Ética cristã e alimentos transgênicos

23/08/2003
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INTRODUÇÃO

Os alimentos transgênicos vem provocando celeumas e debates na sociedade brasileira, muitas vezes com posicionamentos radicalizados de parte a parte, uns radicalmente favoráveis e outros radicalmente contrários. Grande parte da população assiste atônita ao debate. Alguns crêem tratar-se de assunto exclusivo de especialistas. Trata-se, porém de assunto de interesse público pois seu consumo e suas conseqüências  atingirão toda a sociedade e deve, portanto, ser tema de todos nós.

Este assunto envolve um conjunto grande de implicações de ordem científica, econômica, social, ambiental, sanitária, cultural e ética. O tema é relativamente novo e muitas incertezas ainda o cercam. É, portanto, um desafio à consciência cristã e motivo de reflexão entre o povo de Deus.

CONCEITUANDO TRANSGÊNICOS

"Desta forma, pode-se definir plantas transgênicas (ou OGM) como plantas que têm inserido em seu genoma, uma ou mais seqüências de DNA manipulado em laboratório por técnicas de DNA recombinante ou engenharia genética. Alternativamente, plantas transgênicas poderiam ser definidas como organismos que tiveram seu material genético alterado por métodos que não aqueles naturais, considerando -  como métodos naturais em plantas o acasalamento sexual e a recombinação genética.

"Com o objetivo de confundir a opinião pública, freqüentemente é dito por cientistas que “o homem vem produzindo transgênicos há milênios com a seleção artificial de plantas”. Como é possível perceber pela definição de OGM, ou transgênico, os agricultores que domesticaram as plantas cultivadas ou os melhoristas não conseguiram alterar um genótipo in vivo. Selecionavam sim, as novas combinações (progênies), oriundas da recombinação genética da geração anterior"[1].

MELHORAMENTO GENÉTICO (TRADICIONAL) E TRANSGÊNIA

"Por meio dos métodos de melhoramento, agora chamados de convencionais, novas combinações genéticas são geradas por meio de cruzamentos sexuais entre plantas que apresentam as características consideradas como desejadas. Cruzamentos são feitos entre plantas da mesma espécie e, ocasionalmente, quando a variação genética desejada não existe dentro da espécie, genes são transferidos de outras espécies do mesmo gênero e, muito raramente, de gêneros afins, via introgressão. Das metodologias utilizadas pelo melhoramento de plantas, a introgressão de genes, feita por retrocruzamentos sucessivos do F1 para o genótipo recorrente, é a que mais se assemelha à transgenia, em termos de obtenção de uma nova associação alélica. Contudo, existem muitas diferenças entre ambas.

"Uma das principais implicações da transgenia é o rompimento da barreira sexual. Desta forma, a transformação genética possibilita uma alternativa de introdução de genes em plantas. A rigor, isto implica que, teoricamente, qualquer gene, natural ou sintético, pode ser introduzido numa espécie vegetal. Neste cenário, e considerando-se o ponto de vista científico, duas limitações restringem o uso de genes via transgenia: a criatividade e o julgamento inadequado do valor de um gene, desde que há disponibilidade de tecnologias de isolamento e transformação de uma dada espécie. Esta última limitação refere-se a situações em que o pesquisador não consegue perceber ou não tem informações sobre a utilidade de um gene num programa de melhoramento de uma espécie"[2].

O maior impacto, até o momento do desenvolvimento desta tecnologia, diz respeito à agricultura embora muitos estudos e aplicações na área biomédica. Talvez por isto os Bispos Brasileiros ligados à Comissão Pastoral da Terra, durante a Assembléia Geral da CNBB em Itaici em abril de 2003, conscientes das implicações dos transgênicos na vida do povo brasileiro, principalmente dos pequenos agricultores, emitiram documento – “ Declaração Sobre os Transgênicos” - chamando os cristãos e as autoridades à reflexão. Ao que se saiba, foi a primeira vez que um grupo do Episcopado Brasileiro pronunciou-se sobre tal tema. Servirá, com certeza, de base e provocação para reflexões posteriores no seio da Igreja Católica e de outras denominações cristãs.

RISCOS

A primeira parte da declaração define transgênicos e alerta para seus riscos potenciais:

“ Os transgênicos são resultado de manipulação genética que permite produzir, alterar e transferir genes entre os seres vivos, rompendo a barreira do cruzamento natural entre as espécies, criando, alterando e transferindo material genético entre vegetais, animais, bactérias, vírus e humanos.

