Lula, a tábua de salvação das classes dominantes
05/01/2004
- Opinión
Longe de promover mudanças, a gestão do ex-metalúrgico
consolida-se como uma espécie de quarto mandato de
Fernando Collor, buscando aprofundar um programa liberal
que teve início nos tempos do caçador de marajás: redução
do Estado, liberalização financeira, juros altos e
supremacia do mercado. Lula tem o papel de re-legitimar
um modelo rechaçado em toda a América Latina, oferecendo-
lhe face humana. Mais do que constatar a conversão de ex-
esquerdistas ao credo neoliberal, a questão para as
forças populares é o que fazer frente à nova situação.
Passados doze meses, não há mais surpresas e nem falsas
expectativas: o governo Lula apenas representa a
continuidade de uma linhagem iniciada em 1990, com a
gestão de Fernando Collor, interrompida pelo interregno
de Itamar Franco, e prosseguida nos dois mandatos de
Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de dar prosseguimento
à opção de um desenvolvimento capitalista possível a um
país periférico de relativa importância, que se traduz no
que se convencionou chamar de neoliberalismo.
A esta altura, apenas opiniões ingênuas ou claramente
interessadas ainda propagam a falsa idéia de que o futuro
nos reserva uma mudança de orientação na essência dessa
diretriz, consubstanciada na política econômica de mega-
superávits fiscais, juros altos, manutenção do caráter
privado do Estado - materializado no prosseguimento da
política de financiamento barato, via BNDES, às
transnacionais que abocanharam as ex-empresas estatais -
e na subordinação das mal denominadas "políticas sociais"
ao "realismo orçamentário". Em outras palavras, não
resiste à menor reflexão séria a idéia de que este seria
um "governo em disputa" entre as classes dominantes e os
setores populares.
Toda a conduta da atual administração tem sido a de dar
absoluta prioridade ao capital, em suas múltiplas
variantes, penalizando abertamente o trabalho. Os sinais
são claros: vão desde a reforma da previdência, a reforma
tributária, a lei de falências, a liberação dos
transgênicos, até questões aparentemente comezinhas, como
a prostração oficial frente ao lobby das empresas de
cigarro, quando da realização do GP de Interlagos, em São
Paulo. É este o governo que realiza o maior arrocho
fiscal da história, para garantir o pagamento sem sustos
aos credores da dívida pública.
Poder-se-ia alegar que não haveria outro caminho na seara
econômica, tal é a pressão exercida pelos organismos
financeiros internacionais, aliada à vulnerabilidade
externa herdada do governo Cardoso. Se assim fosse, como
explicar posições francamente conservadoras em áreas que
não estão pautadas pela economia, mas pela política, como
a abertura dos arquivos da repressão política da
guerrilha do Araguaia?
Re-legitimando modelo impopular
Qual era o panorama político no segundo semestre de 2002?
As políticas neoliberais do governo Cardoso não
suscitavam mais entusiasmo eleitoral. Suas diretrizes
privatizantes, de redução do Estado, de endividamento e
financeirização, conduziram o País a uma situação de
crise aguda, com deterioração das condições sociais, ao
mesmo tempo em que a economia ameaçava entrar em default,
por não conseguir honrar os pagamentos de seus
compromissos internacionais. O agravamento da situação a
partir de abril de 2002, redundou no virtual estancamento
de financiamentos internacionais para o Brasil, com
devastadoras conseqüências internas. Ao mesmo tempo, a
candidatura que prometia à população mudanças, crescia
aceleradamente nas pesquisas. Em uma palavra, havia um
rechaço popular ao neoliberalismo. (Hoje se vê que a
primeira palavra do discurso de posse de Lula, justamente
"Mudança", representou um enorme erro de revisão. Na
verdade o recém empossado mandatário possivelmente queria
dizer "Mendonça", em homenagem ao seu fiel marqueteiro).
Ao manter e aprofundar a orientação econômica derrotada
nas urnas, Lula e o PT assumiram o triste papel de re-
legitimar uma orientação carente de apoio popular e dar-
lhe novo fôlego. Transformaram-se numa providencial tábua
de salvação para as classes dominantes e para o sistema
financeiro. Com isso, além de empulhar o País, contribuem
para desalentar largas parcelas de nosso povo, provocando
um retrocesso no longo aprendizado político de mais de
duas décadas, que resultou em sua própria eleição. O
presidente sequer procura oferecer à opinião pública
explicações razoáveis sobre sua mudança de rota. Prefere
semear a confusão através do tedioso enunciado de ditos
populares e receituários de auto-ajuda.
Letras miúdas
Os exegetas dos novos inquilinos do Planalto espalham aos
quatro ventos que não haveria desonestidade alguma na
mudança de orientação do partido político que assumiu os
negócios do executivo. Tudo estaria explicitado na famosa
"Carta aos brasileiros", peça divulgada para "acalmar os
mercados" no final do primeiro semestre de 2002. Aqui, o
descaramento faria corar profissionais do gênero, como
impagável vivaldino do Império, o liberal Visconde de
Sinimbu (1810-1907). Os eleitores não votaram num
contrato com letras miúdas, destinado a apaziguar
banqueiros na undécima hora da refrega, mas em 22 anos de
pregação mudancista, de justiça social e de penalização
dos ricos em favor dos mais pobres. Havia um programa
simbólico que foi lançado às favas pelo neopetismo. Sob
este ponto de vista, a rápida virada de casaca da
administração lulista inscreve-se no rol dos maiores
estelionatos eleitorais da história da humanidade.
