Segurança alimentar e nutricional para todos
19/02/2004
- Opinión
Olinda abriga, entre 17 e 20 de março próximo, a II Conferência
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, promovida pelo Consea
(Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), presidido
pelo sindicalista Luiz Marinho. Além de delegados e observadores,
escolhidos em conferências muncipais e estaduais realizadas em todo
o Brasil, estarão presentes delegações da China, Cuba, Canadá,
México, Argentina e Espanha.
A conferência fará uma avaliação do programa Fome Zero e de outras
iniciativas de combate à desnutrição no país. E terá como principal
objetivo propor ao governo federal um Plano Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional, que abranja os anos de 2004 a 2007.
Preparada desde as bases, a II Conferência teve sua etapa municipal
(ou microrregional ou mesorregional) encerrada em meados de dezembro
de 2003. Os Conseas estaduais reuniram-se até meados de fevereiro
deste ano. O tema da conferência de Olinda - A Construção de uma
Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - terá como
premissas os seguintes temas: 1) Promoção do direito humano à
alimentação e nutrição; 2) Avaliação das ações de erradicação da
fome e promoção da segurança alimentar e nutricional no Brasil; 3)
Novas diretrizes para a política nacional de segurança alimentar e
nutricional; 4) Fortalecimento e mobilização da sociedade civil e do
governo para a erradicação da fome e promoção da segurança alimentar
e nutricional.
Segurança alimentar é um conceito político que surgiu na Primeira
Guerra Mundial, entre 1914 e 1918. País que não se preocupa em
manter estoques reguladores de alimentos, bem como produzir o
necessário para o seu consumo, corre o risco de ficar vulnerável ao
domínio estrangeiro. No Brasil, só nas últimas décadas, graças ao
programa de segurança alimentar e nutricional proposto pelo
Instituto Cidadania, em 1990, e assumido pela figura lendária de
Betinho, através da Ação da Cidadania de combate à fome e contra a
miséria, o tema ganhou corações e mentes.
Há fome em nosso país, não pela falta de alimentos, mas pela
impossibilidade de acesso a eles em quantidade e qualidade
suficientes. Os dados indicam que, no Brasil, cerca de 44 milhões de
pessoas vivem em situação de insegurança alimentar e carência
nutricional. O que se revela, de modo trágico, nos altos índices de
mortalidade infantil, que faz, todo ano, cerca de 150 mil vítimas em
nosso país.
A nossa agropecuária produz o suficiente para nutrir toda a nação.
Não faltam alimentos; falta é renda para que a parcela mais pobre da
população possa adquiri-los. Por isso, ao contrário do que alguns
esperavam, o Fome Zero não se estruturou como uma enorme gincana de
distribuição de comida. Trata-se de um programa de inclusão social,
baseado em políticas de transferência de renda, cujos beneficiários
passam a ter acesso a políticas públicas como alfabetização,
escolaridade, saúde, microcrédito, cooperativismo, saneamento,
moradia, agricultura familiar etc.
Em 2003, o Cartão Alimentação do Fome Zero beneficiou 1.900.000
famílias em 2.329 municípios. Esse cartão foi posteriormente
incluído no Bolsa Família, que unificou as políticas de
transferência de renda do governo federal, atendendo, até 31 de
dezembro de 2003, 3.615.596 famílias, cuja renda mensal saltou da
média de R$ 22,00 para R$ 72,00.
A desnutrição agrava a pobreza, produzindo efeitos irreversíveis,
como a dificuldade de as crianças mal alimentadas assimilarem
conhecimentos; a vulnerabilidade a doenças facilmente tratáveis; o
retardamento mental e a cegueira; os distúrbios glandulares
(crianças obesas em decorrência da desnutrição); a impossibilidade
de desenvolver potencialidades genéticas (pessoas com altura
inferior às suas possibilidades, por falta de nutrientes) etc.
A fome tem, pois, em nosso país, causas estruturais, pois não faltam
ao Brasil terras cultiváveis e recursos hídricos. Falta é efetivar o
Plano Nacional de Reforma Agrária, que visa a assentar 530 mil
famílias em quatro anos, e agilizar os mecanismos econômicos que
reduzam a desigualdade social. Para tanto, a conferência de Olinda
deverá formular políticas de apoio e fortalecimento da agricultura
familiar e da reforma agrária, definir linhas de acesso aos
alimentos, e de educação para o consumo alimentar, bem como a
participação da sociedade na formulação e implementação de políticas
de segurança alimentar e nutricional, programas de geração de
trabalho e renda, e de aproveitamento adequado dos recursos
ambientais, sobretudo os hídricos.
Uma política de segurança alimentar e nutricional sustentável não
pode incorrer no risco de se traduzir em ações assistencialistas ou
emergenciais. Se o governo federal e a sociedade civil organizada
consideram prioridade o direito humano à alimentação, é preciso
aprovar uma lei orgânica capaz de implementar uma política nacional
de alimentação e nutrição que assegure esse direito a cada pessoa,
do nascimento à velhice. Esse o desafio da conferência de Olinda,
onde governo e sociedade estarão debatendo como aprimorar o Fome
Zero - agora monitorado pelo novo Ministério de Desenvolvimento
Social e Combate à Fome - através de mudanças estruturais, de
políticas de transferência de renda e de ações efetivas de educação
cidadã.
* Frei Betto é escritor, autor de "Comer como um frade - divinas
receitas para quem sabe por que temos um céu na boca" (José Olympio)
e Coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero.
https://www.alainet.org/es/node/109446
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