Filosofia e economia
21/04/2003
- Opinión
A história é repleta de mentiras bem contadas. Tão bem
contadas que soam como verdades inquestionáveis. É o caso
da filosofia, que muitos acreditam ter nascido na Grécia.
Claro, a Grécia fica na Europa e o que de bom poderia
vir de outra parte do mundo antes do descobrimento da
América?
A ótica eurocentrista apossou-se da filosofia como, hoje,
o presidente Bush arvora-se em intérprete da vontade
divina e acredita que o Senhor dos Exércitos o inspira a
combater, em defesa do Bem, o Mal encarnado em Saddam
Hussein e seus súditos. A propósito, vale lembrar o que
disse o profeta Isaías, que viveu há 2.800 anos: "Ai dos
que dizem que o mal é bem, e o bem é mal, dos que
transformam as trevas em luz e a luz em trevas, dos que
mudam o amargo em doce e o doce em amargo!" (5, 20).
Só quem ignora a sabedoria da literatura oriental, dos
vedas aos textos bíblicos, pode acreditar que a filosofia
é filha dos gregos. Como se a lógica e a ética, a
matemática e a epistemologia, já não deitassem raízes no
pensamento e nos escritos de sábios chineses e indianos,
sumérios e egípcios. Se o Oriente fosse tão pouco lógico
como tenta impingir-nos a arrogância eurocêntrica, os
chineses não teriam inventado a bússola e o timão, o
cultivo em fileiras e o alto-forno, a pólvora e o
estribo, o mastro múltiplo e o carrinho de mão, o papel e
a imprensa (centenas de anos antes de Gutenberg).
A filosofia, como busca do conhecimento pela via
racional, é tão antiga como o ser humano. Embora tenha
alcançado seu esplendor na Grécia, isso não significa que
os povos antigos a ignorassem. Nem a ciência, nem a
técnica são frutos exclusivos do solo europeu. Os maias,
na América Central, detinham conhecimentos científicos,
como em matemática e meteorologia, tão precisos como os
que são, hoje, comprovados por sofisticados instrumentos.
Filosofia vem de filo, amizade, e sofia, sabedoria. O
filósofo é amigo da sabedoria, termo que encerra duas
noções complementares, a de saber (racional) e a de sabor
(experimental). Sábio não é o erudito. É quem procura a
verdade para tornar a humanidade mais feliz. E a verdade
quase nunca reside nas aparências e nem é necessariamente
captada pelos sentidos.
Pode-se aplicar à economia e à política essa mesma
desconfiança que mascara a filosofia como criação grega.
Haveria outra lógica econômica além da que adota o
mercado como paradigma supremo? Se há, ela ainda é tão
desconhecida como os escritos de Sócrates. Bem que o
socialismo tentou e incorreu no mesmo erro da economia
capitalista: divorciou-se da política. Assim, não
conseguiu articular direito econômico e liberdade
política. Restringiu esta para assegurar aquela. Saciou a
fome de pão, mas não a de beleza.
Hoje, a economia de mercado prossegue tributária deste
pecado original: garante o seu êxito graças ao sacrifício
da política, ou seja, do bem-estar da população.
Submetida à perversidade dessa lógica econômica, que
protege os ricos e penaliza os pobres, a política
transforma-se em mera legitimadora da economia. É como a
árvore que se vê cortada pelo machado e percebe que o
seu cabo é de madeira!
Como inverter a polaridade e submeter a economia à
política e, sobretudo, aos direitos sociais? Eis um
desafio a ser enfrentado pelos governantes, o que implica
deparar com outro dilema, para o qual ainda não há
solução: optar pela centralização do poder político, como
faz a China para domar a ferocidade do mercado e obrigar
a economia a andar nos trilhos de sua estratégia
nacional, ou promover tamanha descentralização (algo como
o orçamento participativo em nível nacional) capaz de
transferir efetivamente o poder do Estado à nação.
A democracia é, ainda hoje, representativa. Para se
tornar participativa seria preciso que a sociedade civil
abandonasse sua atitude de beneficiária do Estado para
assumir o papel de protagonista. Ou, como diria Platão,
que o cidadão deixasse de mirar as sombras da caverna e,
livre das amarras, encarasse a realidade de que a
sociedade é ato primeiro e, o Estado, ato segundo. Esta é
ferramenta daquela.
Acredito que o fortalecimento dos movimentos sociais e do
Terceiro Setor tende a fortalecer esse ideal. Tomara que
surja um novo Maquiavel que nos brinde, não com O
Príncipe, mas com O Povo. E quem sabe Platão já não se
sentisse tão frustrado se visse resgatada a sua utopia: a
sabedoria do povo fazendo da política a mestra da
economia, instruindo-a como ciência da vida, e vida para
todos.
Talvez a economia (administração da casa) até mude de
nome. Será então conhecida como bionomia (administração
da vida).
* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto
Autobiografia Escolar" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/107370
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