Lições espanholas

13/04/2003
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Um problema atravessou a história do movimento socialista internacional, sem jamais obter uma resposta consensual: o que vem a ser exatamente uma "gestão socialista" do capitalismo? No próprio Manifesto Comunista de 1848, Marx e Engels já se sentiam na obrigação de colocar ao lado de sua teoria revolucionária da história, um curtíssimo programa de governo, uma espécie de "carta compromisso" eleitoral, válida para os países "mais adiantados". O programa não foi implementado pela Comuna de Paris de 1871, mas a questão permaneceu viva e desafiante em todos os congressos dos partidos socialistas europeus até a Revolução Russa de 1917, seguindo depois seu próprio caminho, passando por várias experiências de governo. Em linhas muito gerais é possível identificar a existência - entre o fim da primeira guerra mundial e meados da década de 1970 - de três grandes propostas ou estratégias, sustentadas por governos ou ministérios socialistas ou social-democratas, sobretudo dentro da Europa. A primeira delas surgiu com os governos de coalizão das décadas de 1920-1930, quando os social-democratas foram chamados para gerir as crises inflacionárias do período. Nestes casos, quase invariavelmente apostaram suas fichas numa política ortodoxa e monetarista de estabilização, que acarretou o aumento da recessão e do desemprego sem conseguir o controle da inflação. Entre estas experiências, um caso muito discutido foi o de Hilferding na Alemanha em 1928, mas o mesmo aconteceu no governo trabalhista inglês em 1929, e no governo social- democrata da França, em 1936. A segunda estratégia de gestão da crise capitalista nasceu na Suécia, no início da década de 1930, e acabou plantando as primeiras raízes do Welfare State e das próprias políticas keynesianas. Depois da Segunda Guerra, entretanto, foi se consolidando um outro projeto ou programa de governo que partia do conceito de "capitalismo organizado" - proposto por Hilferding, antes de tornar-se ministro, no Congresso de 1927 da social-democracia alemã, em Kiel -, em que defendia a possibilidade de uma economia capitalista ser "influenciada conscientemente pela sociedade", através de um planejamento democrático, estatal e de longo prazo. Uma "idéia-força" que esteve presente, durante toda a "era de ouro do capitalismo", tanto na reconstrução dos países europeus quanto nas experiências desenvolvimentistas dos países mais atrasados, tendo alcançado seu limite de experimentação com o governo socialista de Salvador Allende no Chile, abortada pelo golpe militar de 1973. Depois dessa tentativa, na década de 1980, vários partidos e governos socialistas europeus abandonaram a idéia de um capitalismo organizado e de planejamento estratégico, e adotaram um programa de tipo neo-liberal de gestão do capitalismo. Foi o caso de Mitterrand na França, Craxi na Itália, Papandreu na Grécia, e de Felipe González na Espanha - o que maior influência exerceu no mundo latino-americano. Já fazem mais de vinte anos que González chegou ao governo espanhol, e sete anos que deixou a sua presidência. Mas, apesar do tempo, o modelo que com ele chegou ao poder na Espanha continua exercendo grande influência nas discussões entorno ao velho problema dos socialistas a respeito do que seja governar o capitalismo. Felipe González foi eleito pela primeira vez em outubro de 1982, e depois foi reeleito para quatro mandatos sucessivos, deixando seu posto como presidente do governo espanhol em 1996. Nesses quatorze anos ininterruptos de poder, governou apoiado por um verdadeiro rolo compressor parlamentar, majoritário e absolutamente disciplinado, que lhe permitiu aprovação automática no Congresso de todos os seus projetos e reformas, além do controle, direto ou indireto, do Conselho Geral do Poder Judiciário, do Tribunal Constitucional, do Tribunal de Contas, do Conselho de Estado e, finalmente, do Banco de Espanha. Uma 'unanimidade' capaz de deixar economistas e cientistas políticos preocupados com a "credibilidade absoluta" e a "governabilidade perfeita", em estado de gozo perpétuo. González foi eleito com um programa de governo que defendia uma estratégia político-econômica de tipo keynesiana, junto a um plano negociado de estabilização econômica e a defesa de uma política de reestruturação industrial e de crescimento econômico voltado para o aumento do emprego e da eqüidade social. Mas apesar das condições ótimas de governabilidade e credibilidade, o governo socialista não cumpriu com seu programa, e passou quatorze anos anunciando a sua necessidade de acumular mais credibilidade. A grande novidade da proposta socialista de gestão do capitalismo espanhol estava na idéia de uma "concertação social", que transformasse os pactos de Moncloa - assinados em outubro de 1977 - num modelo a ser seguido na negociação e coordenação das demais políticas governamentais. Seria sua marca distintiva com relação ao modelo Thatcher ou neo-liberal de imposição da "disciplina salarial", pela via da recessão e do desemprego. É inegável que os citados pactos de Moncloa tiveram enorme importância para a redemocratização política e o sucesso da Constituinte espanhola de 1978, mas seu capítulo econômico foi logo abandonado sem que tivessem sido cumpridas nenhuma das suas cláusulas sociais. E após Moncloa, só dois dos cinco grandes pactos logrados na Espanha (D.L.Abril, AMI, ANE, AI e AES) ocorreram sob o governo socialista. O primeiro deles - o Acordo Interconfederal, de 