O PT e o Governo Lula

02/05/2004
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A Direção Nacional do PT se reuniu no mês de abril, ainda sob o impacto da crise que representou o fim da "lua de mel" do governo Lula. Enquanto em sua reunião anterior a Direção Nacional havia aprovado um documento crítico à política econômica, esta vez, paradoxalmente, pelo debilitamento do governo e pelo acúmulo de críticas a essa política – de parte de praticamente todos os partidos da base governista -, aprovou uma moção de apoio a essa mesma política. Ao faze-lo, quando se generaliza o diagnóstico nos formadores de opinião – pelo menos nos não conservadores – de que os problemas do governo Lula e do país residem centralmente na manutenção e no aprofundamento do ajuste fiscal do governo FHC, toma uma posição extremamente arriscada – quase se pode dizer, suicida. É certo que o resultado da votação foi mais equilibrado do que a tradicional divisão entre maioria e oposição de esquerda. (43 votos a favor e 23 contra: mesmo com as expulsões, 35% da oposição, contra os 20% tradicionais). Mas declarações como as do presidente do PT, de que "não há alternativa de política econômica", assim como a do ministro da fazenda - confraternizando-se com FHC – de que assume a mesma política deste – construíram um cenário constrangedor para a reunião da Direção Nacional do PT. A reunião revela a capacidade de controle que o governo tem sobre a estrutura partidária, com um clima de "governabilidade" dominando o ambiente e ajudando a impor a decisão conciliatória com a política econômica do governo, como se a DN estivesse aceitando a chantagem de que o PT não deve "atrapalhar" o governo Lula. A política governamental de neutralização do PT como partido, fazendo do governo Lula o único sujeito político, ao qual o PT tem que se acomodar ou se calar, conseguiu assim se reafirmar, depois de que a declaração da reunião anterior havia sido considerada como "fogo amigo", "atrapalhando" a tranqüilidade do mercado que a política econômico-financeira busca como objetivo central. O governo do PT ou o PT do governo? O governo Lula é o ponto de chegada da luta histórica de mais de duas décadas do PT. O partido nunca mais será o mesmo depois do governo Lula. O PT se propôs, desde sua fundação a ser o partido protagonista de grandes transformações sociais e políticas – como quer que se tomasse a definição de "socialista" constante de seus documentos básicos. Na sua primeira participação eleitoral (em 1982), Lula foi candidato a governador de São Paulo. Na primeira eleição presidencial direta (em 1989), desde que o partido tinha sido fundado, Lula foi candidato à presidência da república, repetindo essa candidatura em todas as próximas eleições seguintes (em 1994,1998) -, até ser eleito (em 2002). O objetivo era colocar em prática um programa que, embora se alterando ao longo do tempo, sempre pretendeu romper com as políticas das elites tradicionais brasileiras. É certo que desde 1989 Lula foi se distanciando das estruturas partidárias, construindo o que acabou se tornando o Instituto de Cidadania que, de governo paralelo, se transformou em um uma estrutura dirigida por Lula e assessores diretos, tendo como função elaborar políticas alternativas. Até que passou a ocupar formalmente o lugar de espaço de elaboração da plataforma da candidatura de Lula para as eleições de 2004. Quando o documento foi divulgado na sua primeira versão, dirigentes do PT se apressaram a dizer que aquele projeto ainda teria que passar pelas estruturas oficiais do partido, mas se consolidava ali uma separação que foi se dando ao longo do tempo entre Lula e as estruturas oficiais do PT. Não que estas não aprovassem o programa de Lula e seus pronunciamentos, mas Lula tinha autonomia para colocar em prática definições programáticas que só posteriormente chegariam ao partido. Os resultados eleitorais desde a eleição de 1989 revelavam como Lula era muito maior do que o PT. A distancia dos resultados eleitorais demonstrava essa distancia, com votações que chegaram, no segundo turno de 1989, a se aproximar dos 50% e, mesmo nas derrotas de 1994 e de 1998, chegavam a cifras muito superiores àquelas obtidas pelo PT nas eleições parlamentares ou eleições majoritárias locais. (Esta distância ficou marcada mesmo em 2002, quando o PT passou a ter a maior bancada na Câmara de Deputados, mas não conseguiu eleger mais do que dois