Em todo o mundo e também aqui no Brasil muitos estudiosos e também líderes sociais têm levantado, mui oportunamente, sérias preocupações em relação a este assunto. Estas preocupações giram em torno dos seguintes riscos:

1º - Com relação à saúde humana, a ingestão dos grãos geneticamente modificados  podem provocar aumentos de alergias, resistência a antibióticos e a elevação do índice de substâncias tóxicas nos alimentos.

2º - No meio ambiente há o risco da erosão genética, afetando irreversivelmente a biodiversidade, pela contaminação dos bancos naturais de sementes (bancos de germoplasma). Acresce a isto o aumento assustador da monocultura e a conseqüente perda da riquíssima qualidade e variedade das sementes.

3º - É também uma ameaça à soberania alimentar do nosso país, em razão da perda do controle das sementes e dos seres vivos pelo patenteamento dos mesmos, tornados propriedade exclusiva e legal de grupos transnacionais que só visam fins comerciais.

4º - O risco maior, entretanto, ao nosso ver, está na total dependência, na destruição e, finalmente, no desaparecimento da pequena e até da média agricultura por causa do inexorável monopólio mundial da  produção e  comercialização das sementes, que passam para o domínio de um pequeno grupo de gigantescas e poderosas empresas transnacionais”. ( Declaração Sobre os Transgênicos, Bispos acompanhantes da Comissão Pastoral da Terra, Itaici, 06 de maio de 2003).   

Aludem os Senhores Bispos a possíveis riscos. E há, de fato, um conjunto de riscos intrínsecos na manipulação genética em laboratório que permite engenheirar novos genes de interesse e transferí-los por métodos de engenharia  genética para outros seres vivos, rompendo a barreira sexual do cruzamento natural entre as espécies, possibilitando transferir material genético entre seres vivos de espécies e reinos diferentes, amplamente divulgados na literatura científica disponível.

MINIMIZAÇÃO DE RISCOS E EXALTAÇÃO DE VANTAGENS

Os que argumentam favoravelmente à disseminação imediata das sementes transgênicas na produção agrícola e os alimentos transgênicos na cadeia alimentar têm minimizado os riscos ambientais, biológicos, sanitários e alimentares, postulando, principalmente, que as plantas transgênicas  são substancialmente equivalentes em ralação às  variedades convencionais das quais derivam, dispensando, assim, maiores estudos e avaliações em relação aos riscos. Afirma-se categoricamente pela segurança alimentar e ambiental dos produtos advindos da transgenia. Afirma-se que os genes utilizados e as proteínas produzidas são suficientemente estudadas e conhecidas e que não há margens para incertezas ou riscos. Afirma-se mais: que a natureza já faz recombinação de material genético, portanto, transgênicos. Afirma-se também que já se come transgênicos há anos e que até hoje não fez mal a ninguém.

Assim, minimizados os riscos científicos, parte-se para a argumentação das vantagens agronômicas e econômicas. Argumentam que esta tecnologia é necessária para  aumentar a produção de alimentos, para combater a fome no mundo, aumentar a  renda para os agricultores,  diminuir do uso de agrotóxicos e  facilitar o manejo de ervas daninhas e controle de insetos. Argumenta-se também que se trata de avanço científico e tecnológico e qualquer posicionamento crítico é imediatamente qualificado de atrasado e desconsiderado a priori.

NOVA FRONTEIRA DA CIÊNCIA

Como constatam os Senhores Bispos, estamos diante de uma nova fronteira da ciência e da tecnologia, como bem definem os pesquisadores Rafaela Di Sabatto Guerrante, Adelaide Maria de Souza Antunes e Nei Pereira Ir:

“A partir da década de 70, com o desenvolvimento da engenharia genética e a conseqüente descoberta da tecnologia do DNA recombinante, foi possível ultrapassar a barreira das espécies. Por meio desta tecnologia, é possível modificar diretamente o genoma de um determinado organismo, seja pela introdução intencional de fragmentos de genes exógenos, que possuem função conhecida, seja pela eliminação de genes do organismo manipulado, ou até mesmo pelo  remanejamento dos próprios genes do organismo-alvo.

Com o uso de técnicas de engenharia genética, o gene que contém a informação para a síntese de uma determinada proteína de interesse pode ser transferido para outro organismo, que, então, produzirá a proteína desejada. Estes conceitos têm definido e delimitado o que se denomina ´biotecnologia moderna`, diferenciando-a da ´biotecnologia clássica`”.[3] ( Transgênicos: a difícil relação entre a ciência, a sociedade e o Mercado, In, Bioética e Biorrisco).

