Brasil e Nicarágua
22/01/2004
- Opinión
Estive ligado à Nicarágua desde o início da Revolução
Sandinista. Com Lula, compareci à comemoração do primeiro
aniversário da Revolução, em Manágua, a 19 de julho de
1980. Naquela ocasião, conhecemos Fidel Castro. Entre
1979 e 1988, assessorei a Frente Sandinista na relação
cristianismo e marxismo, bem como em trabalhos de
educação popular.
Muitos fatores contribuíram para o fracasso do
sandinismo. Fatores externos, como a pressão do governo
Reagan, o terrorismo dos "contra" financiados pelos EUA,
a impossibilidade de a União Soviética dar um apoio mais
efetivo, como havia feito com Cuba décadas antes. E
fatores internos, como o progressivo distanciamento entre
os dirigentes sandinistas e o povo, a falta de um
trabalho junto às bases populares, a incapacidade de a
Frente Sandinista articular um conjunto de forças
internacionais para obrigar o governo Reagan a recuar da
agressão à Nicarágua.
Os sandinistas fizeram uma revolução. Lula ganhou uma
eleição. Esta é uma diferença fundamental: Lula não
provocou uma ruptura institucional. Por isso, equivocam-
se aqueles que esperam deste governo atitudes e
resultados próprios de uma revolução. Por ter chegado ao
poder pela via da institucionalidade burguesa, Lula deve
respeitar as regras do jogo democrático, obrigado a
negociar com os poderes Legislativo e Judiciário. Através
de uma ampla coligação partidária, o governo vai criando
as condições para implementar reformas na estrutura
brasileira. Duas aconteceram no primeiro ano de governo:
a previdenciária e a tributária. Neste ano de 2004, a
reforma agrária é prioritária. Iniciam-se também os
trabalhos para operar as reformas trabalhista e política.
Também se articula a reforma do Judiciário.
A prioridade do governo é a área social. Reduzir a brutal
desigualdade entre as classes sociais no Brasil, onde os
10% mais ricos detêm 42% da riqueza nacional, enquanto os
10% mais pobres dividem entre si apenas 0,9% da riqueza.
Somos 175 milhões de habitantes, dos quais apenas 40
milhões freqüentam o mercado de consumo supérfluo. E 44
milhões vivem em estado de miséria e desnutrição.
Por isso, o governo prioriza o programa Fome Zero, que
visa, não apenas erradicar a fome, mas também promover a
inserção social de 11,3 milhões de famílias. Em 2003,
graças à interação entre os programas Fome Zero e Bolsa
Família, este criado para reforçar aquele, foram
beneficiadas 3,61 milhões de famílias. Todas com
condicionalidades ou, se preferirem, deveres, como o
acompanhamento pré-natal das mulheres grávidas, a
assistência à saúde dos recém-nascidos, a alfabetização
dos adultos, a freqüência à escola de crianças e jovens
etc.
Os programas sociais do nosso governo fogem ao caráter
assistencialista. Um programa assistencialista é aquele
em que o beneficiário retrocede em seus direitos sociais
quando o provedor - no caso, o Estado -, deixa de
assistí-lo. O Fome Zero e o Bolsa Família foram pensados
para emancipar as famílias beneficiárias da dependência
do poder público, através dos mecanismos de transferência
de renda e de políticas públicas - como alfabetização,
saúde, escolaridade, cooperativismo, microcrédito etc. -
capazes de criar as condições necessárias para que a
família caminhe da exclusão para a inclusão social.
O desafio do governo, neste ano de 2004, é adequar a
política econômica às prioridades da política social,
gerando empregos, promovendo a reforma agrária,
combatendo a violência. Ao contrário da Nicarágua
sandinista, não temos Reagan pelas costas, mas temos a
dívida externa, que onera os recursos do Brasil; não
temos a agressão dos "contra", mas temos o narcotráfico e
uma situação de violência que resulta em cerca de 40 mil
assassinatos ao ano; não fizemos e nem pretendemos fazer
uma ruptura institucional, mas cabe-nos realizar mudanças
de estruturas para reduzir o impacto, na nação
brasileira, das políticas neoliberais que delegam ao
mercado o papel de único protagonista de conquistas
sociais, como a redução do desemprego.
Queremos, sim, um governo com ampla participação popular,
o que explica o fato de Lula ter criado, em sua
assessoria, um setor de Mobilização Social, no qual
exerço o meu trabalho.
* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto -
Autobiografia Escolar" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/109249
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