governadores, ainda assim em estados periféricos.) Os resultados eleitorais confirmaram que o "fenômeno Lula" era muito maior que o PT. Antes de tudo porque os votos com que Lula conseguiu superar o patamar histórico do PT vieram depois da divulgação da "Carta aos brasileiros", eram votos que com isso deixaram de "temer" a Lula, pelos compromissos que ele havia assumido. Mas ao mesmo tempo eram obtidos pelas mudanças introduzidas no programa do PT e na sua plataforma original, antes em confronto com o capital financeiro e agora estabelecendo um pacto com ele. Em segundo lugar, porque vários dos outros dirigentes importantes do PT foram derrotados – Genoino, Tarso Genro, Olívio Dutra, Benedita da Silva, entre outros -, abrigados no governo, mas como perdedores. A apologia do "carisma" de Lula, promovida ao longo da campanha eleitoral e, especialmente, depois da vitória do segundo turno, agora também pela grande mídia, favoreceram a postura "bonapartista" de Lula, individualizando a campanha, a vitória e o governo. Seus discursos cada vez mais acentuaram o tom individual da empreitada, dispensando o sujeito coletivo do PT e dos trabalhadores. "Eu não posso perder", "Eu não tenho o direito de errar" – afirmações como essas, fomentadas com histórias de vida de Lula deixavam claro que quem triunfava era Lula e não o PT. Estavam dadas as condições para a subordinação do partido ao governo. Essa autonomização de Lula ficou mais patente na virada programática entre a primeira versão da plataforma eleitoral, aprovada pelo Instituto da Cidadania e a nova cara da campanha presidencial, na metade de 2002, no momento da "Carta aos brasileiros" e do "Lulinha, paz e amor". Membros das comissões do Instituto de Cidadania afirmam que, em meio da partida, o jogo mudou de campo, levaram a bola para outro – controlado por Duda Mendonça e por Palocci -, sem lhes avisar. Em outras palavras, foram esvaziadas as comissões e transferido o poder de decisão não para o PT – como dirigentes do partido haviam afirmado -, mas diretamente para a direção da campanha, que passou a ter autonomia de decisão e a conduzir estrategicamente a campanha, a ponto de ter assumido a elaboração da "Carta aos brasileiros", que assumiu compromissos novos por parte de Lula e que comprometeriam seu governo posterior. Um partido para o poder e não o poder para o partido As transformações internas ao PT até que tivesse a fisionomia que teve ao chegar na campanha presidencial de 2002 foram comandadas por José Dirceu, guindado à presidência do partido depois da traumática derrota nas eleições de 1994. Se é verdade que a moderação das plataformas do PT é um processo iniciado depois das eleições presidenciais de 1989, ele se acelerou de forma significativa desde então, sendo acompanhado pela construção de uma maioria interna em torno da tendência Articulação. José Dirceu tem razão ao reivindicar para si os méritos dessa operação, foi ele quem comandou nacionalmente a construção da maioria interna que deu estabilidade ao PT ao longo do período que decorre de 1994 a 2002. Para exemplificar as transformações operadas no seio do PT, basta recordar alguns itens do programa da campanha presidencial de 1994: "Estará colocado para o PT e para as forças democráticas e populares a possibilidade de iniciar um acelerado e radical processo de reformas econômicas, de lutas políticas e sociais. Tudo isso criará condições para a conquista da hegemonia política e de transformações socialistas." ("Diretrizes para a elaboração do Programa de Governo", documento aprovado pelo 6. Encontro Nacional, 16 a 18 de junho de 1989, São Paulo, in "Resoluções de Encontros e Congressos – 1979-1998", pág. 397, Ed. da Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 1999.) Mais adiante fala-se na "criação de poder local", na disputa "anticapitalista e socialista", bem como se define "a quem serve o governo democrático e popular do PT": "O objetivo permanente de um governo democrático e popular é a construção de um poder alternativo, fundado no compromisso de promover a igualdade social e orientado pela busca radical da liberdade." (Idem, ibidem.) "Um governo como esse forçosamente terá de enfrentar-se com os interesses dominantes na sociedade brasileira, que se expressam, hoje, na dívida externa, no monopólio da terra, no papel do Estado e no domínio do capital financeiro, industrial, monopolista, sobre a economia." (Idem, pág. 