"A Alca e o jogo dos sete erros"
25/08/2003
- Opinión
As negociações para a constituição de uma Área de Livre
Comércio das Américas (Alca) despertam justificada
curiosidade e interesse não só de especialistas, mas
também do público em geral. O governo do presidente Lula
tem encorajado um debate amplo sobre o tema, de modo a
poder refletir da maneira a mais democrática possível as
ambições e as preocupações da sociedade brasileira. Por
isso tornou públicas as ofertas brasileiras e tem
esclarecido nossas posturas negociadoras. Em recente
artigo, intitulado A Alca possível, fiz um resumo do
estágio em que nos encontramos e apresentei as
diretrizes aprovadas pelo presidente. Volto, hoje, ao
tema com o fim de procurar esclarecer aspectos que são
objeto de mal-entendidos. Identifico, em particular,
sete questões ou "mitos" que merecem ser dissecados.
Neste primeiro artigo, trato de três deles.
"Aderir ou não aderir à Alca." A Alca é um projeto in
fieri, que não existe como realidade acabada. Quando um
país deseja ingressar na Organização Mundial do Comércio
(OMC) - como ocorreu com a China recentemente -, são
negociados termos e condições para sua acessão. O país
aceita regras em cuja elaboração não teve voz, em troca
de vantagens - reais ou percebidas - de participar do
sistema multilateral de comércio. É uma situação distinta
da que ocorre na Alca, que ainda está, por assim dizer,
na linha de montagem. Não se trata de aderir ou não à
Alca, mas de definir seus contornos, conciliando
interesses "ofensivos" - no caso do Brasil, acesso ao
mercado dos EUA para produtos como aço, calçados, suco de
laranja, açúcar - e preocupações "defensivas" -
autonomia governamental para a adoção de políticas
industriais, tecnológicas, etc.
"Alca (= Área de Livre Comércio das Américas) será o
equivalente americano da União Européia." Não é à toa
que boa parte do público tem da Alca uma percepção pouco
clara: o próprio enunciado "livre comércio" se presta a
equívocos. O projeto da Alca, conforme seu principal
proponente - e outros que já subscreveram acordos
bilaterais desse tipo -, envolve muito mais do que
liberalização "comercial". De acordo com essa corrente,
deveriam ser discutidas na Alca questões como
investimentos, compras governamentais e propriedade
intelectual, para não falar de meio ambiente e cláusulas
trabalhistas, que extrapolam a concepção do Gatt ou mesmo
do acordo de serviços da OMC. Boa parte da motivação
norte-americana para negociar a Alca é justamente a de
obter regras para aquelas questões segundo padrões que
estão acima do que podem conseguir no plano global.
O adjetivo "livre" também tem de ser visto como grão de
sal. Pelo que foi demonstrado até hoje, não parece haver
intenção, por parte de nossos parceiros, de eliminar
todas as suas barreiras e práticas distorcivas. No caso
das barreiras não-tarifárias, é notória a falta de
disposição dos EUA para discutir temas como antidumping,
por exemplo. Mesmo no que toca a tarifas, a oferta
existente para produtos agrícolas de interesse brasileiro
se limita a cotas tarifárias, "em dez anos ou mais". Da
eliminação dessas tarifas não se fala, como não se fala
de redução ou fim dos subsídios que nos prejudicam no
mercado norte-americano e em terceiros mercados.
Até mesmo a palavra "Américas" é imprecisa, já que - por
razões boas ou más - Cuba não figura no universo de
participantes. Em suma, o termo "Alca" faz pensar no
Sacro Império Romano Germânico, que, como disse um
pensador do século 19, não era nem sacro, nem império,
nem romano ou germânico. A idéia de que a Alca possa vir
a ser o correspondente americano do projeto de
integração europeu, ou mesmo do Mercosul, é ilusória.
Basta pensar no livre trânsito de pessoas, que
certamente não estará em cogitação em futuro previsível.
