Janeiro: Oaxaca, a primeira estela. (Apesar do novo velho PRI, a história resiste diante da morte)

16/01/2003
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México 2003. Outro calendário: o da resistência. Lugar: montanhas do sudeste mexicano. Data: janeiro de 2003. Hora: a madrugada. Clima: frio, chuvoso, tenso. Altitude: tantos metros sobre o nível do mar. Visibilidade: sem a lanterna não se vê um caralho. Numa choça, uma sombra compete com a fragilidade da luz de uma vela e, entre a fumaça do tabaco e do fogão a lenha, uma mão folheia um calendário de 2003, recém- chegado no Quartel Geral do EZLN. Calendários, diz a mão e acrescenta: Mas há calendários e calendários, e põe sobre a mesa duas fotos da imprensa: numa aparece o feto do que será o neto de Fox; na outra, algumas mães choram as crianças mortas em Comitán, Chiapas. Diz a mão: Aqui o calendário do nascimento com a benção do Poder. E aí outro calendário de muitas mortes pela irresponsabilidade do Poder. A mão continua falando: Calendários de nascimentos e de mortes, calendários de pagamentos, calendários de festas pátrias, calendários de viagens de funcionários, calendários de sessões do governo. Agora, em 2003, calendário de eleições. Como se não houvesse outros calendários. Por exemplo: o calendário da resistência. Ou, talvez, deste não se fala porque exige muito e aparece pouco. A mão pára por um instante. O calendário fica fechado. Parece que foi feito por simpatizantes zapatistas. Cada mês tem, além de fotos sobre o tema, alguns fragmentos das muitas mensagens que o EZLN pronunciou na marcha pela dignidade indígena em fevereiro, março e abril de 2001. Esta marcha, diz a mão que agora folheia uma baforada de fumaça. O mais importante não foi o que dissemos, e coloca de lado o calendário. O mais importante foi aquilo que, calando, olhamos. Se estes senhores e senhoras que se dizem pensantes tivessem visto com nossos olhos o que olhamos calando, talvez entenderiam o nosso silêncio que veio depois e a nossa palavra de agora. Mas não. Acham que pensam. E pensam que lhes devemos algo. Mas não devemos nada pra eles. Àqueles aos quais devemos, e muito, são aqueles para os quais, calados, olhamos calando. Para eles foi o nosso silêncio. Para eles é a nossa palavra. Com eles e para eles são nossos olhares e nossas mãos. E, ao que parece, a mão aponta para um mapa da República Mexicana. O olhar segue o caminho da mão e a mão já repousa sobre uma palavra:
OAXACA
E sobre esta palavra se levanta a primeira estela... Janeiro: Oaxaca, a primeira estela. (Apesar do novo velho PRI, a história resiste diante da morte) (Estela: pedras gravadas, trabalhadas com a técnica de baixo-relevo, que contêm representações de personagens, datas, nomes, acontecimentos e... PROFECIAS). É janeiro, mês que convoca passado, presente e futuro. É Oaxaca, terra onde o ontem e o hoje são raiz do amanhã. Neste solo sobrevivem indígenas mexicanos: mixtecos, popolucas, chochos, triquis, amuzgos, mazatecos, cuicatecos, chinantecos, zapotecos, chatinos, mixes, chontales, huaves, nahuas, zoques, ixcatecos e tacuates, além de uma ignorada população agrícola mexicana. O INEGI, em 1990, declarava que em Oaxaca havia mais de um milhão e 300 mil indígenas maiores de cinco anos. Mas, levando em consideração critérios mais amplos do que os reduzidos do INEGI, entre 60 e 70 por cento da população oaxaquenha é indígena. De um total de 570 municípios, 418 são chamados "municípios indígenas" que se regem por suas próprias normas de governo, a que chamam de "usos e costumes". É janeiro e é Oaxaca, e o sol avança sobre o pico de ponta truncada alisado por construções pré-hispânicas. Tempos diferentes têm dado nomes diferentes a esta montanha. E assim foi chamada de Pico do Tigre, a chamaram Pico das Pedras Preciosas e dela se disse Pico do Pássaro Puro. Agora, os presentes o chamam de Monte Albán. Monte Albán. A seus pés brilha a soberba desordem da cidade de Oaxaca, capital desta província que, como todas as do México, só é notícia quando sofre a passagem de furacões, terremotos e falsos governantes, ou quando a assustadora pobreza segue o caminho da rebeldia armada. Como se a história fosse contada só quando narra as derrotas, o desespero e as misérias dos que são de baixo, e esquecesse do fundamental: a resistência. O sol segue o seu caminho. Vinda também do oriente, uma guacamaya sobrevoa o vale de Tlacolula, gira sobre o vale de Etla e, no vale de Zaachila, depois de percorrer os quatro pontos cardeais, se dirige ao Monte Albán.