398) Menciona-se que um governo neoliberal propiciaria "um saque dos próprios fundos sociais, a continuidade dos desmonte dos serviços públicos, concentrando ainda mais renda e, sem dúvida, ampliaria a internacionalização dependente da economia brasileira". (Idem, ibidem). O caráter da campanha fica claro: "No debate político-ideológico ao longo da campanha eleitoral, deixarmos clara nossa opção pelo socialismo..." Fala-se em "realizar uma revolução política e social" Afirma-se que "O PT não acredita na possibilidade de capitalismo popular no País. Ao contrário, por meio de um processo simultâneo de acúmulo de forças, enfrentamentos e conquistas dos trabalhadores criaremos as condições para dar início às reformas socialistas no Brasil." (Idem, pág. 401). A campanha de 1994 se centrou em dois eixos básicos: a ética e as caravanas de Lula, representando estas a prioridade do social. O projeto de programa se centrava em reformas estruturais que possibilitassem esses objetivos, tendo sido elaborado em base a extensos encontros setoriais, que desembocaram em um enorme programa de reivindicações sociais e populares, que buscava atender às demandas do movimento de massas. A campanha de 1998 elaborou três eixos: social, nacional e democrático, sistematizando um conjunto de propostas econômicas, sociais e políticas, centrado na ruptura com o neoliberalismo. É preciso recordar que ainda na campanha presidencial de 1994, uma coalizão de tendências consideradas de esquerda tinha maioria na Direção Nacional do PT, situação que foi radicalmente transformada a partir daquele momento, com um isolamento relativo dessas tendências, que passaram a se limitar a um patamar próximo aos 20% dos votos, enquanto as tendências mais à direita – de que José Genoino sempre foi o melhor representante – se somaram à Articulação, ajudando a fortalecer a nova maioria. Quando o partido chega às eleições presidenciais de 1998, esse novo quadro interno já estava consolidado. O impacto da derrota de 1994 levou a um abrandamento de posições e, ao mesmo tempo, incorporando os traumas da eleição anterior, Lula e o PT trataram de se desvincular de uma imagem "derrotista", que teria provocado a derrota, diante do "otimismo" de FHC e seu Plano Real. Assim, o PT se negou a denunciar que o país se encontrava à beira de uma quebra – no momento mesmo em que Pedro Malan já negociava um novo e gigantesco empréstimo com o FMI -, realizando uma campanha inócua, sem impacto popular e levando o partido a uma espécie e anestesia, correlata à crise de militância que já se expressava abertamente depois de 1994. O Congresso do PT de 2001 revelou uma composição da militância partidária que refletia abertamente uma modificação substancial: mais de 70% dos membros era vinculado a estruturas administrativas – secretarias, governos, assessorias, organismos partidários -, com uma minoria vinculada a movimentos sociais ou a outra forma de prática de base. Deslocava-se a maioria dos membros para idades mais avançadas, com a diminuição relativa dos jovens. A composição social revelava pouca participação de operários, assim como de representantes dos setores mais pobres da população. A institucionalização do PT expressava-se na sua fisionomia interna, reafirmando como as transformações políticas estão estreitamente associadas a transformações organizativas. Conforme o objetivo que um partido se coloca, estão as estruturas partidárias que são construídas. O esvaziamento social destas espelhava os objetivos institucionais muito mais limitados que o PT passava a se colocar. As transformações ideológicas e políticas se cristalizaram em posições cada vez mais moderadas, até que assumiram um novo patamar durante a campanha presidencial de 2002 e a assunção do governo por Lula em 2003. Os discursos para justificar o programa moderado – especialmente em relação aos elementos de continuidade com a "herança maldita" de FHC – se apoiavam no fato de que se trataria de "um governo de centro-esquerda", de um "governo de coalizão", com um dos seus ministros, com maior qualificação teórica, junto ao então promovido a presidente do PT, reiterando as críticas ao que seriam "estratégias de ruptura", utilizando-se inclusive o exemplo venezuelano negativamente, como polarização indesejada entre "ricos e pobres". As teses do pacto social e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, foram invocados na direção de construção de um