a cores. Se todas nós, girafas, prevalecemos, amanhã a vida será a cores, com todas as cores. A televisão?...mmh...quem se importa! Agora sim vou embora... Na tela (ou seja, na cartolina) agora se lê: "Termina aqui este especial do Recovery Channel, o canal da memória dedicado às girafas e exclusivamente para o Sistema Zapatista de Televisão Intergaláctica. Não a desligue, melhor dê uma mexida (se forem tacos ao pastor não sejam fominhas, deixem pelo menos um. Atenciosamente. A Direção)". Das montanhas do Sudeste Mexicano Subcomandante Insurgente Marcos. México, outubro de 2004, 20 e 10.
https://www.alainet.org/es/node/110927
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