Obrigado, professor
14/02/2003
- Opinión
Foram as suas idéias, professor, que permitiram a Lula, o
metalúrgico, chegar ao governo. Isso nunca acontecera antes na
história do Brasil e, quiçá, na do mundo, exceto pela via
revolucionária. Falo da eleição a presidente da República de um homem
que veio da miséria; enfrentou, como líder sindical, uma ditaduta
militar; fundou um partido de esquerda numa nação onde a política
pública sempre foi negócio privado da elite.
No dia da posse, ao discursar do púlpito do Palácio do Planalto, Lula
declarou que não era resultado de si mesmo, mas da história de luta
do povo brasileiro. É claro, professor, que não ignoramos a reação
indígena à chegada do colonizador, fosse ele português, francês ou
holandês; os quilombos dos escravos libertos; as revoltas populares
que marcaram o período pré-republicano, como a Rebelião Mineira
liderada por Tiradentes. Não olvidamos anarquistas e comunistas, a
Coluna Prestes, a Aliança Nacional Libertadora, a Ação Católica, o
ISEB e as Ligas Camponesas.
Mas a sua pedagogia, professor, permitiu que os pobres se tornassem
sujeitos políticos. Até então, o protagonismo dos pobres tendia ao
corporativismo ou não passava de revoltas desprovidas de um projeto
político abrangente. Assim, eles só se destacavam como figuras de
retórica no vocabulário da esquerda.
Marx e Engels eram intelectuais (e é bom lembrar que Engels era
também empresário bem-sucedido). Lênin, Trotsky e Mao também eram
intelectuais. Che era médico e Fidel, advogado. Em nome dos pobres, e
quase sempre a favor deles, os intelectuais comandavam. E os pobres
eram comandados.
Graças às suas obras, professor, descobriu-se que os pobres têm uma
pedagogia própria. Eles não produzem discursos abstratos, mas
plásticos, ricos em metáforas. Não moldam conceitos; contam fatos.
Foi o senhor que nos fez entender que ninguém é mais culto do que
outro por ter freqüentado a universidade ou apreciar as pinturas de
Van Gogh e a música de Bach. O que existe são culturas paralelas,
distintas, e socialmente complementares. O que sei eu dos circuitos
eletrônicos deste computador no qual escrevo? O que sabia Einstein
sobre o preparo de um bom feijão tropeiro? No entanto, a cozinheira
pode passar a vida sem nenhum noção das leis da relatividade. Mas
Einstein jamais pôde prescindir dos conhecimentos culinários de quem
lhe preparava a comida.
O pobre sabe, mas nem sempre sabe que sabe. E quando aprende é capaz
de expressões como esta que ouvi da boca de um senhor, alfabetizado
aos 60 anos: "Agora sei quanta coisa não sei". O senhor, professor,
fez com que o pobre conquistasse vez e voz, soubesse que sabe, e que
seu saber é tão intelectual quanto o daqueles que, doutorados em
filosofia ou matemática, ignoram como assentar a laje de uma casa,
tecer um cesto de vime ou semear o trigo na época certa.
O senhor fez os pobres conquistarem auto-estima. Graças ao seu método
de alfabetização, eles aprenderam que "Ivo viu a uva" e que a uva que
Ivo viu e não comprou é cara porque o país não dispõe de política
agrícola adequada e nem permite que todos tenham acesso à alimentação
básica. E só o pobre sabe o que significa passar fome. Por isso,
professor, foi preciso que um pobre chegasse ao governo para
priorizar o combate à fome e adotar como critério de êxito
administrativo o acesso de toda a população a três refeições diárias.
O senhor nos ensinou que ninguém ensina a ninguém, mas ajuda o outro
a aprender. Graças ao seu fórceps pedagógico, extraiu a pedagogia do
oprimido e sistematizou-a em suas obras. Pois o arrancou da percepção
da vida como mero fenômeno biológico para a percepção da vida como
processo biográfico. Os pobres fazem história, como demonstram os
quarenta anos de atuação dos movimentos sociais que levaram Lula à
presidência. Foi a sua pedagogia de conscientização (na verdade, a
dos pobres que, repito, o senhor sistematizou) que possibilitou a
organização e a mobilização dos excluídos. Deu consistência dinâmica
às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), aos movimentos populares, às
oposições sindicais, aos sindicatos combativos, às ONGs, aos partidos
progressistas.
Ao longo das últimas quatro décadas, seus "alunos" foram emergindo da
esfera da ingenuidade para a esfera da crítica; da passividade à
militância; da dor à esperança; da resignação à utopia. Convencidos
pelo senhor de que são igualmente capazes, eles foram
progressivamente ocupando espaços na vida política brasileira, como
militantes das CEBs, do PT, do MST e de tantos outros movimentos.
Lula, professor, é a expressão mais notória desse processo. Daí a
empatia que havia entre ele e o senhor. O senhor forneceu-lhe as
ferramentas e ele, como bom torneiro-mecânico, fez o protótipo da
chave que abriu aos oprimidos as portas da política brasileira. Basta
conferir o atual ministério, integrado por gente que veio daquilo que
a elite denomina "escória": Marina Silva, do Meio Ambiente, foi
seringueira e aprendeu a ler aos 14 anos; Miro Teixeira, das
Comunicações, foi criança de rua na praça Mauá, no Rio; Olívio Dutra,
das Cidades, foi militante da Pastoral Operária e bancário; Ricardo
Berzoini, da Previdência, também foi bancário, assim como Luiz
Gushiken, da Secretaria de Comunicação; Benedita da Silva, da
Assistência e Promoção Social, foi favelada e empregada doméstica;
José Fritsch, da Pesca, veio das Comunidades Eclesiais de Base;
Jaques Wagner, do Trabalho, foi técnico em manutenção; Miguel
Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, foi técnico em mecânica.
Por este novo Brasil, muito obrigado professor Paulo Freire.
* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto Autobiografia Escolar"
(Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/106977
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