(1) Plana sobre o conjunto de edifícios, todos orientados seguindo o eixo norte-sul. Todos menos um. Parecido com uma flecha, um edifício rompe a suposta harmonia e aponta o topo para o sudeste. Como uma peça fora do lugar no complexo quebra-cabeça da arqueologia da América Central, esta construção pôde ter assinalado um ponto astronômico, visual ou, ainda, auditivo, mas também leva a pensar em algo truncado e não só especial, também e sobretudo temporal. Devia parecer um chamado à atenção, uma irrupção do absurdo em meio a uma ordem aparente. Como absurda é a imagem desta guacamaya e o que se vê debaixo do seu vôo vigilante e protetor. Na plataforma sul do Monte Albán, diante da sétima estela, se conta novamente uma história que vem de uma caverna que é todas as cavernas... O sangue indígena sabe que a terra esconde o ventre fértil que engendrou todos os tempos, e os sábios indígenas zapotecos contam que foi no interior de uma montanha que o tempo e a vida começaram seu trabalhoso caminhar. Antes disso, aquele que não se pode tocar com os pensamentos, o Coqui Xee, dormia numa caverna. Esta era a gruta do tempo sem tempo, onde não havia lugar nem para o princípio e nem para o fim. Então, no coração do Coqui Xee veio a vontade de mover o mundo e, feito lua escondida, olhou para dentro de si e fez nascer Cosana e Xonaxi, que é assim que os antigos zapotecos chamaram a luz e a escuridão. Com seu pé de um e de outro, o mundo deu então seus primeiros passos. O que não tem princípio, o inatingível pela razão, Coqui Xee, fez nascer a si mesmo como lua nova e, assim, começou seu longo passar no mundo da noite, enquanto descansava de dia na terra do mixe, em Cempoaltepetl. Cosana, o senhor da noite e o fogo que pariu o sol, se tornou uma tartaruga para andar pela terra e assim foi criando os homens pela mão de Xonaxi, que se fez guacamaya para andar pelos céus, para cuidar dos homens e das mulheres, e olhar para que nascessem com o bem. Voando à noite, Xonaxi pintou de luz o seu caminho para não perdê-lo e sua pegada de luz arenosa é chamada de Via Láctea. Do abraço da luz e da escuridão, do céu e da terra, saiu o relâmpago, Cocijo, pai bondoso, fazedor da boa terra e guia daqueles que a trabalham e a fazem parir o alimento. Doador da saúde, curador da doença, senhor da guerra e da morte, com o 13 Flor em sua bandeira, Cocijo se partiu em quatro para estar nos quatro pontos que medem o mundo. Para nomear a morte e a dor, habitou o norte pintado de preto. Para chamar a felicidade ficou sentado no oriente com a roupa alaranjada. No ocidente vestiu o manto branco para marcar o destino. E para decidir a guerra se vestiu de azul e caminhou pelo sul. O relâmpago, nosso pai, casou com a mulher do xale enfeitado de flores e cobras, a chamada Treze Serpentes, Nohuichana. Ela, nossa mãe, a doadora da vida no ventre das mulheres, no leito de rios e lagoas, na chuva, a que anda de mãos dadas com homens e mulheres do nascimento até a morte, foi e é uma boa rainha para aqueles que deram e dão cor à cor desta terra. E os que sabem e calam contam que, de tanto em tanto, o relâmpago e a chuva voltam e com eles voltam o amor e a vida, através de um homem e de uma mulher qualquer, aos quais o absurdo opõe obstáculos, talvez só para aumentar o brilho que anda no olhar. Se é verdade, como é, que a vida caminhou antes como líquido nas cavernas que abundam nos territórios indígenas, que as cavernas foram e são o ventre que os primeiros deuses deram a si mesmos para poderem crescer e se formar, e que as grutas nada mais são a não ser o vazio que o florescer da vida deixou na terra como cicatrizes, então é no interior da terra onde, além do passado, poderíamos ler os caminhos que terão de levar- nos ao amanhã. Neste janeiro, o casal criador, Cosana e Xonaxi, abraçam o ventre da terra e o consolam para transformá-lo em terra semeada. Não só para que nele se reavive a luta do rebelde que é coletivo, porque só assim se pode ser rebelde, como também para que aí nasça o sonho com a cor daqueles que conosco são a cor da terra. A história agora está calada. E é sempre mais o que se cala do que o que se fala. Silêncio... Lá em cima, uma tormenta saúda com relâmpagos o vôo decidido da guacamaya... Lá em baixo, está o Monte Albán com sua construção em forma de flecha rompendo a monotonia de todo o conjunto cerimonial, e avisando que faltam peças para entender o que vemos. Como se nos avisasse que é bem mais e maravilhoso o que