Muito menos se pode falar de uma política de segurança
comum ou de uma política externa única. Ao envolver
países de graus de desenvolvimento muito diverso, a Alca
é projeto sui generis, cuja identidade está sendo
moldada em função de expectativas nem sempre
convergentes, que precisam ser mais bem formuladas e
discutidas pelos diferentes participantes.
"Conforme for, o Brasil fica de fora." Este raciocínio,
muito presente na formulação de posições anteriores, é
mais teórico do que real. A lógica das negociações
internacionais - e sobretudo das que envolvem muitos
países - faz com que a opção de não aderir a um acordo
de cuja elaboração o País participou seja muito custosa.
Não só é difícil de justificar moral e politicamente tal
ausência, como se cristalizam interesses em torno de
eventuais vantagens, por menores que sejam, que
dificultam a opção de "ficar de fora" (basta recordar o
caso da Rodada Uruguai). A partir do momento em que
assumimos uma postura de negociação, o correto e natural
é que procuremos usar nossa liderança no sentido de
fazer valer nossos interesses "ofensivos" e
"defensivos", juntamente com os dos nossos sócios, de
modo a influir no seu desenlace. Evitamos, assim, opções
radicais, de elevado custo político e econômico.
Reconhecendo plenamente as atribuições do Legislativo de
ratificar ou não qualquer acordo internacional negociado
pelo Executivo (com ou sem confirmação por referendo
popular), é preferível observar, desde logo, uma postura
de firmeza negociadora, de modo a não termos de escolher
entre a adesão a um tratado que não nos agrada e sua
rejeição pura e simples, após haver participado de sua
elaboração.
"O formato 4+1 retira da Alca o foco em acesso a
mercados." Essa opinião sobre as propostas brasileiras -
repetida com alguma insistência - é o oposto do que
temos procurado fazer. Conforme tenho declarado, o
mercado norte-americano, por sua dimensão e dinamismo,
constitui o foco central de interesse brasileiro numa
Alca. Com a exceção do caso canadense, não precisamos de
uma negociação hemisférica para nos aproximarmos de
nossos vizinhos sul-americanos, nem sequer de México e
Cuba - que são membros da Aladi. Por outro lado, não foi
o Brasil que fragmentou sua oferta em acesso a mercados.
Enquanto a oferta inicial do Mercosul foi feita, talvez
com certa ingenuidade, sob a forma erga omnes, a
delegação norte-americana decidiu diferenciar suas
propostas por países e grupos de países - reservando ao
Mercosul tratamento o menos favorável. Considerando esta
realidade, o Mercosul se dispôs a negociar em bloco com
os EUA, num formato 4+1. Achamos que, assim,
preservaremos melhor nossos interesses, que, do
contrário, ficariam diluídos numa negociação entre 34
países heterogêneos.
Não temos nenhum preconceito contra dizer-se que este
acordo se dá no âmbito da Alca, de conformidade com
regras gerais, que logremos negociar sobre solução de
controvérsias, regras de origem, etc. (tampouco
facilmente equacionáveis). Contrariamente a algumas
interpretações, o formato 4+1 não exclui da Alca o
capítulo de acesso a mercados. A desgravação a ser
acordada se inserirá no contexto do arcabouço
plurilateral, válido para todos.
Tampouco teremos dificuldade em "multilateralizar" na
Alca o que viermos a negociar no 4+1 (é distinta a
situação oposta - a de estender aos EUA acordos
preferenciais com países da América do Sul). A estratégia
dos três trilhos faz com que a Alca se concentre
precisamente nas questões de acesso, e não naquelas que,
como diz Bhagwati, pouco ou nada têm que ver com o
comércio. Trata-se de enfoque pragmático e que leva em
conta as posturas da principal economia da região.