AVALIAÇÃO CRITERIOSA

Na avaliação do nível de incerteza científica  não podemos desconsiderar três fatores essenciais na questão dos transgênicos: a) o método de inserção dos genes de interesse na estrutura genética do ser vivo modificado ( normalmente utilizados biobalística ou vetor viral); b) as interações ecológicas no meio ambiente; c) o fato de tratar-se de um “pacote tecnológico” e não apenas de uma modificação genética isolada – a planta transgênica interage com agrotóxicos nela aplicados ou por ela produzidos.

E sobre tudo isto há ainda poucos estudos, poucas pesquisas, e quando as há, aumentam o nível das preocupações em relação aos alimentos geneticamente modificados. Por isto que certas afirmações categóricas sobre a ausência de risco, ausência de incertezas científicas e propaladas vantagens deveriam ser mais cuidadosas, pois são afirmações sobre algo que pouco se sabe. As pesquisas sobre biossegurança, sobre os efeitos dos transgênicos no ambiente e sobre a associação entre transgênicos e agrotóxicos não foram realizadas de forma rigorosa e abrangente até o presente momento.

Uma avaliação séria e profunda da questão impõe três linhas de reflexão: os riscos não podem ser minimizados ou abstraídos, a incerteza científica não pode ser desconsiderada  e as vantagens econômicas e sociais para o conjunto dos agricultores e para as sociedades, especialmente para os países pobres ou em desenvolvimento, não são tão evidentes como alegam os defensores da tecnologia. Pelo contrário: pode aumentar a dependência tecnológica, a dependência econômica, a concentração de terras e renda, as monoculturas, o êxodo de pequenos e médios camponeses e a miséria nos campos e nas cidades.

Alguns elementos concretos, fáticos, apontam para a necessidade de análise séria dos riscos:

-       Reações alérgicas já comprovadas com a ingestão de alimentos transgênicos[4];

-       Contaminação de banco genético de sementes básicas já comprovado com o milho do México, maior centro mundial de origem desta cultivar, o que dá a idéia, junto com outros fatos semelhantes, dos possíveis impactos ambientais desta tecnologia[5];

-       Imprevisibilidade científica comprovada com a constatação da presença de seqüências extras de DNA ( 534 pares de base) na soja transgênica da Monsanto (Roundup Ready), imprevistas e indesejadas. O fato desmonta os argumentos científicos da total segurança da tecnologia.( Nodari & Guerra in Bioética e Biorisco.)

-       Os instrumentais científicos de acompanhamento, avaliação e controle de riscos estão, ainda, muito pouco desenvolvidos. Avançou a bioengenharia mas a biosegurança ainda engatinha e esta é essencial para  população.

-       Concentração de patentes sobre produtos transgênicos controladas por um pequeno grupo de grandes empresas transnacionais[6].

IMPACTOS SOCIAIS E ECONÔMICOS

Por outro lado, a não evidência das propaladas vantagens agronômicas e econômicas. O mais provável é o desencadeamento de um conjunto de mecanismos para maior controle e monopólio de poucas empresas sobre o conjunto do complexo agro-alimentar, provocando uma nova onda de seleção e exclusão, aumentando a concentração da terra, da renda, dos recursos  tecnológicos e dos meios de produção; novas ondas de monoculturas em extensas regiões do planeta com todas as suas mazelas de descontrole e aumento desordenado de insetos indesejados, fungos, plantas concorrentes, perda da biodiversidade e dos mecanismos naturais de controle biológico, contaminação das águas, do ar, do solo e dos alimentos.