falta, o que não vemos. Porque quando vemos o que vemos agora, o orgulhoso Monte Albán, procuramos inutilmente uma continuidade. Na realidade vemos só uma foto, uma instantânea, a imagem de um relâmpago que deteve a sua marcha numa data determinada. Mas se trata de um relógio descontínuo. Só para o poderoso a história é uma linha ascendente onde o topo é sempre o seu hoje. Para quem é de baixo, o agir histórico é uma interrogação que só se responde olhando para trás e para diante, rabiscando assim novas perguntas. Dessa forma, devemos questionar o que temos diante de nós. Perguntar, por exemplo, quem está ausente e, contudo, torna possível que estejam presentes imagens de deuses, caciques e sacerdotes. Perguntar por aqueles que calam quando estas ruínas falam. Não são poucas as estelas no Monte Albán. Elas apontam calendários cuja compreensão está se definindo. Mas não vamos esquecer que elas representam os calendários daqueles que, naqueles tempos, detinham o poder, e que estes calendários não previam a data na qual a rebeldia de baixo faria colapsar este mundo. Como um terremoto, o descontentamento de então sacudiu a inteira estrutura social e, deixando de pé os edifícios, acabou com um mundo alheio à realidade de todos. Desde tempos antigos, as elites governantes fabricam calendários de acordo com o mundo político, que nada mais é a não ser um mundo que exclui a maioria. E a diferença entre estes calendários e os que são vida de baixo é a que provoca os terremotos dos quais há muitos em nossa história. Para cada estela que o poder vai esculpindo em seus palácios, outra estela surge lá em baixo. E se estas estelas não são visíveis é porque não são de pedra, e sim de carne, sangue e ossos, e, sendo da cor da terra, ainda são parte das cavernas nas quais amadurece o futuro. Os edifícios que, como cocar, coroam o também chamado Pico do Tigre, não pertencem àqueles que com seu esforço e sabedoria os levantaram e mantiveram. "A arquitetura monumental, nos casos como o do Monte Albán e de outros lugares da área cultural da América Central, é a resposta à necessidade de um espaço destinado às cerimônias, que integre as exigências organizativas de uma classe sacerdotal com status bem superior ao nível médio da população agrícola. Desta forma, os edifícios do Monte Albán, desde o início, foram destinados a reproduzir o sistema político baseado no culto religioso e a manter sua classe dirigente no poder; a população das aldeias e dos povoados do vale era encarregada de prover todos os bens de consumo desta classe, bem como de proporcionar a mão-de-obra para a construção dos edifícios e sua permanente manutenção. Outra obrigação era de proporcionar todos os elementos necessários para a realização das cerimônias e o material humano indispensável para as mesmas" (Robles Garcia, Nelly. Monte Albán. CODEES Editores). Foi o poderoso quem desfrutou do trabalho do de baixo, o trabalho que levantou estas construções que surpreendem menos do que a soberba que as liquidou. Porque Monte Albán, como ocorre muitas vezes com os espaços nos quais reside o poder, entrou em colapso pela rebeldia de baixo, provocada, por sua vez, pela indiferença dos governantes. Para os conquistadores espanhóis, a dupla lição de Monte Albán (o avançado desenvolvimento de uma cultura e o abandono provocado pela soberba reinante) passou desapercebida. Para a coroa espanhola do século XVI, como para o neoliberalismo do início do século XXI, a única cultura é a de quem domina. E, como agora para o capitalismo selvagem, para o poder espanhol as terras indígenas não eram outra coisa a não ser uma abundante fonte de mão-de-obra. Sob o poder espanhol, condenada a duríssimos trabalhos forçados nas minas, desapareceu quase 90 % da população indígena de Oaxaca. Mas sua dor continuou debaixo da terra e nas grutas se transformou em rebeldia, rebeldia que hoje alimenta a cor da terra. E o que vale para os povos indígenas de Oaxaca vale também para os demais povos indígenas do México: sua riqueza cultural foi e é desprezada (algumas vezes pela destruição direta, outras por ignorância, outras ainda pelo racismo e sempre pelo repúdio ao que é diferente) por aqueles que são poder e domínio. Se ao ver os restos das chamadas culturas pré-hispânicas o visitante comum se maravilha e imagina o esplendor que tinham, se maravilharia ainda mais ao constatar a fria crueldade e a selvagem estupidez daqueles que as têm destruído (e o desprezo e a comercialização são também uma forma de