Lulizar
04/06/2003
- Opinión
Eu ouvi esta expressão em El Salvador, na semana passada e
desde então ela não me sai da cabeça. Foi utilizada por um
sociólogo salvadorenho, diretor de um importante centro de
ciências sociais daquele país e seu significado ficou dando
voltas desde então no meu pensamento.
Ele comentava as vicissitudes de seu país, que pôs em prática
com sucesso uma transição entre o período de luta violenta
entre oposição guerrilheira e governo – que eles chamam de
"período de guerra" - para uma luta política institucional.
Essa transição é considerada um sucesso na medida em que a
oposição – Frente Farabundo Martí – se constituiu como
partido político, elegeu e reelegeu o prefeito da capital,
dirigindo atualmente várias dezenas de cidades do país,
elegeu a maior bancada no Parlamento e agora se tornou
favorita para eleger o próximo presidente de El Salvador, no
próximo ano.
É justamente ai que começa a tensão atual no menor país – em
extensão geográfica, cerca de 20 mil quilômetros quadrados –
da América Latina. Porque é relativamente fácil para as
elites tradicionais aceitar os espaços conquistados pela
Frente Farabundo Marti, até que a possibilidade real de
alternância política aparece no horizonte, com a perspectiva
de eleição de um presidente da oposição. A situação é mais
tensa ainda, porque o candidato da Farabundo Martí é seu
dirigente mais importante, Schafik Handal, que foi secretário
geral do Partido Comunista Salvadorenho – que se incorporou à
Frente no processo de luta armada. A imprensa local busca
criar um clima de instabilidade política, seja sugerindo que
as posições de Handal colocariam em risco a estabilidade
econômica e política de El Salvador, seja sugerindo que a
oposição estaria rifando uma possibilidade única de
consolidar a transição institucional, lançando um candidato
mais moderado.
Handal defende posições tradicionais da esquerda
latinoamericana. No caso salvadorenho sua plataforma inclui
a saída da dolarização – decretada há três anos pelo governo
atual, como suposta forma de atrair investimentos, objetivo
fracassado -, deixando circular a moeda norte-americana junto
com a moeda nacional, porém permitindo que a cotação desta
esta flutue. O que basta para que a imprensa opositora
anuncie que se estaria gestando nesse caso crises do tipo da
argentina ou da uruguaia, o que ainda levaria o país a uma
situação de conflito aberto com o governo dos EUA.
Foi nesse marco que o sociólogo salvadorenho, preferindo que
a oposição lançasse um candidato mais palatável às elites
tradicionais, afirmou que a candidatura provável da Frente
Farabundo Martí teria uma vantagem, do seu ponto de vista,
porque Schafik Handal seria o único dirigente que poderia
"lulizar" (sic) a esquerda salvadorenha.
A pergunta que ficou lançada - mais além da conjuntura
salvadorenha, depois das eleições argentinas e antes das
uruguaias, todas influências pela vitória de Lula no Brasil -
é sobre o significado do novo verbo. O que quer dizer
"lulizar"? Viabilizar? Tornar realista? Dar projeção
nacional? Qual dos significados se aplica a El Salvador? E
qual se aplica ao Brasil?
O sentido dado pelo sociólogo salvadorenho, ao cunhar a nova
expressão é claro para mim – se trata de um sinônimo de
"domesticar". Até mesmo porque ele se preocupava
especialmente com que Handal, caso eleito, mexesse na
dolarização que, embora ele confessasse que não obteve os
efeitos desejados, sua suspensão apareceria como um fator de
desestabilização interna e externa. A oposição deveria fazer
várias concessões para garantir antes de tudo a alternância,
demonstrar que poderia governar sem introduzir fatores de
desestabilização e de ingovernabilidade.
Tudo me soou um pouco familiar. Mas tendo conversado com
Handal, me dei conta que de fato ele não pretende se submeter
a esse figurino – isto é, não se dispõe, caso vença, a
"lulizar" a esquerda salvadorenha.
Enquanto isso, por aqui, a imagem de Lula é objeto de
sentidos contraditórios. Sua lua de mel com o eleitorado –
ampliada com adesões de antigos opositores – parece se
prolongar, ao mesmo tempo em que se estende um consenso
dentro dos formadores de opinião de esquerda, de crítica ao
núcleo básico que sustenta o governo até aqui. O elemento
novo é o acúmulo de críticas, dentro e fora do governo, de
setores populares, mas também empresariais. Sem que afetem
por enquanto o apoio presidencial, acumulam-se nuvens
espessas num setor que tem grande capacidade de difusão de
suas posições, fenômeno até agora neutralizado pela ainda
forte presença popular da figura de Lula.
O governo se aproxima do seu primeiro semestre, o quadro
recessivo da economia se consolida para todo o primeiro ano,
com o aprofundamento de índices sociais negativos, contando o
governo com índices financeiros favoráveis, embora em parte
eles tenham a ver com projeções internacionais, que nada tem
a ver com a fisionomia inicial do governo Lula. As reações
críticas têm levado a afirmações cada vez mais freqüentes de
que o governo se prepararia para uma virada na economia,
afirmações que se chocam frontalmente com a política
econômica e com as posições reiteradas do ministro da fazenda
e do presidente do Banco Central. O caráter ambíguo da
composição do governo e as contradições acumuladas entre as
bases originais de apoio de Lula e o núcleo de sua política
até aqui, estendem até nós a interrogação a respeito do
significado do verbo cunhado pelo sociólogo salvadorenho: o
que significa "lulizar" a esquerda brasileira?
https://www.alainet.org/es/node/107634?language=en
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