"A ênfase em acesso a mercados pressiona a indústria." Há
quem considere que a reconfiguração da Alca, segundo o
modelo dos "três trilhos", retirará da nossa indústria
elementos defensivos de barganha, forçando-a a uma maior
e mais rápida liberalização. Recordo, resumidamente, que
a concepção dos três trilhos visa a transformar a Alca
num exercício concentrado na eliminação de entraves ao
comércio de bens e serviços (trilho 1), dentro de um
marco regulatório simplificado aplicável aos 34 países
(trilho 2), escoimado de questões sensíveis para
diferentes participantes (no caso do Mercosul,
propriedade intelectual, investimentos, regras para
serviços, compras governamentais), em resposta à
exclusão de temas de nosso interesse pelos EUA. Esses
temas seriam tratados na Organização Mundial do Comércio
(OMC), segundo os mandatos da Rodada de Doha (trilho 3).
Como se sabe, os processos de estabelecimento de áreas
de livre comércio prevêem a redução a zero das tarifas
de importação, seja qual for o seu escopo. Assim sendo,
ao se aceitar a negociação de uma área de livre
comércio, estabelece-se que a indústria nacional terá de
se preparar para conviver, afora exceções pontuais, com
a inexistência de restrições aduaneiras para os produtos
importados - independentemente da aceitação da proposta
dos "três trilhos". Se isso é bom ou não é algo que pode
ser discutido. Mas nada tem que ver com a estratégia
proposta pelo Brasil e seus sócios. Por outro lado,
nossos industriais podem ficar certos de que o governo
Lula zelará para que o ritmo e o alcance das
desgravações na área industrial levem em conta seus
interesses e sensibilidades. Aliás, a consciência desses
interesses se reflete na defesa da liberdade para a
política de compras governamentais e na inclusão de
cláusulas sobre indústria nascente entre as
condicionalidades de nossa oferta.
"O risco de isolamento." Enquanto se negocia a Alca,
proliferam iniciativas bilateralizantes envolvendo
diferentes participantes no processo. O Chile já
concluiu um acordo com os EUA, fala-se na Colômbia e na
República Dominicana como futuras candidatas a seguir os
passos chilenos.
Existe uma percepção equivocada de que o Brasil poderá
estar correndo riscos, caso persista em sua estratégia
de redimensionar a Alca. A esse respeito caberia
esclarecer inicialmente que o modelo do acordo EUA-Chile
não convém a um país com as características do Brasil.
Acresce que, ao mesmo tempo, estamos ativamente
participando da Rodada de Doha na OMC, negociamos um
acordo Mercosul-União Européia e desenvolvemos outras
iniciativas com a África, o Oriente Médio, a Índia, a
China, a Rússia e, sobretudo, com a América do Sul. Na
realidade, o que se nota é que há mais "demanda" por
Brasil do que "oferta". O risco é de não sermos capazes
de corresponder à expectativa de aproximação com um
número crescente de parceiros. Não o contrário.
"Devemos defender nossos interesse, sim, mas dentro de um
enfoque realista." Desde que se verificou que a noção de
"Alca abrangente" (comprehensive) era um mito, em função
da recusa norte-americana de tratar questões de nosso
interesse fundamental, como antidumping e subsídios
agrícolas, os críticos da postura do governo passaram a
defender uma posição "realista". Na visão desses
críticos (explicitamente ou não), realismo consiste em
abrir mão de algumas reivindicações essenciais e
aceitar, integralmente, se não as demandas, ao menos o
modelo negociador proposto por nossos parceiros. Esses
"realistas" são, na realidade, mais realistas que o rei,
pois os próprios norte-americanos admitem que, da forma
como as coisas iam, a Alca estava à beira do colapso.
Além de ignorarem nossos interesses de longo prazo em
áreas vitais, esses "realistas" deixam de levar em conta
que não podemos gastar toda a munição negociadora em uma
etapa, se formos precisar dela em outra, e parecem
acreditar que a virtude traz consigo sua própria
recompensa (preceito irrealista se aplicado às relações
entre as nações, sobretudo no campo comercial).
* Celso Amorim é ministro das Relações Exteriores. Artigo
publicado no jornal O Estado de São Paulo em duas
partes, nos dias 24 e 26 de agosto.
https://www.alainet.org/es/node/108320
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