A transgenia coloca nas mãos das grandes empresas e dos grandes empresários novos e poderosos instrumentos de controle econômico e tecnológico: patenteamento de genes, patenteamento de processos de construção gênica, patenteamento de processos de transferência genética, controle de processos associados entre  genes inseridos e produtos químicos, patenteamento de processos de obtenção de princípios ativos com fins comerciais existentes na biodiversidade dos países pobres (pilhagem do patrimônio genético dos pobres pelo monopólio científico e legal das grandes empresas dos países ricos), patenteamento de tecnologia terminator ( capaz de produzir grãos estéreis para que os agricultores não possam reproduzir suas sementes), domínio e patenteamento da tecnologia traitor ( capaz de controlar a  expressão de genes responsáveis por funções específicas nos seres vivos – crescimento, granificação, por exemplo - e condicioná-los a certos produtos químicos para o seu desenvolvimento obrigando os agricultores a adquirir estes produtos para verem suas plantas ou animais se desenvolverem), produção de herbicidas com propriedades gameticidas ( morte do gameta, matando a capacidade reprodutiva das plantas, impedindo a polinização e a reprodução de novas sementes), cobrança de royalties – taxa tecnológica – pelo uso de sementes e produtos patenteados  e outros tantos meios. O simples patenteamento de seres vivos já ofende a consciência humana pois a natureza é um bem de uso universal e para os cristãos, Dom gratuito de Deus. Mas o que estamos assistindo e vamos assistir caso deste modelo tecnológico venha a tornar-se hegemônico é um arsenal de instrumentos econômicos, legais, científicos e  tecnológicos manipulando seres vivos em função de objetivos comerciais e da sede de lucro de poucas empresas, chegando ao ápice com a produção de grãos estéreis ( tecnologia disponível ainda não aplicada) para obrigar os agricultores a comprar todos os anos as sementes das grandes empresas. Não só a dependência econômica, comercial e tecnológica resultante deste domínio científico, mas os impactos ecológicos presumíveis deste grau de intervenção no ciclo normal da natureza – e suas conseqüências sociais -  devem levar a uma profunda avaliação política e ética da questão.

Mais uma vez, eliminar a fome do mundo, será o argumento moral para justificar fins que nada tem a ver com este objetivo. Aliás, trata-se de um mito reciclado, já utilizado para implantar a primeira e a segunda   fase da revolução verde. Embora vários avanços obtidos, as conseqüências sociais, ambientais e econômicas da revolução verde colocam a agricultura mundial a beira da insustentabilidade no médio prazo. E a fome não foi debelada, ao contrário. Agora as mesmas empresas que concentraram capital com a revolução verde vem usar do mesmo argumento para impor uma nova fase tecnológica  na agricultura. Entre as principais razões da fome no mundo não está o domínio de tecnologias, ao contrário, está na destruição das formas camponesas de produção, na perda da autonomia produtiva dos agricultores, na falta de políticas públicas de apoio aos agricultores, na concentração da renda e da terra e na falta de emprego. Com o desenho estrutural da agricultura na fase da transgenia, estes fatores tendem a piorar e não reverter, do que se deduz, que a fome aumentará. Além da qualidade  e da variedade dos alimentos piorar significativamente, quando não,  ameaçar seriamente a segurança alimentar da população.

Os pesquisadores Miguel Altieri ( University of California) e Peter Rosset ( Institute for Food and Development Policy)  contrapõe argumentos sólidos à esta afirmação de que a produção de transgênicos servirá para combater a fome no mundo. Segundo eles  a) a biotecnologia de laboratório não tem o poder de uma vara mágica para resolver todos os problemas da agricultura; b)  não há relação entre a ocorrência freqüente de fome num dado país e sua população, pois o mundo produz hoje mais alimento por habitante do que nunca antes; c) a maioria das inovações tecnológicas da biotecnologia de laboratório tem sido dirigidas para obter mais lucros das grandes empresas do que impulsionadas para resolver problemas concretos da população ( o principal exemplo são os atuais cultivos transgênicos disponíveis no mercado voltados à resistência a agrotóxicos e a produção de inseticidas pelas próprias plantas e não a aumentar a produtividade ou a adaptar-se a dificuldades climáticas ou de solo ao desenvolvimentos de certos cultivos); d) a tendência expressa até aqui é de maior monopolização do mercado de sementes e alimentos e maior dependência da produção aos produtos químicos e maior dependência dos agricultores às grandes indústrias, fragilizando  social e culturalmente as comunidades camponesas, principais sujeitos da soberania alimentar dos povos pobres; e) a homogeneização em larga escala dos cultivos transgênicos  agravará os problemas ecológicos já associados às monoculturas agrícolas, aumentando os impactos sociais e ambientais em curto e médio prazo.

