Alteridade
11/05/2003
- Opinión
O que é alteridade? É ser capaz de apreender o outro na
plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e,
sobretudo, da sua diferença. Quanto menos alteridade
existe nas relações pessoais e sociais, mais conflitos
ocorrem.
A nossa tendência é colonizar o outro, ou partir do
princípio de que eu sei e ensino para ele. Ele não sabe.
Eu sei melhor e sei mais do que ele. Toda a estrutura do
ensino no Brasil, criticada pelo professor Paulo Freire,
é fundada nessa concepção. O professor ensina e o aluno
aprende. É evidente que nós sabemos algumas coisas e,
aqueles que não foram à escola, sabem outras tantas, e
graças a essa complementação vivemos em sociedade. Como
disse um operário num curso de educação popular: "Sei
que, como todo mundo, não sei muitas coisas".
Numa sociedade como a brasileira em que o apartheid é tão
arraigado, predomina a concepção de que aqueles que fazem
serviço braçal não sabem. No entanto, nós que fomos
formados como anjos barrocos da Bahia e de Minas, que só
têm cabeça e não têm corpo, não sabemos o que fazer das
mãos. Passamos anos na escola, saímos com Ph.D., porém
não sabemos cozinhar, costurar, trocar uma tomada ou um
interruptor, identificar o defeito do automóvel... e nos
consideramos eruditos. E o que é pior, não temos
equilíbrio emocional para lidar com as relações de
alteridade.
Daí por que, agora, substituíram o Q.I. para o Q.E., o
Quociente Intelectual para o Quociente Emocional. Por
quê? Porque as empresas estão constatando que há, entre
seus altos funcionários, uns meninões infantilizados, que
não conseguem lidar com o conflito, discutir com o colega
de trabalho, receber uma advertência do chefe e, muito
menos, fazer uma crítica ao chefe.
Bem, nem precisamos falar de empresa. Basta conferir na
relação entre casais. Haja reações infantis...
Quem dera fosse levada à prática a idéia de, pelo menos a
cada três meses, um setor da empresa fazer uma
avaliação, dentro da metodologia de crítica e
autocrítica. E que ninguém ficasse isento dessa
avaliação. Como Jesus um dia fez, ao reunir um grupo dos
doze e perguntou: "O que o povo pensa de mim?" E depois
acrescentou: "E o que vocês pensam de mim?"
Quem, na cultura ocidental, melhor enfatizou a radical
dignidade de cada ser humano, inclusive a sacralidade,
foi Jesus. O sujeito pode ser paralítico, cego, imbecil,
inútil, pecador, mas ele é templo vivo de Deus, é imagem
e semelhança de Deus. Isso é uma herança da tradição
hebraica. Todo ser humano, dentro da perspectiva judaica
ou cristã, é dotado de dignidade pelo simples fato de ser
vivo. Não só o ser humano, todo o Universo. Paulo, na
Epístola aos Romanos, assinala: "Toda a Criação geme em
dores de parto por sua redenção".
Dentro desse quadro, o desafio que se coloca para nós é
como transformar essas cinco instituições pilares da
sociedade em que vivemos: família, escola, Estado (o
espaço do poder público, da administração pública),
Igreja (os espaços religiosos) e trabalho. Como torná-los
comunidades de resgate da cidadania e de exercício da
alteridade democrática? O desafio é transformar essas
instituições naquilo que elas deveriam ser sempre:
comunidades. E comunidades de alteridade.
Aqui entra a perspectiva da generosidade. Só existe
generosidade na medida em que percebo o outro como
outro e a diferença do outro em relação a mim. Então sou
capaz de entrar em relação com ele pela única via
possível porque, se tirar essa via, caio no
colonialismo, vou querer ser como ele ou que ele seja
como sou - a via do amor, se quisermos usar uma expressão
evangélica; a via do respeito, se quisermos usar uma
expressão ética; a via do reconhecimento dos seus
direitos, se quisermos usar uma expressão jurídica; a via
do resgate do realce da sua dignidade como ser humano, se
quisermos usar uma expressão moral. Ou seja, isso supõe a
via mais curta da comunicação humana, que é o diálogo e a
capacidade de entender o outro a partir da sua
experiência de vida e da sua interioridade.
* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto -
autobiografia escolar" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/107523
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