1983 - não contou com a participação do governo, e o segundo - o Acordo Econômico e Social, de 1985 - foi uma resposta emergencial do governo, assustado com a intensificação dos conflitos sindicais, e com a ruptura das relações entre o Partido Socialista Espanhol (PSOE) e sua Central Sindical, a UGT, provocada pelo projeto governamental de reforma da Previdência Social espanhola. Não é por acaso que os historiadores falam de dois 'tempos' na trajetória da estabilização espanhola: o tempo "do ajuste brando", até 1982, e o "do ajuste duro", exatamente durante o primeiro período do governo de Felipe González. As cifras, nesse ponto, confirmam a opinião dos historiadores econômicos: González assumiu o governo em 1982, prometendo 800.000 novos postos de trabalho, e concluiu o seu primeiro mandato, em 1986, com mais de 740.000 novos desempregados. Por outro lado, o Conselho Econômico e Social, criado pela Constituição de 1978 para ser o fórum permanente de negociação corporativa, jamais foi regulamentado pelos socialistas. Neste sentido, o que a história conta é que as estratégias de controle ou arrocho salarial e de disciplinamento do mundo do trabalho, implementadas pelos socialistas espanhóis, não passaram, de fato, pela "concertação social", e sim pela força da lei e do desemprego, como preconizava o modelo neo-liberal de Thatcher. O que foi feito em perfeita sintonia com o resto da política econômica do governo, que abandonou sua proposta inicial de tipo keynesiano em troca de uma rigorosa ortodoxia conservadora. Nos primeiros tempos, o motivo alegado para a mudança de posição, foram as "condições econômicas mundiais. Seria apenas de uma fase provisória, ainda que necessária. Em primeiro lugar, por causa das dificuldades em que se encontrava naquele momento a economia espanhola, e, em segundo, porque com o avanço da internacionalização econômica, um só país não poderia adotar posturas muito discrepantes das políticas dos demais governos". (Cuatro Semanas, fevereiro de 1993). Mas a verdade é que o tempo passou, e onze anos depois o ex-ministro da economia, Miguel Boyer, ainda falava com entusiasmo que "a política econômica de Felipe González, tinha sido uma continuação do governo conservador de Calvo Sotelo, com um único objetivo permanente: controlar a inflação a qualquer preço. Com os instrumentos da moderação salarial e de uma política monetária restritiva, baseada em altas taxas de juros e junto com a redução do déficit publico, fundamentalmente através da limitação do gasto". (Idem). Qual o balanço que se pode fazer destes quatorze anos de ortodoxia econômica? Em termos cronológicos, foram sete anos de recessão ou baixo crescimento (1982-1985 / 1991-1996) e quatro anos de crescimento mais acentuado (1986-1990). A entrada da Espanha no Mercado Comum foi a grande responsável pela interrupção do processo recessivo e pelo relativo sucesso econômico do segundo mandato de González. Mas quando a Espanha adotou o Plano de Convergência com relação às metas de Maastrisch, no início da década de 90, sua economia já havia entrado de novo num período de crise e de baixo crescimento, o que obrigou González a abandonar temporariamente o sistema monetário europeu e a propor mais uma dose do mesmo remédio que vinha sendo aplicado desde 1982: aperto fiscal e monetário, e uma nova rodada de reformas da previdência social e da legislação trabalhista. Cansados da mesmice, os eleitores espanhóis abandonaram González e chamaram de volta a velha direita espanhola. Esta experiência socialista espanhola deixa algumas lições econômicas importantes: a primeira é que com uma política macro-econômica ortodoxa e conservadora, não há espaço para um crescimento sustentado por maior que seja a sua credibilidade, e a segunda é que a desinflação parece não chegar jamais a patamares capazes de deter a desindustrializacão e a desnacionalizacão da economia. Além disto, o ajuste micro- econômico baseado apenas na "racionalização" do trabalho, como o que ocorreu nos primeiros anos das décadas de oitenta e noventa, não é capaz de dar maior competitividade internacional à uma economia que esteja, como no caso espanhol, bloqueada pelas altas taxas de juros. Do ponto de vista da incorporação social e do aumento da equidade, os resultados também foram extremamente medíocres. Não houve de fato a tão decantada concertação social, e em quatorze anos de gestão socialista, o gasto social do governo só subiu de 19,42% para 21,37 % do PIB. Com relação à distribuição de renda, os 10% das famílias mais pobres aumentou seu quinhão em apenas 0,44%; enquanto que os 10% de mais alta renda perderam algo em torno de 1,20%. Em compensação a participação salarial no PIB caiu de 51,2% para 46,1%, e a taxa de desemprego, que girava em torno dos 6% à época de Moncloa, e dos 15% no início do primeiro governo González, chegou à casa dos 24% da população economicamente ativa e adulta, chegando em alguns momentos à cifra de 37,9% entre os jovens com menos de 25 anos de idade. Hoje, a distância e o tempo já permitem um balanço mais fiel do que foi a era González. E não há duvida que sua "gestão socialista" do capitalismo espanhol, acabou ficando indiscernível da gestão conservadora e neoliberal do governo Thatcher*. * Estou retomando o mesmo argumento central do artigo que publiquei por ocasião da posse do primeiro governo Cardoso, em janeiro de 1995 e que se chamou "O Espelho Espanhol de FHC".
https://www.alainet.org/es/node/107340
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