Cabe ressaltar ainda que a transgenia não tem poder de realizar milagres agronômicos. A produção e a produtividade dependem de inúmeros fatores, principalmente do manejo adequado do solo e do respeito ao equilíbrio dos agro-eco-sistemas. As tecnologias agrícolas de base ecológica ( agricultura orgânica, agricultura biodinâmica, agricultura natural, agrosilvicultura, permacultura, agroecologia, etc)  fornecem alternativas mais interessantes, mais sustentáveis, melhor qualidade dos alimentos, mais justiça social e utilização sustentável dos recursos naturais no longo prazo. Combaterá a fome com mais eficácia do que a agricultura química e transgênica das transnacionais. O mais provável é que a busca de solução para os problemas, impasses e esgotamentos  da agricultura moderna e química da revolução verde não se encontram na radicalização do modelo apresentada pela biotecnologia de laboratório apregoada pela grandes transnacionais do setor. Talvez sejam “magni passi, sed extra viam” ( grandes passos no caminho errado) e o caminho de solução esteja na pesquisa, disseminação, aplicação e desenvolvimento de um modelo tecnológico agrícola de base ecológica.

IMPLICAÇÕES TEOLÓGICAS   

Há também um conjunto de implicações teológicas envolvendo este domínio humano do conhecimento científico e tecnológico, principalmente no que tange a suas aplicações massivas nas comunidades humanas e no meio ambiente.

Cabe-nos, mais do que um posicionamento taxativo e conclusivo, uma reflexão teológica  sobre a questão.

O cristão defende a vida em todas as suas dimensões como obra prima da criação de Deus e centro da missão salvadora de Jesus Cristo, como imperativo Evangélico e como sinal de seguimento no Caminho do Mestre de Nazaré : Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância ( Jo 10, 10).

Já vemos no Livro do Gênesis que ao concluir a obra da criação Deus viu que tudo era bom. A natureza saiu das mãos do Criador com mecanismos intrínsecos de auto-regulação e auto-equilíbrio. A moderna teoria da evolução da fantástica teia da vida e da interação dos processos vitais não contradiz a teologia da criação, apenas nos faz refletir de maneira mais profunda sobre o mistério da ação de Deus na Obra da Vida. A concepção secular de ecologia – inclusive errigindo-se como a ciência das ciências - não contradiz o conceito teológico da Integridade da Criação. O que não podemos é entendê-los de forma estática, mas de forma dialética e dinâmica.

E vemos nos milagres de Jesus Cristo a mensagem central de restauração nas pessoas da Integridade da Criação. A taumaturgia Jesuânica restitui capacidades inerentes à perfeição criada por Deus: os cegos vêem, os coxos andam, as chagas desaparecem, as doenças são curadas, os distúrbios mentais são superados, produtos da natureza ( pães e peixes ) se multiplicam para matar a fome do povo e situações de morte se transformam em vida.  Os milagres de Jesus sinalizam a restauração da natureza degradada e mostram que isto é parte fundamental de sua missão salvífica.

Deus deu à inteligência humana a possibilidade de intervir no mundo criado para dele servir-se para manter a vida humana na terra, mas o rompimento do equilíbrio da mãe natureza tem trazido conseqüências funestas para os seres humanos. Até que ponto as novas tecnologias de laboratório – especialmente a transgenia, ao ultrapassar a barreira sexual do cruzamento natural entre as espécies - rompem com a Integridade da Criação em aspectos que possam ser defensáveis em termos de ética cristã é algo que precisa ser estudado com profundidade. Não estaríamos andando na direção contrária da missão Salvífica de Cristo, ao invés de restaurar, aprofundando  as rupturas já provocadas no equilíbrio ambiental e social da Mãe Natureza? Ou, em que situações especialíssimas, este domínio do conhecimento humano poderia ser utilizado para cumprir este desígnio divino?

O livro do Gênesis insiste de maneira  intrigantemente profética que Deus criou os vegetais, os animais e os humanos e ordenou-lhes que se reproduzissem cada qual de acordo com a sua espécie. “E Deus disse: que a terra produza seres vivos segundo sua espécie; animais domésticos, répteis e feras segundo sua espécie – e assim se fez. Deus fez as feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isto era bom” (Gn 1, 24-25) A transgenia traz a possibilidade, pela primeira vez na história da humanidade, de romper esta barreira sexual e recombinar, alterar e transferir em laboratório – através da tecnologia do DNA Recombinante -  genes, material genético e seqüências genéticas entre espécies e até entre reinos ( animal, vegetal, vírus, bactérias, serem humanos) diferentes. O que a natureza construiu  em bilhões de anos de história natural,  registrada magistralmente  no simbolismo do relato da criação no Gênesis, com seus mecanismos e barreiras naturais de auto-proteção, pode ser hoje manipulado e ultrapassado através técnicas de engenharia genética.

