As lentes sobre Cuba
07/09/2003
- Opinión
O debate sobre Cuba costuma ser um debate viciado. Nenhum
tema, na grande imprensa, é tão unanimemente condenado pelos
editoriais e colunistas quanto o regime cubano. Diante disso,
as posições se bifurcam inevitavelmente: a favor ou contra.
Simplesmente porque a polarização se dá entre capitalismo e
socialismo – mais além da concordância ou não com o modelo
cubano.
Recentemente Eduardo Galeano escreveu o artigo "Cuba dói",
grande parte do qual era para condenar os EUA, para ao final
criticar Cuba pelas execuções de abril deste ano. Nenhum
jornal brasileiro publicou o artigo, mas vários destacaram
apenas as frases de crítica. Os leitores ficariam sem saber
por que Galeano assinou o manifesto contra qualquer tipo de
intervenção em Cuba – se o manifesto fosse publicado, assim
como seus subscritores.
Esse é apenas um exemplo da forma como a chamada "grande
imprensa" trata a Cuba. Mas o problema maior não é o que ela
escolhe dizer e sim o que deixa de dizer, as mentiras do
silêncio. Foi inevitável mencionar que Cuba tem um Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) melhor que os do México e do
Brasil, por exemplo, situando-se inclusive numa categoria
superior àquela em que se encontra o nosso país, apesar da
renda per capita significativamente mais baixa de Cuba. Essa
classificação não serviu, por exemplo, para que se
desmentisse as reiteradas observações que tratam de calcular
os salários em Cuba em termos de dólares, para dizer, por
exemplo, que um médico cubano morreria de fome, ao ganhar o
correspondente a 20 dólares. Nenhuma palavra, de nenhum
editorial, nem de nenhum colunista, daqueles que pintam a
Cuba como uma ilha de miséria, um regime em fim de linha.
Mas para explicar esse fato teriam que tocar em algo que está
sempre ausente dessa imprensa – trata-se de uma sociedade
socialista e não capitalista. E, dessa forma, grande parte do
que é pago com os salários aqui, lá é computado como salários
indiretos – incluindo educação e saúde, de alta qualidade,
grátis, propriedade da casa, etc. O IDH da ONU computa o
poder de compra local dos salários e ai fica claro que esse
poder é bem mais alto em Cuba do que no Brasil ou no México.
Essa referência vale para explicar porque qualquer discussão
sobre Cuba nessa imprensa é viciada, seja pela pauta restrita
que escolhem – execuções e nunca desemprego, por exemplo -,
seja pela desinformação em que mantêm os leitores, o que
impede que nos espaços curtos dedicados ao tema, seja
possível dar toda a informação indispensável que é
reiteradamente sonegada aos leitores.
Assim as posições em relação a Cuba tendem a se polarizar
radicalmente. A direita se recusa a reconhecer as conquistas
sociais da revolução cubana e os que, na esquerda, se limitam
a uma discussão sobre o sistema político – quando não apenas
sobre as execuções – recaem numa visão reducionista do
problema. Não conseguem explicar, por exemplo, porque todos
os regimes de modelo soviético do leste europeu caíram e o
regime cubano sobreviveu. Não conseguem explicar como o povo
cubano sai reiteradamente às ruas nas maiores manifestações
populares de apoio a um governo que o mundo contemporâneo
conhece. Tudo isso porque não conseguem entender a realidade
concreta de Cuba – com seus problemas e suas virtudes, seus
erros e seus acertos.
Roberto Fenandez Retamar, diretor da Casa de las Américas,
costuma dizer que Cuba não é nem um inferno, nem um paraíso,
mas o melhor dos purgatórios possíveis. O que isto quer
dizer? Que um pequeno país produtor de açúcar do Caribe, a
cerca de 140 quilômetros da maior potência imperial da
História, solitário depois do fim do então chamado "campo
socialista", de cujo planejamento econômico o país fazia
parte, constrói o tipo de sociedade mais justa que consegue,
num mundo hostil, porque dominado pelos princípios opostos
daqueles que presidem a sociedade cubana: um mundo em que
tudo é mercadoria, em que tudo se vende e tudo se compra.
