Parteiras de um Povo
22/11/2002
- Opinión
Via de regra, a propagação do cristianismo se fez pela palavra do evangelho no
quadro de um projeto civilizatório e de uma forma de ser Igreja que implantou
edifícios religiosos e escolas. É o evangelho do poder. Mas nunca faltou na
história outra tendência, vivida outrora por Francisco de Assis e por
Bartolomé de las Casas, de acercar-se dos outros por uma convivência
pacífica,sem palavras,fraterna e amorosa. No mundo contemporâneo foi
testemunhada pelo Irmão Carlos de Foucauld que nos inícios do século XX foi ao
meio dos muçulmanos no deserto da Algéria, não para anunciar mas para conviver
com eles e acolher a diferença de sua cultura e de sua religião. E nos dias
atuais está sendo vivida, exemplarmente, pelas seguidoras do Irmão Carlos, as
Irmãzinhas de Jesus, entre os índios Tapirapé no noroeste do Mato Grosso,
próximo ao rio Araguaia. É o poder do evangelho.
No domingo passado, dia 17, assisti a celebração do cinquentenário da presença
delas junto aos Tapirapé.Lá estava ainda a pioneira, a Irmãzinha Genoveva que
em outubro de 1952 começou sua convivência com a tribo. De manhã, com o bispo
Pedro Casaldáliga, advogado e defensor dos índios, se lançou um livro de
extraordinário valor: O renascer do povo Tapirapé, diário das Irmãzinhas de
Jesus de Charles de Foucauld, 1952-1953(Editora Salesiana, SP, 2002),
belíssimamente ilustrado para estar à altura da refinada estética dos
Tapirapé.
Como elas chegaram lá? As Irmãzinhas souberam através dos frades dominicanos
franceses que missionavam em terras do Araguaia, que os Tapirapé estavam em
extinção. Dos 1500 de antigamente foram reduzidos a 47 por causa incursões
dos Kayapó, das enfermidades dos brancos e da falta de mulheres. No espírito
do Irmão Carlos, de ir para conviver e não para converter, decidiram unir-se à
agonia de um povo. À sua chegada, a Irmãzinha Genoveva ouviu do cacique
Marcos:"Os Tapirapé vão desaparecer. Os brancos vão acabar conosco. Terra
vale, caça vale, peixe vale. Só índio não vale nada". E eles haviam
internalizado que não valiam nada mesmo e que estavam condenados
inexoravelmente a desapacer. Elas foram junto a eles e pediram hospedagem.
Começaram viver com eles o evangelho da fraternidade na roça, na luta pela
mandioca de cada dia, no aprendizado da lingua e no incentivo a tudo o que era
deles, inclusive a religião, num percurso solidário e sem retorno.
Com o tempo foram incorporadas como membros da tribo. A auto-estima deles
voltou. Graças à mediação delas, conseguiram que mulheres Karajá se casassem
com homens Tapirapé e assim garantissem a multiplicação do povo. De 47
passaram hoje a 520. Em 50 anos, elas não converteram sequer um membro da
tribo. Mas conseguiram muito mais: fizeram-se parteiras de um povo, à luz
daquele que entedeu sua missão de "trazer vida e vida em abundância". Quando
vi o rosto de uma india Tapirapé e o rosto envelhecido da Irmãzinha Genoveva
notei: se tivesse tingido de tucum os cabelos brancos,ela seria tida por uma
perfeita mulher Tapirapé. Realizou, de fato, a profecia da Fundadora:"As
Irmãzinhas se farão Tapirapé, para daqui, irem aos outros e amá-los, mas serão
sempre Tapirapé". Não é por ai que deverá seguir o Cristianismo, se quiser
ter futuro num mundo globalizado? O evangelho sem poder?
* Leonardo Boff, Teólogo
https://www.alainet.org/es/node/106609?language=en
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