Na pregação de Jesus a simbologia da semente aparece muitas vezes e é a boa semente que cai em terra boa que dá bons frutos. Mas é preciso estar atento à ação da má semente, do joio, que pode contaminar o trigo (Mt 13, 24-30). Proteger a boa semente e plantá-la em terra boa é parte integrante da ação evangelizadora da Igreja (Mc 4, 1-8). O que dizer, em termos de ética cristã, da possibilidade de uso de sementes estéreis, sementes condicionadas a determinados agroquímicos, contaminação de bancos genéticos tradicionais e de herbicidas gameticidas com tecnologia patenteada em poder de grandes empresas transnacionais?

A Teologia e a Mística Cristã nos ensinam a ver e contemplar a Mãe Natureza como Dom de Deus a todos os seus filhos e a com ela conviver num ambiente de fraternidade, chegando São Francisco de Assis a exclamar no Cântico do Irmão Sol: “ Louvado sejas meu Senhor pelo Irmão Sol, pela Irmã Água, pelo Irmão Vento, pela Irmã e Mãe Terra...”

Como encarar, em termos de Ética Cristã,  a instrumentalização da natureza com fins comerciais, descoberta e manipulação de suas potencialidades sem o devido respeito às suas complexas interações ecológicas, com o fim imediatista do lucro? Como encarar a apropriação privada – através do patenteamento, tecnologias de controle da expressão de genes e outros meios legais – de seres vivos e de fontes da vida, como a água, genes, microorganismos, princípios ativos biológicos, processos vitais? E como se posicionar, do ponto de vista dos princípios cristãos, diante da expropriação do conhecimento, do melhoramento genético tradicional, das sementes crioulas, dos bancos genéticos naturais, da agrobiodiversidade agrícola camponesa e indígena, gerida de forma comunitária  e generosa como patrimônio da humanidade durante mais de 12 mil anos e agora ameaçada de se tornar propriedade privada de uma fantástica concentração empresarial, monopolizando estes meios de subsistência da humanidade?

POSIÇÃO DE JOÃO PAULO II

O Papa João Paulo II têm se manifestado a respeito destas questões. Na mensagem para a quaresma da 2002, assim se expressou  o Sucessor de Pedro:

“Recebestes gratuitamente. Não será por acaso a nossa existência totalmente marcada pela benevolência de Deus? O desabrochar da vida e o seu prodigioso desenvolvimento é um Dom. E, precisamente por ser Dom, a existência não pode ser considerada como domínio ou propriedade privada, ainda que as potencialidades, de que hoje dispomos para melhorar sua qualidade, poderiam fazer supor o contrário, ou seja, que o homem seja o seu . De fato, as conquistas da medicina e da biotecnologia poderiam às vezes levar o homem a imaginar-se criador de si próprio, e a ceder à tentação de manipular a (Gn 3,24).

Vale a pena reafirmar aqui que, nem tudo aquilo que seja tecnicamente possível, é lícito moralmente. Se é louvável o avanço da ciência por garantir qualidade de vida mais em consonância com a dignidade do homem, jamais deve ser esquecido que a vida humana é um Dom, e que permanece sendo um valor, mesmo quando é atingida pelo sofrimento e  ancianidade”.

Falando na IX  Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida, assim se expressou o Papa:

“ A Igreja respeita e apoia a investigação científica, quando procura uma orientação autenticamente humanista, evitando qualquer forma de instrumentalização ou destruição do ser humano e mantendo-se livre da escravidão dos interesses políticos e econômicos” ( A Ética da Investigação Biomédica. Para uma Visão Cristã. Comunicado final da IX Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida).

Nestas duas alocuções o Papa João Paulo II estabelece parâmetros teológicos e éticos claros e seguros para orientar os cristãos no tratamento destas questões: a)  a vida e seu prodigioso desenvolvimento é um Dom  b) existência  não pode ser considerada domínio ou propriedade privada e o homem não é dono dela; c) as conquistas das ciências biológicas não devem levar o ser humano a ceder à tentação de manipular a “árvore da vida”; d) a ética está acima da ciência e da técnica pois  nem tudo que é tecnicamente possível é moralmente lícito; e) a Igreja respeita e estimula a investigação científica  com orientação humanista; f)  reconhece os avanços da ciência para melhorar a qualidade de vida e a dignidade humana; g) o avanço da ciência não pode servir para instrumentalização do ser humano nem para escravizá-lo ( torná-lo dependente) de interesses políticos e econômicos.   