destruição) e ignorado. E se surpreenderia ainda mais ao constatar que estas culturas não desapareceram, que subsistem e se renovam no México subterrâneo. Assim, que mal se faz ao atribuir à raça espanhola, ou a qualquer outra, a longa dor dos povos indígenas do México. Foi e é o poderoso que, sem que para isso importe a raça a que pertence, reafirma seu domínio com a destruição da identidade do dominado. Desde que o México se libertou do domínio espanhol, os donos do dinheiro e seus políticos têm levado adiante a destruição da cultura indígena com igual ou maior fervor do que os conquistadores hispânicos do século XVI. Recentemente, vozes inteligentes têm se levantado para advertir que a reforma de Salinas ao Artigo 27 da Constituição (que permite a venda a particulares das terras ejidais) afetará seriamente as regiões dos monumentos arqueológicos. Uma destas regiões é Monte Albán, onde parte do seu território original está agora nas mãos da iniciativa privada (El Universal, 28/11/2002). Ou, pelo menos, é isso que pretendem os governos neoliberais. Mas há resistências. Os moradores dos municípios de San Pedro Ixtlahuaca, Santa Cruz Xoxocotlán e Santa Maria Atzompa têm se organizado para evitar esta privatização da história. Reunindo ejidatários, comunheiros, pequenos proprietários e colonos, a organização chamada Frente Zapatista contra a privatização e a Exploração Neoliberal põe em seu nome sua vocação e sua tarefa. Desde meados de 2001, estes oaxaquenhos denunciavam o que estava por vir: a privatização de Monte Albán; que por trás dos projetos governamentais não estava o interesse em preservar esta região arqueológica, e sim em vendê-la para construir hotéis, centros de convenções e lojas. Um ano depois, em 2002, o governador Murat dava um passo adiante no sonho de Salinas de Gortari: o projeto Monte Albán século XXI, privatizando terras ejidais nos arredores do complexo arqueológico e reprimindo aqueles que se opõem a esta privatização da história. Contudo, a resistência se mantém, ainda que esteja afastada dos meios de comunicação. "Nós somos os verdadeiros defensores da região arqueológica do Monte Albán, porque é a nossa casa e é também a casa de todos os mexicanos, mas nesta luta permanente para tratar de cuidar dela e de protegê-la resistimos culturalmente e enfrentamos aqueles que pretendem destruí-la, restringindo o uso e o destino de nossas terras em benefício dos grandes investidores", dizem e se comprometem estes indígenas rebeldes. O velho novo PRI, com José Murat, Diódoro Carrasco e Heladio Ramírez disputando o botim, continua o percurso traçado pelo seu último grande dirigente: Carlos Salinas de Gortari. Para isso recorrem ao argumento mais defendido: a repressão. Contudo, apesar da repressão, em Oaxaca há alguns dos exemplos mais vivos de resistência antineoliberal e a totalidade deles não só se dão apesar dos partidos políticos, mas também contra eles. Em dezembro passado, um grupo de jovens que se reúnem ao redor da cultura, foi atacado pela polícia de Juchitán, desalojado e seus membros são ainda perseguidos pelo governo municipal "democrático". Na Serra Norte de Oaxaca, o Conselho Indígena Popular de Oaxaca Ricardo Flores Magón sofreu duros golpes por negar-se à rendição ou a unir-se às facções de Murat, de Diodoro (aquele que, quando Secretário de Governo de Zedillo, "operou" a derrota do PRI nas eleições do ano 2000) ou de Heladio. Na Serra Sul (mas não só aí), a Aliança Magonista Zapatista, a Coalizão das Organizações do Estado de Oaxaca, o Comitê de Defesa dos Direitos do Povo, A Coalizão das Organizações Independentes da Cuenca, a Frente Ampla de Luta Popular, a Frente Civil de Teojomulco, a Frente Única de Defesa Indígena, as Organizações Indígenas pelos Direitos Humanos de Oaxaca, a União dos Camponeses Pobres e a União da Juventude Revolucionária do México têm se integrado na Coordenação Oaxaquenha Popular Magonista Antineoliberal e constroem um dos mais interessantes processos de resistência. Não só. A resistência Oaxaquenha abunda em sabedoria, decisão e nomes: Serviços do Povo Mixe, União das Organizações da Serra Juarez de Oaxaca, União de Comunidades Indígenas da Região do Istmo, a Coordenação Estadual dos Produtores de Café de Oaxaca e o Movimento Unificado de Luta Trique, para mencionar algumas das muitas que há sobre o solo oaxaquenho. E não poucas vezes a resistência assume o nome dos municípios que a levantam. Desta forma, aparecem: Quetzaltepec-Mixe, San Pedro Yosotatu, Unión