Vermelho no Negro

23/03/2004
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Na prática, como sempre, a teoria foi diferente. Os mirabolantes planos para o Iraque dos conselheiros neo-cons do Pentágono e do Departamento do Estado mostraram-se patéticas e mortíferas quimeras que devoram sem cessar vidas e recursos. Um ano após a ocupação, esparramados através de país arrasado, 130 mil soldados – pouco mais de um quarto do exército nacional yankee – posam de patinho de feira para resistentes que, nos dias infelizes, acertam um e, nos inspirados, três ou mais. Os invasores não foram recebidos como libertadores. A prometida guerra relâmpago torna-se história sem fim. As exportações petrolíferas patinam sob os golpes da resistência. A retórica da reconstrução dissolve-se sob o pesadelo do medo, da miséria, do desemprego. Justifica-se a ocupação com o cínico argumento de que a destruição causada aumentaria com a retirada dos destruidores! O cafetão do bilhete verde Os planos de formatação liberal e privatista do Iraque são já referências históricas. O soberbo Paul Bremer corteja vilmente lideranças iraquianas das quais esperava submissão incondicional para que se realize a transferência do poder em 30 de julho, farsa com a qual espera-se salvar Bush de derrota eleitoral vergonhosa. A prisão de Saddam Hussein comprovou apenas o caráter disseminado, celular e plural – nacionalista, islâmico, comunista, neo-baatista – de uma resistência que já ensaia ações coordenadas e esforços de centralização em frente de libertação nacional. Incessantes ataques de fustigação associam-se a golpes cirúrgicos de sofisticado sentido político. O mito do exército high tech imbatível jaz soterrado sob as carcaças dos Blackhawks derrubados por granadas autopropulsadas pra lá de burras e dos Humvees desventrados por bombas caseiras que pululam como flores silvestres ao longo dos caminhos. Sinistros envelopes negros Os recursos yankees erodem-se rapidamente. Os Alvarez e os Silvas de pele morena, arrancados das prisões e engambelados com a promessa da green card, negam-se a permanecer no Iraque, obrigando os Smith e os Grimes de olhos azuis da Guarda Nacional partirem para o front. Fratura-se o consenso da middle class branca e protestante fervorosamente patriótica, desde que não sejam seus filhos a voltarem nos sinistros envelopes negros. O esforço militar imperialista no Iraque permite o fortalecimento da resistência afegã onde já três ministros foram justiçados desde a formação do governo fantoche em fins de 2001. A resistência organiza-se no Paquistão onde talebans e Al Qaeda contam com largo e sólido prestígio popular e os norte-americanos são execrados como jamais. A tentativa yankee de transferir a hemorragia de vidas e de recursos para as costas de seus grandes e pequenos vassalos progredia já a passos de cágado, com países como o Japão, a Coréia e a Itália escolhendo meticulosamente regiões não-críticas para localizar suas magras forças militares de representação. A vontade popular Agora, o povo espanhol impôs o abandono das tropas nacionais do Iraque, no que será certamente seguido nas próximas eleições pelos italianos. Mesmo o serviçal presidente polonês Aleksander Kwasniewski procura construir-se nova virgindade – e uma possível porta de escape – ao afirmar que foi "enganado" sobre a existência das "armas de destruição de massa"! Se a oposição internacional e a resistência militar não conseguem ainda impor o abandono do Iraque pelos anglo-americanos, já fragilizaram poderosamente o soberbo unilateralismo republicano. Nesse sentido, no relativo ao Iraque, a eventual vitória democrata não determinará modificações de conteúdo. O democrata John Kerry tem prometido prosseguir a ocupação do Iraque, enfatizando apenas a necessidade de dividir as responsabilidades e, portanto, de ceder parte do botim aos velhos e novos aliados. Proposta que conquista cada vez mais espaço no seio da própria administração republicana, pressionada pelos tropeços sucessivos. Sindicato de bandidos Vença Bush, vença Kerry, a rapina do mundo voltará possivelmente a dar-se, sob a liderança yankee, com a participação das grandes nações imperialistas, retornando-se assim à prática de dirimir as contradições secundárias no alegre bordel da ONU, como o já realizado na primeira campanha do Iraque, no Afeganistão, na Sérvia, no Kossovo, etc. Os imperialismos francês, alemão, italiano, espanhol, japonês, etc. já prometeram explicitamente embarcar na expedição anglo- americana de saque do Iraque, se o preço, o roteiro e as condições da viagem forem discutidos no guichê da ONU, sob a direção do sempre prestativo e venal Kofi Annan! Hoshiyar Zebary, colaborador no papel de ministro dos Assuntos Exteriores, acaba de declarar que pedirá à ONU resolução que legitime o governo designado pelos anglo-americanos em 30 de junho, na tentativa de facilitar a extensão da adesão à intervenção, sob a elevada direção norte-americana, é claro. Mercenários do capital O fim do unitarismo radical permitirá que o governo USA internacionalize mais facilmente sua já tradicional prática de enviar para a frente de combate tropas formadas sobretudo pelas minorias nacionais norte-americanas pobres – chicanos, porto- riquenhos, afro-americanos, etc. O uso maciço de tropas de nações satélites diminuiria os custos políticos e econômicos das guerras imperialistas. Atualmente, o salário de um hispano de nacionalidade norte-americana em armas no Iraque eleva-se a alguns milhares de dólares enquanto hondurenhos, salvadorenhos e nicaragüenses já morrem no país por duzentos dólares ao mês! O início do fim do