O PRIMADO DA ÉTICA

Os Senhores Bispos da CPT em Itaici, lembraram  quatro exigências éticas para nortear a  reflexão e a prática cristã em relação aos cultivos e alimentos transgênicos:

“ O princípio da não-maleficência implica no nosso dever de evitar ou impedir o mal ou dano aos outros. No caso de introdução massiva de novas tecnologias que impliquem riscos potenciais à saúde, este princípio deve estar plenamente garantido por informações claras e seguras.

O princípio da justiça social, em casos de inovações tecnológicas massivas e de alto impacto social, leva-nos a perguntar sobre quem vai ser beneficiado e  quem vai ser prejudicado. Ora, no caso concreto dos transgênicos é claro que um pequeno grupo de grandes empresas serão as grandes beneficiadas, com grave dano para a agricultura familiar.

O princípio da justiça ecológica impõe o dever de preservar o meio ambiente para as gerações atuais e futuras. Os transgênicos podem representar sério risco ecológico.

O princípio da precaução exige que antes da liberação de qualquer produto para o consumo humano, sejam adotadas severas normas de biosegurança. Não se trata de travar a ciência ou a pesquisa, nem de provocar medo paranóico perante o novo. Pelo contrário, defende-se o mais amplo espaço para a ciência e a pesquisa, orientadas, porém, para o bem comum. As aplicações tecnológicas que impliquem riscos potenciais de grande envergadura, sejam decididas, aprovadas, negadas ou aperfeiçoadas a partir de decisões democráticas e sob controle do povo” ( Declaração sobre os Transgênicos, Itaici, 06/05/2003).

Os Senhores Bispos vão ao centro nevrálgico da questão: sobre os interesses econômicos, sobre vantagens imediatistas, sobre uma pretensa auto-determinação e até certa prepotência das ciências experimentais, há que se colocar o primado da ética, não como limite para a investigação, mas  como limite da aplicação, especialmente, aplicação massiva, confrontando-a com as necessidades reais do conjunto da população, o cuidado com a natureza e nossa responsabilidade com sua sustentabilidade atual e futura.

Podemos aqui, à guisa de aprofundamento, destacar a importância do princípio ético da beneficência, do princípio da  transparência,  uma explicitação maior do princípio da precaução e a não aplicabilidade do princípio do mal menor e do princípio do duplo efeito.

O princípio da beneficência nos coloca diante de situações em que a beneficência de um determinada intervenção na natureza ou no ser humano, se justifique, pelo bem que possa fazer, ou até, pela única possibilidade de salvar vidas ou combater problemas crônicos: doenças, fome, epidemias, endemias, etc. Nestes casos, se a transgenia é um dos únicos caminhos, ou o melhor disponível, ou outra circunstância especial, seu uso pode ser justificado. É o caso dos medicamentos de origem na biomedicina, utilizando a tecnologia do DNA Recombinante. Ressalte-se que a comercialização de um medicamento envolve longo processo de testes, controle e está direcionado a um público específico, os acometidos de uma determinada enfermidade e com acompanhamento médico personalizado. Qualquer efeito adverso ou reação colateral, levará à suspensão do medicamento e sua aplicação se circunscreverá  ao período de duração da enfermidade. Não é o que  acontece com os alimentos transgênicos, pois seu consumo é massivo e indiscriminado, o acompanhamento é precário ou inexistente e não há sequer instrumental técnico, médico ou legal para estabelecer possíveis relações de causa e efeito entre seu consumo e presença de enfermidades. Por isto que, do ponto de vista ético, quando tratamos de medicamentos transgênicos prepondera o princípio da beneficência e quando tratamos de alimentos transgênicos prepondera o princípio da não-maleficência,  explicitado, detalhado, normatizado e aplicado através do princípio da precaução.

O princípio da transparência exige  o máximo de informações à população antes da introdução massiva de tecnologias de alto impacto e mecanismos de decisão democrática sobre elas. As grandes empresas usam de outro método: o fato consumado, com o mínimo de informação e máximo de propaganda sobre possíveis vantagens. Além disto, uma vez disponibilizadas comercialmente, numa sociedade de consumo de massas como a em que vivemos, tem o consumidor o direito de escolha, por razões religiosas, filosóficas, culturais, éticas ou por recomendação médica. Isto exige a rotulagem total de alimentos provindos da transgenia. E por duas razões fundamentais: direito de escolha e diagnóstico médico. 

Dado o fato de que alguns  alimentos transgênicos já estão no mercado e dadas às dúvidas existentes sobre eles, não basta tratar a rotulagem como direito de escolha, mas também como questão de saúde pública. A rotulagem é essencial ao diagnóstico médico para estabelecer ou negar possíveis relações de causa e efeito entre aumento de enfermidades, novas enfermidades, reincidência de enfermidades e alimentos transgênicos ou produtos químicos a eles associados.