Hidalgo, Yalalag e outros que povoam de rebeldia a geografia oaxaquenha. Dificilmente você verá membros destas organizações ou destes municípios competindo para se tornarem deputados. Sua vocação não é poder, mas sim o serviço. Assim mandam os antigos que levantaram a grandeza de Monte Albán e cuja rebeldia derrubou aqueles que governavam com soberba. Mas se os neoliberais do PRI ou do PAN ou do PRD agirem contra a vontade das demais pessoas, estaríamos diante da possibilidade da história do México se transformar em mais uma empresa quotizada na Bolsa de Valores: História do México Company SA de CV. Além da cenografia turística, que valor o capital pode dar à arqueologia pré-hispânica? Quando os testas-de-ferro do grande dinheiro (Diego Fernández de Cevallos e seus patinhos Manuel Bartlett e Jesus Ortega, respectivamente do PAN, PRI e PRD) no Congresso mexicano acabaram com o reconhecimento constitucional dos direitos e da cultura indígenas, não só imitaram os escravistas da época colonial, mas também, e, sobretudo, garantiram que a história do México fosse mais uma mercadoria no mercado internacional. Se a forma pela qual fizeram isso lembra o teatro de marionetes é porque os políticos não costumam resistir à tentação de fazer o que é ridículo. Mas não é só para possuir a história que o poderoso a compra, é também para evitar que ela seja lida como é de lei, ou seja, olhando para frente. A história de cima continua dizendo "foram" àqueles que ainda são. Faz isso porque lá em cima só conta a troca dos que são poder. Assim, o tempo do poderoso só termina quando outro poderoso o tira do lugar. Mas em baixo o tempo continua fluindo. Ao responder à incógnita que o passado histórico coloca, quem está em baixo decifra linhas quebradas, altos e baixos, vales, encostas e depressões. Sabe assim que a história nada mais é do que um quebra-cabeça que o exclui como ator principal e lhe reserva só o papel de vítima. A peça que falta na história nacional é a que completa a imagem enganadora do único entre os mundos possíveis, o atual, tão somente a que inclui a todos em sua verdadeira dimensão: a luta contínua entre aqueles que pretendem ser o fim dos tempos e aqueles que sabem que a última palavra se constrói resistindo, às vezes em silêncio, longe dos meios de comunicação e dos centros de Poder. Só assim é possível entender que o presente não é o melhor nem o único mundo possível, tampouco que só outros mundos são possíveis, mas sim, sobretudo, que estes novos mundos são melhores e são necessários. Enquanto isso não acontece, a história não deixará de ser uma coleção anárquica de datas, lugares e vaidades de cores diferentes. A grandeza de Monte Albán não se completará com o descobrimento de outros templos, túmulos ou tesouros, nem sequer com a reconstrução exata do seu inquestionável esplendor. Monte Albán estará completo, e com ele será parte da história real deste país, quando for entendido que aqueles que o tornaram possível, aqueles que o levantaram e o mantiveram, e cuja rebeldia minou a soberba que o habitava, ainda vivem e lutam, não para que Monte Albán e o seu poderio renasçam e a história dê uma impossível guinada para trás, mas sim para que se reconheça que o mundo não estará completo se não incluir todos no amanhã. O movimento indígena no qual se insere o zapatismo não pretende voltar ao passado e manter a injusta pirâmide da sociedade, mudando só a cor da pele daquele que, lá em cima, manda e dispõe. A luta dos povos indígenas do México aponta para trás. Num mundo linear onde o de cima se considera eterno e o de baixo inevitável, os povos indígenas do México rompem com esta linha e apontam para algo ainda a ser decifrado, mas que já é novo e melhor. Com certeza, quem vem de baixo e de tão longe no tempo tem obstáculos e sofrimentos. Mas estes lhes foram impostos por aqueles que fizeram da riqueza o seu deus e o seu limite. E também, quem vem com um passo tão cumprido, pode enxergar muito longe e neste ponto distante que seu coração adivinha há outro mundo, novo, melhor, necessário, onde cabem todos os mundos... Se com sua marcha estúpida e avassaladora os neoliberais dizem "não há outra cultura a não ser a nossa", lá em baixo, com o México subterrâneo que resiste e luta, os povos indígenas de Oaxaca advertem: "há outras grutas como a nossa". Das montanhas do sudeste mexicano. Subcomandante Insurgente Marcos México, janeiro de 2003.
https://www.alainet.org/es/node/108141
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