unilateralismo republicano processa-se já no Haiti, onde os norte-americanos intervieram para depor o presidente Jean-Bertrand Aristides, em consonância com a ONU e o imperialismo francês, que exige respeito a pretensos direitos históricos sobre um território e um povo que já escravizou. Sob as ordens do imperialismo A intervenção no Haiti objetiva restaurar os bons tempos do governo semicolonial de Papa e Baby Doc e aumentar a pressão sobre Cuba, Venezuela e Argentina, que se nega a pagar incondicionalmente a nota escorchante apresentada pelos banqueiros europeus e norte- americanos. O drama colonial do Haiti apresenta pouco de novo, à exceção da esdrúxula ação do governo Lula da Silva que, sem consultar o parlamento nacional, verbalizou a intenção de enviar 1.100 homens e eventualmente dirigir, em nome dos franco-americanos, a segunda etapa da intervenção no país. Sempre sob a bandeira da ONU, é claro. São conhecidos os objetivos políticos da decisão irresponsável. O governo brasileiro almeja conquistar o apoio norte-americano a sua reivindicação de ingresso como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, no caso de eventual reforma do organismo. A proposta apóia-se no pretenso status internacional do Brasil. Tamanho não é documento Reivindicação que circunscreve a imensa irresponsabilidade do governo e dos articuladores da política externa nacional. Atualmente, o governo Lula sequer detém o controle dos destinos da nação, realidade materializada na incessante desnacionalização da indústria brasileira, na entrega do Banco Central a interventor do capital financeiro mundial, na submissão rasteiras aos ditames do FMI. Nessas condições, um hipotético ingresso do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança ensejaria apenas que os exércitos nacionais se transformem em guardas pretorianas do grande capital mundial. Realidade que facilitaria eventuais intervenções em regiões da América Latina onde cresce a insurgência social e popular, como a Argentina, a Bolívia, a Colômbia, a Venezuela. A decisão de Lula da Silva deu-se paradoxalmente na ausência de qualquer exigência franco-americana, ao contrário do ocorrido no início dos anos 1950, quando o presidente norte-americano Harry Truman espremeu duramente e retaliou o governo brasileiro para que participasse da intervenção multinacional na Coréia, também sob os auspícios da bandeira azulzinha da ONU. Tempo de homens minúsculos Na época, contra a opinião dos ministros da Fazenda e das Relações Exteriores, Vargas negou-se terminantemente a participar de aventura político-militar que não interpretava interesses do Brasil, elevados ou mesquinhos. As nações latino-americanas que enviaram tropas para o front penaram mais de quatro mil mortos. Além de criminosa, a intenção do governo Lula é mesquinha. Ela planeja obter o bônus do apoio ao imperialista sem incorrer em qualquer ônus, ao enviar tropas brasileiras apenas após a pacificação da oposição popular ao governo fantoche haitiano imposta pelo tacão militar franco-americano. Os soldados brasileiros desembarcariam num Haiti ocupado, nos próximos meses, apenas para realizar a sórdida e habitual repressão policial da população pobre. Espera-se, portanto, que não corram o risco de envolver-se em combates contra uma eventual resistência popular. Revolução gloriosa A imagem de um Haiti semi-selvagem e incapaz de se auto- administrar é construção racista do imperialismo yankee. O Haiti foi a primeira nação americana a conquistar a independência e o fim da escravidão, através da gloriosa sublevação de sua população escravizada que, semidesarmada, vergou os mais poderosos exércitos da época – francês, inglês e espanhol. Essa saga memorável cumpre seu segundo centenário em 2004, no preciso momento em que a sanha do colonialismo abate-se novamente sobre o pais sofrido. É difícil prever o pulsar profundo de um povo oprimido. No caso improvável, mas não impossível, de que a realidade não corresponda às expectativas, Lula da Silva e seus asseclas não poderão, como o serviçal presidente polonês, invocar terem sido enganados por Bush e Chirac. Lula e seu governo vêm alienando a independência nacional, ao submeter o país incondicionalmente ao capital financeiro mundial e suas instituições. Agora, propõem envolver o exército brasileiro em operação de submissão semi-colonial de uma nação americana. E tudo sob o silêncio de partido que, um dia, se agrupou sob a bandeira vermelha dos trabalhadores das cidades e do campo do Brasil e do mundo. Em defesa do Haiti A eventual participação do Brasil na imposição armada de ordem semicolonial no Haiti manchará indelevelmente as mãos do governo Lula da Silva, do PT e dos partidos da aliança governamental com o sangue do povo haitiano, que já começa a ser vertido pelas tropas imperialistas franco-americanas. Trabalhadores, democratas, as mulheres e os homens de bem do Brasil devem cerrar filas na luta pelo respeito pleno e incondicional do direito de autodeterminação e contra qualquer participação nacional na aventura imperialista, não importando qual bandeira serva de mortalha para o crime que já se perpetra contra o povo haitiano. Sobretudo as direções do movimento negro organizado e a população afro-descendente brasileira devem levantar-se na defesa intransigente desse povo mártir, heróico protagonista no passado da mais radiosa saga libertária americana. Saga pela qual foi e continua sendo punido pelos senhores das riquezas e do poder do passado e do presente. * Mário Maestri é historiador.
https://www.alainet.org/es/node/109656
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