O princípio da precaução, tratado na maioria das elaborações da bioética como uma decorrência do princípio da não-maleficência, adquire especial destaque e grande autonomia na reflexão ética sobre os produtos transgênicos, sendo já incorporado na legislação de vários países e no direito internacional através do Protocolo de Cartagena. Este princípio implica:

-         o ônus da prova cabe ao proponente da atividade, isto é, cabe à empresa que propõe a liberação do transgênico no meio ambiente provar e garantir a segurança alimentar e ambiental do produto que está colocando no mercado;

-         a não evidência imediata de possíveis danos não devem servir de  motivo para adiar ou não realizar pesquisas e testes rigorosos de biossegurança. A ausência de evidência não é necessariamente evidência de ausência. A incerteza científica passa a ser considerada na avaliação de risco. O risco de que o dano possa ser irreversível ou grave já é suficiente para que não se adiem medidas efetivas de proteção ao ambiente e à saúde da população;

-          na avaliação de risco, um número razoável de alternativas devem ser avaliadas e comparadas antes de se optar pela utilização massiva de tecnologias de risco;

-         para ser precaucionária, a decisão deve ser democrática, transparente, informada e consciente com a participação de todos os interessados. Não pode ser imposição totalitária de uma empresa ou de um único setor da sociedade.

Não cabem, pelo menos ao se tratar de liberação massiva e indiscriminada de alimentos transgênicos, neste momento histórico, a aplicação do princípio do mal menor (quando colocado diante da encruzilhada existencial ou histórica de ter que optar entre dois males, opta-se pelo mal menor )   e do princípio do duplo efeito (uma opção ética determinada pode conter dois efeitos simultâneos, positivo e negativo, mas o efeitos positivos são de tal envergadura que compensam e justificam a opção), que se pode deduzir de algumas argumentações levando-nos a raciocinar que estamos diante das seguintes alternativas: transgênicos ou fome; transgênicos ou atraso científico. Em nenhuma situação e em nenhum momento, nesta fase da história humana, estamos diante deste tipo de alternativa, até porque o problema da fome não está diretamente ligada a  falta de oferta de alimentos, mas ao baixo poder aquisitivo da população faminta e há indicações poderosas de que o verdadeiro avanço científico com qualidade de vida , justiça social e respeito à natureza está na pesquisa, desenvolvimento  e popularização de tecnologias brandas e ecológicas aplicadas à produção agropecuária. Estes princípios se  aplicariam, por exemplo, se estivéssemos diante de uma epidemia e um produto transgênico, mesmo com riscos potenciais, poderia ser a alternativa para combater a tal epidemia.

IN DUBIO

In dubio, pro natura.

In dubio, pro salute.

In dubio, por popolo.

In dubio, por vita.

Na profunda incerteza científica que hoje envolve os alimentos transgênicos, diante dos riscos potenciais para a saúde e o meio ambiente e diante dos possíveis impactos sociais sobre as formas camponesas de agricultura, a humanidade deve valer-se do benefício da dúvida. E na dúvida, devemos decidir,  enquanto perdurar a dúvida, em favor da natureza, em favor da saúde, em favor do povo e em favor da vida.

Frei Sérgio Antônio Görgen ofm

Tupanciretã, 24 de agosto de 2003.


[1]  Nodari R. O. e Guerra M. P. 2001. Avaliação de Riscos Ambientaais de Plantas Transgências. Trabalho pulicado em Cadernos de Ceência & Tecnologia, Brasília, v. 18, n. 1, p. 61-116.

[2] Idem citação anterior.

[3] Vale S. e Telles J. L. 2003. organizadores de BIOÉTICA E BIORRISCO, 417p.. Editora Interciência

[4] FAGAN J. 2000. Avaliando a Segurança e a Qualidade Nutricional dos Alimentos Transgênicos. Rede T.A. Sul e Rede Ecovida.Erechim.

[5] ITA A. de. 2003. Impatos del libre Comercio, Plaguicidas y Transgênicos em la Agricultura de América Latina. 347 p. Editores Fernando Bejarano y Bernardino Mata.

[6] MOONEY P. 2002. O SÉCULO 21 Erosão, Transferência Tecnológica e Concentração do Poder Empresarial. 224 p. Editora Expressão POPULAR.

https://www.alainet.org/es/node/108349?language=en
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