Cuba fez uma revolução democrática, para derrubar uma das
tantas ditaduras da região, apoiadas pelos EUA, porém o
enfrentamento com o governo norte-americano – que saiu em
defesa dos interesses das empresas desse país – levou, não à
queda ou à capitulação do novo governo cubano – como era
regra na área -, mas à adoção de uma dinâmica antimperialista
e anticapitalista, que gerou a instalação de um regime
socialista em Cuba. A polarização revolução/contrarrevolução,
em tempos de "guerra fria", levou à integração de Cuba ao
"campo socialista", com adoção de seu sistema político –
justificado na Ilha também pela necessidade da unidade
interna contra as reiteradas agressões dos EUA.
A combinação desses elementos permitiu a Cuba construir o
sistema social mais avançado e justo do mundo, paralelamente
a um sistema político com os problemas do modelo soviético –
partido único, fusão de Partido com o Estado, com todas suas
decorrências. Qualquer discussão sobre Cuba tem que partir
do estabelecimento das condições do surgimento da revolução –
não para justificar tudo o que se faça ali, mas para entender
sua gênese e seu significado -, das conquistas dessa
revolução, para somente a partir daí discutir os problemas
que vive Cuba. Isto para os que querem se diferenciar das
críticas da direita, que se nega a reconhecer os avanços
fundamentais de Cuba e de onde provêm os seus problemas.
Quem acredita que os problemas de Cuba provêm do socialismo,
está pensando a realidade de cabeça para baixo. O que Cuba
tem de melhor vem do socialismo, do planejamento econômico,
do término da propriedade privada dos meios de produção, da
universalização dos direitos sociais, da afirmação da
soberania nacional diante do imperialismo, da maior
solidariedade internacional que um país tenha prestado a
outros – Cuba tem mais médicos trabalhando gratuitamente nos
países mais pobres do mundo do que a Organização Mundial de
Saúde. Cuba é um exemplo claro, antes de mais nada, que um
país pode ser justo sem ser rico – para o que necessita de
outra forma de produção e de distribuição de riquezas que
aquela comandada pela lógica da maximização dos lucros e da
exploração do trabalho.
Os problemas de Cuba vêm do bloqueio econômico que sofre há
mais de quarenta anos por parte dos EUA, vem de um mundo
hostil aos princípios solidários e humanistas do socialismo,
vem do cerco, que leva Cuba a adotar um regime rigidamente
unificado para se defender dos ataques do Império. Cuba
consolidou sua posição quando viu a Nicarágua convocar
eleições e abrir seu regime político, para que os
nicaragüenses votassem sob a chantagem do governo norte-
americano e não livremente. Vem também da adoção de um
sistema político inadeqUado para expressar a rica diversidade
que uma sociedade socialista como a cubana produz e reproduz,
que é uma de suas conquistas e não seus defeitos.
Cuba vive muitos problemas, de distinto caráter. As próprias
execuções – que alguns insistem em tomar como ponto central
para analisar a Cuba, numa visão influenciada pela ótica da
grande mídia – revelam isso. É perfeitamente possível
defender o direito de Cuba de decidir seus próprios destinos
e estar contra as execuções.
Cuba não poderia avançar na construção do socialismo, num
mundo hostil, mercantilizado. O que Cuba trata de fazer é não
retroceder, valendo-se de políticas que garantem o ingresso
de divisas, mesmo com os problemas que elas implicam –
turismo, remessa de divisas de famílias no exterior. A
alternativa seria a incapacidade do regime de atender suas
necessidades básicas de reprodução. Enquanto sofre o bloqueio
e as ameaças norte-americanas, as demandas têm que se voltar
sobre Washington e não sobre Havana. Têm que se centrar sobre
a base de Guantánamo, sobre as conspirações urdidas pelos
representantes diplomáticos dos EUA em Cuba, contra as
ameaças de intervenção e as ações terroristas do governo
norte-americano.
O que se diz sobre Cuba revela em grande medida que lentes a
estão olhando, que ideologia nutre esses olhares, de que
lugar se está olhando Cuba. Daí seu caráter paradigmático –
não como modelo de socialismo -, mas como desafio para os
olhares, para os valores e para a sensibilidade política de
quem olha.
https://www.alainet.org/es/node/108326?language=es
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