Mas essas questões não são novidade para qualquer
analista sério da realidade política brasileira. O
difícil é, ao analisar esse quadro, extrair decorrências
políticas mais ou menos definidas.
Chantagem
Há, contudo, uma premissa que deve ser evitada a todo
custo, quando se buscam alternativas ao desalentador -
para os não favorecidos pela artimanhas oficiais - quadro
atual. Embrulhado no papel celofane da cautela política
bem pensante, está na praça uma modalidade de chantagem
das mais rasteiras. É a de que se o governo Lula for
derrotado, estaremos abrindo espaço para a "volta da
direita" e, assim sendo, qualquer ataque à gestão do
campeão das metáforas indiretamente favorecerá o
conservadorismo. Esta ameaça deve ser analisada sob dois
prismas. O primeiro é o de que, ao re-legitimar o
neoliberalismo, Lula passa a ser também o grande
organizador da direita brasileira e dos representantes do
capital financeiro internacional aqui dentro. Ou seja, o
presidente faz as vezes da própria direita, ao ser
cooptado por ela, por mais que se ache a cavaleiro da
situação.
A segunda decorrência é que se, mesmo com todos os ventos
por parte da mídia e do sistema financeiro internacional
soprando a favor, o governo Lula vier a ser derrotado por
partidos de direita, a conta deve ser debitada para quem
frustra as expectativas de mudança e abre espaço para
campanhas demagógicas por parte do conservadorismo. Ou
seja, ao próprio campo majoritário petista.
A questão prática que se coloca é: se o governo Lula se
assume plenamente como o grande articulador dos
interesses do grande capital, o que resta à esquerda
brasileira e aos setores que não se entregaram
alegremente ao canto de sereia do novo situacionismo, com
justificativas de diversos matizes? A questão é nova e
complexa, pois no imaginário popular, quem governa o
Brasil é um partido teoricamente de esquerda.
Com base nessa premissa, é preciso dizer claramente: o
governo Lula precisa ser derrotado em sua estratégia
maior, que é o da continuidade e aprofundamento do modelo
neoliberal. A manutenção de sua política é ruinosa para o
País e, em especial, para os setores populares, que
tiveram uma brutal queda de renda e um aumento do
desemprego no ano de 2002. Isso, aliado ao que se prevê
na reforma trabalhista, implica em profundos ataques aos
trabalhadores. Não há opção a não ser fazer-lhe oposição.
Complicadores
Porém - e sempre tem um "porém", dizia Plínio Marcos - há
vários complicadores na conjuntura. Neste 2004, teremos
eleições municipais. Usualmente o que ocorre em pelejas
dessa natureza é uma despolitização acentuada, em que o
debate dos grandes temas nacionais cede lugar à
micropolítica do asfalto nas ruas e dos postes na
esquina, desconectadas do contexto mais geral. Este
deverá ser o terreno incentivado pelo governo Lula, que
não terá muitas realizações a exibir, sofrendo ainda o
ataque oportunista que a oposição eleitoral encampará,
por força do aumento da crise e do desemprego.
Há cidades em que a derrota de candidatos petistas mais à
esquerda em favor de partidos como PSDB, PFL ou PMDB
trará reais prejuízos à população. Em outras, em que
candidatos do campo majoritário petista estão na disputa,
a situação equivalerá a optar entre seis e meia dúzia.
Que fazer numa situação dessas? Há que se escolher,
lamentavelmente, onde a vitória petista é importante e
onde não é, visando-se um rearranjo das forças políticas
a partir de 2005.
Parte daqueles que não aceitam a nova condução e que se
achavam abrigados no interior do PT estão abandonando o
partido. Alguns têm atuado dessa maneira, sem propor
alternativas. Outros buscam a criação de uma nova
agremiação, tarefa penosa, longa e difícil, ainda mais
num momento em que não há um ascenso significativo das
lutas sociais a vitaminar novas formas de organização.
PT esgotado
O fato é que o PT, como forma de organização dos setores
populares e como agente das transformações sociais no
Brasil, está esgotado. Não há mais disputa possível,
quando o campo majoritário conta com o aparelho de Estado
e com o capital financeiro para definir os encontros e
convenções e quando as relações internas são pautadas, na
larga maioria dos casos, pelo empreguismo, fisiologismo e
subordinação àqueles que detém postos na hierarquia do
poder público. No entanto, para quem ainda está no
partido, a decisão sobre rumos a tomar deve se dar após
as eleições municipais, quando o jogo político puder
acontecer, tirando-se do centro do debate os
particularismos e minudências dos pleitos locais, tendo
como norte a disputa política de rumos para o País. Ou
seja, tanto para quem está dentro, como para quem está
fora do PT, o ano que se inicia será extremamente penoso.
* Gilberto Maringoni é autor de "A Venezuela que se
inventa", Ed. Fundação Perseu Abramo (a sair em
fevereiro)
https://www.alainet.org/es/node/109045?language=en
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