novo "pacto republicano", de um novo consenso, de centro-esquerda. Chegou-se a escrever que Lula se aliava ao PMDB para construir um eixo de centro-esquerda, indispensável para evitar que o governo recaísse para a direita, o que Lula evitaria "de qualquer maneira". O certo é que o governo Lula passou a se definir em relação aos problemas, a tomar iniciativas, a propor leis, conforme suas próprias decisões, sem nenhum tipo de consulta ao PT. Reformas como a da previdência – que alterou a forma histórica do PT encarar o problema - não foram objeto de discussão suficiente, pelo menos do tamanho das modificações propostas. A reforma tributária não teve vinculo algum com as abordagens anteriores do PT. As declarações de Lula – desde que "nunca foi de esquerda", até aquelas de crítica aos movimentos sociais, entre outras – assumiram autonomia em relação ao PT, expressando uma evolução ideológica própria, como se fizesse parte da biografia de Lula e não do partido ao qual pertence. A escolha de um dirigente que tem a expressa hostilidade da massa de militância do PT para suceder a José Dirceu na presidência do PT – José Genoino – expressa a vitória deste e de suas teses moderadas – com traços marcadamente liberais – e a nova inserção do PT. Este teria que ser neutralizado e Genoino passou a aparecer não como o representante do PT diante do governo, mas como o representante do governo diante do PT, com a função de anestesiar ao partido, de neutraliza-lo, para que o único sujeito político seja o governo. As tendências de esquerda do PT, por sua vez, facilitaram a tarefa de neutralização do partido, ao integrarem-se, praticamente todas, a postos no governo e nessa condição se tornarem cúmplices calados das ações do governo. Praticamente nenhuma tendência recusou-se a participar do governo, rejeitando estar em um governo com a política econômica atual, mantendo-se no partido para dar a luta pela transformação dessas políticas. Incapacitam-se assim para ser as expressões políticas do descontentamento de grande parte da militância e do movimento social organizado. O PT como partido pode estar cometendo seu suicídio político, ao amoldar-se a um governo que até aqui manteve e, em certos aspectos, até aprofundou as políticas neoliberais, que assume que está tendo a "coragem" de realizar as (contra)reformas que FHC não realizou, que recebe os elogios do FMI e do Banco Mundial, dos banqueiros nacionais e internacionais, enquanto recebe as críticas dos movimentos sociais e dos analistas de esquerda. Ao contrário do que se esperava – que o governo de Lula fosse a sua consagração – pode ser o seu epitáfio como partido, enterrando a força acumulada nas duas últimas décadas e meia e as tantas esperanças que suscitou no Brasil, na América Latina e pelo mundo afora. Qual o lugar do PT hoje? E, no entanto, essa situação difícil do PT não é inevitável. Ele não está condenado a ser um apêndice do governo, nem a silenciar diante do desconcerto dos seus militantes e dos movimentos sociais e dos dilemas do governo. O PT deveria assumir o papel de intermediação entre os movimentos sociais – todos eles descontentes com as orientações prevalecentes no governo até aqui – e o governo e, ao mesmo tempo, de instrumento para a elaboração de uma estratégia de ruptura com o neoliberalismo. Ajudar o governo a romper com a armadilha de que "não há outra política econômica". Demonstrar que ela é possível, tem que ser resultado da criatividade da esquerda brasileira, da capacidade do Brasil de enfrentar, como país de vanguarda, as dificuldades de saída das armadilhas neoliberalis, com soluções novas, próprias, apoiado no potencial do país. Para isso, o PT precisa levar uma sacudida, precisa passar por uma convocação ao debate, à expressão publica e aberta dos descontentamentos e das divergências, precisa passar por um processo de ampla democratização interna, com consultas a toda a militância – não pelos métodos "norte-americanos" do Ibope, mas por debates e plebiscitos internos -, por uma reaproximação com os movimentos sociais, com a intelectualidade crítica. Em suma, o PT teria que assumir seu papel de partido da esquerda brasileira, diante do governo e dos movimentos sociais, na luta por uma alternativa ao neoliberalismo – objetivo pelo qual será julgado o governo Lula e o próprio PT.
https://www.alainet.org/es/node/109845?language=en
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